RESENHA DO LIVRO DE PAULO ROSENBAUM “A VERDADE LANÇADA AO SOLO”- POR REGINA IGEL*

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Há certos sabores que só podem ser apreciados lentamente, para que a língua tenha mais vantagens em degustá-los e ganhe tempo para informar o cérebro sobre eles. Respeitadas as coordenadas referenciais, é o caso do livro A verdade lançada ao solo, de Paulo Rosenbaum. É obra que exige lenta leitura, com pausas regulares, preenchidas por contemplações, reflexões e meditações. Para se aprender, pelos caminhos do rabino Zult Talb, o que é a alma, se ela transmigra ou não, onde se pode encontrar Deus, como chegar até o Criador (ainda como ser vivo), enfim, para ser saboreado em seus meandros místicos, filosóficos, científicos, pessoais e universais, este livro tem de ser lido lentamente. (Eu levei um mês mais uma semana para terminar a leitura – pois parei em várias passagens, para pensar no que acabava de ler…)

É livro denso, pode-se dizer, enciclopédico pois, ao redor de um verbete – devekut –giram três histórias, um epílogo e uma parte iconográfica. Cada uma das três primeiras especula, analisa, questiona, por personagens ativos e diálogos dinâmicos, o que vem a ser ‘devekut’. Na primeira narrativa, que transcorre na cidadezinha de Tisla, em meados do século XIX (mais precisamente em 1856, que corresponde ao ano judaico 5.616), a história esclarecedora de ‘devekut’ tem início numa casa modesta, adaptada para ser também casa de orações para os judeus naquele remoto e parcamente povoado lugarejo. O rabino Zult, líder da comunidade, é visto com respeito e com desconfiança: na sinagoga, ele dirigia judeus que respeitavam a religião e eram pouco afeitos a interpretações esotéricas, às quais ele se dedicava de tempos em tempos. Não que ele fosse um rebelde ou motivador de rebeldias religiosas, mas era um homem que não aceitava a palavra escrita como prova irrefutável de uma verdade, nem tampouco a interpretação tradicional do Talmud (o texto que reúne códigos de comportamento ético, composto por uma sequência de rabinos a partir do segundo século da Era Comum aos judeus e cristãos). Na página em que se identifica “ … Zult era um iconoclasta” (p. 24), se encontra o cerne desta narrativa, que é a imersão na ‘devekut’. O autor coloca uma nota explicativa ao pé do texto (como faz com quase todas as palavras de origem hebraica, em transliteração ao português), esclarecendo que ‘devekut’ significa “aproximação, aderência, apego. Termo místico que define proximidade com Deus. Estado modificado de consciência, no qual os homens podem experimentar no corpo a própria energia de Deus.” No mister de provar tal experiência, o rabino pode ser observado como se fosse um submarino cortando águas profundas, interceptado por diversas correntes (as perguntas, os comentários e observações de seus ouvintes), mas com uma trajetória firme, articulada por sua vontade de experimentar um fenômeno místico, arrebatador, que se manifestaria nele num delírio de integração ao Divino e do qual ele lançaria luzes a seus seguidores. Entender os caminhos de Zult é um desafio – não só para a sua plateia, mas para os leitores também. O iconoclasta – na verdade, um homem interessado no diálogo, numa discussão esclarecedora, numa dialética quase platônica (talvez) – tentava arrancar dos ouvintes a capacidade latente deles em argumentar, discutir, trocar ideias. Seus discursos desafiavam a crosta conservadora da sua comunidade e de conselhos rabínicos, quando defendiam a ideia de que a Diáspora ou o Exílio era melhor para os judeus do que se aglomerarem em Israel, como queriam os sonhadores do seu tempo – que se tornou realidade pela força sionista. Como era formado em Filosofia, por uma universidade não-judaica, Zult trazia para suas prédicas a ideia de que as ciências eram benéficas para todos e que os judeus religiosos não deveriam se fincar apenas na fé ou na espera de milagres, pois a medicina (sua vocação frustrada), por exemplo, era um pilar de suma importância na prevenção e na cura de doenças. Um de seus muitos filhos, o Nay, era um atento interlocutor e provocador, que muitas vezes substituía um público de ouvidos um tanto moucos em suas prédicas, pois o menino de 14 anos lhe fazia perguntas, apresentando desafios e sugestões. E também houve ocasiões em que Zult, o iconoclasta, não tinha público nem filho para contestar suas verdades; mesmo assim, ele falava, ou se calava, preparando-se para receber a ‘devekut’ – e a recebia, gerando em si mesmo uma energia de alta frequência, de pulsação insólita, que o levava a pensar que se impregnava da energia divina. Não que quisesse se igualar a Deus, mas queria usufruir da divindade o que a patologia de ser um ente humano não lhe permitia.

Se a ‘devekut’ foi definida no início da primeira narrativa e gradualmente explicada ao longo das primeiras cem páginas, o título da obra só vai receber esclarecimento para além da página 100, como se fosse necessário preparar os leitores para a essência de uma escrita laica num contexto carregado de religiosidade. “A verdade lançada ao solo” (fragmento que se encontra no Livro de Daniel 8:12) se tornou uma espécie de mantra ou bússola para o pensamento, utilizada por Zult, na sua busca por uma interpretação do versículo em todas suas possibilidades semânticas ou racionais e místicas ou movidas pelo supernatural. Em resumo, a verdade está diluída no pó ou é o pó que se alimenta da verdade? O livro se apropria dessas (entre outras) versões para explicar Deus, o mal, o bem, a doença, a cura, o êxtase, o milagre, a indiferença, a alma, o espírito, indo do geral ao particular, ao mencionar a necessidade de se estudar textos bíblicos em duplas (como o fazem os estudantes dos seminários judaicos), pois uma leitura individual não é aceitável – faz-se necessário discussão, apresentação de ideias conflitantes, diálogo, é preciso liberar o epílogo, a conclusão, de todo o emaranhado que nos desafia.

O diálogo vem a ser o cerne da segunda narrativa, “A balada de Yan e Sibelius”. Os personagens são dois homens perdidos nos Alpes, em meio a uma nevasca. Um deles é médico, o outro é seu ex-paciente; um deles é o Dr. Talb, descendente do Zult Talb, personagem proeminente na narrativa anterior. Numa área escavada numa montanha gelada, que mal abriga os dois, à espera de não se sabe o quê, ou que o tempo melhore ou que eles se entendam, discorrem sobre a ótica médica e a ótica dos pacientes que não só podem diferir uma da outra, mas chocar-se também. Fé e razão passam a ser elementos de fricção e ponderações para os dois perdidos na brancura da neve e na negritude da noite. Ambos mantêm o fogo do conhecimento aceso e reciprocamente sopram as chamas, como querendo que um se apagasse para o outro continuar a existir.

Como o fez na primeira história, o narrador interpõe ao texto ‘recados’ ou intercalações de cunho explanatório sobre a religião, hábitos dos judeus ao longo dos séculos e outros temas. Imitariam os ‘comentários’ ou ‘ridushim’, notas ou observações marginais ao texto do Talmud. Nesta narrativa, as interferências explicam certas reações orgânicas a alguns remédios, os efeitos da sua ‘produção industrial’, a manipulação do corporativismo, o darwinismo, o congelamento dos órgãos internos, a fome contínua, o perigo da morte pela inércia física no panorama congelado – em enunciados breves, não-invasivos, que complementam o desenrolar dos eventos. Com a precariedade da situação, o judeu impulsiona o tema da ‘devekut’, que passa a ser o jogo dialético entre os dois alpinistas. Ela é então praticada: os sentidos se renovam, os membros congelados se movem, a cabeça se esvazia do medo e da incerteza, a “Presença” penetra pelos olhos dos seus praticantes. “… não tem como comparar com droga nenhuma. Nem alucinógenos, nem estupefacientes, nem nada da farmacopeia”(p. 479). É a fé ou é a alucinação dos corpos deteriorados?

A terceira e última das narrativas, “Sonho não interpretado”, concerne tratamentos de dependentes químicos, na época contemporânea. Um jogo de xadrez se coloca entre médico e paciente e mais: doutrinas espíritas, um papiro que contava vidas dos antepassados do médico (entre eles, o rabino Zult Talb), transes, incursões a cemitérios de judeus poloneses depois do Holocausto, perspectivas para o mundo sob o comando dos norte-americanos, terrorismo, Al-Qaeda, a destruição das vidas e das torres gêmeas em Nova York, exorcismo, os justos em cada geração judaica… um repertório que instala personagens e questões dentro de uma moldura atual, atravessando Israel, Grécia, Egito, o Brasil e a inclusão do velho Zult Talb, que reaparece em espírito. Atmosfera sufocante, perturbadora e liberadora, instiga perguntas que exigem respostas, como se indicassem que, no mundo caótico em que vivemos, só o questionamento pode nos encaminhar para o conhecimento.

O Epílogo é uma tentativa de amarrar os eventos principais, transcorridos pelas três narrativas mas, na verdade, são os leitores que devem fazer o acerto das circunstâncias lidas, visualizadas e imaginadas, com o roteiro fornecido pelo autor. Este também insere fotos dos ‘pergaminhos’ deixados por Zult (em papel brilhante, de um colorido esmaecido como num daguerreótipo, em escrita artística), para que as futuras gerações soubessem que a ‘devekut’ é uma atividade que pode e deve ser experimentada para uma aproximação real com Deus, ainda que paradoxalmente seja abstrata, como parte do absurdo da existência humana.

Para quem eu recomendaria este livro? Para aqueles que não sabem absolutamente nada sobre judaísmo, para aqueles que, como eu, sabem um pouquinho e para aqueles que sabem bastante. Esta obra, imersa em conhecimento, divulgado por diálogos e meditações dos personagens, é inédita no repertório de obras brasileiras de ficção, pois mostra intenções implícita e expressas de provocar nossa curiosidade intelectual, espiritual e emocional. Quem a ler, ganhará em conhecimento sobre a religião judaica, seus mitos, rituais, tradições, transgressões e acertos; sobre alma, Deus, julgamentos humanos e divinos mas, principalmente, ganhará em conhecimento de si mesmo. O estilo da escrita tem volteios e sinuosidades, trazendo às narrativas possibilidades de caminhadas mentais, por uma leitura lenta e gradual. Dêem o tempo necessário para seu cérebro e suas emoções procurarem ‘a verdade lançada ao solo’.


*Regina Igel é professora titular de Literaturas e Culturas em Língua Portuguesa no Departamento de Espanhol e Português da Universidade de Maryland. É autora de inúmeros artigos, publicados em diversas revistas especializadas nos Estados Unidos, Europa e Brasil. A Profa. Dra. Regina Igel é também encarregada da seção Brazilian Novels do Handbook of Latin American Studies, uma publicação da Biblioteca do Congresso, em Washington, D.C., e colabora para esta publicação com cerca de 70 resenhas de romances publicados num período de dois anos no Brasil. Foi colaboradora do Jornal “O Estado de São Paulo” (Suplemento Literário e Cultura). É autora dos livros: “Osman Lins, uma bibliografia literária” (1978) e “Imigrantes Judeus, Escritores Brasileiros – O Componente Judaico na Literatura Brasileira (1997).

*Um trecho desta resenha será publicada no Handbook of Latin American Studies, uma publicação da Biblioteca do Congresso, Washington, D. C. que está programado para sair em 2015 (Vol. 60)

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Paulo Rosenbaum

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