SOBRE A DISCRIMINAÇÃO DOS MIZRAHIM EM ISRAEL – POR SHEILA MANN

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Por fidelidade a Israel e aos nossos ideais, tendemos muitas vezes a ignorar fatos históricos, documentados e comprovados. Nada estranho nisso. Se falamos a palavra “ideais”, é justamente para falar de uma imagem ou conceito idealizado, algo a ser almejado e atingido.

Hoje gostaria de falar sobre quem são os Mizrahim. A palavra “Mizrah”, significa leste ou oriente em hebraico. Isso inclui os países do Levante, ou seja, os países do Oriente Médio e dos descendentes dos babilônios – Syria, Líbano, Bahrein, Kuwait, Uzbequistão, Kurdistão, Afeganistão, Paquistão, Yemen e Geórgia . E os Mizrahim são as populações judaicas oriundas desses países de maioria muçulmana, que foram expulsas depois da guerra da independência de Israel, ou ainda antes por motivos de perseguição. Todos passaram a ser chamados de Sefaradim junto com os judeus do Magreb (Marrocos) e Espanha( Sefarad em hebraico). Na origem, os Sefaradim, são os judeus oriundos de Sefarad que foram expulsos durante a Inquisição espanhola e que se espalharam pela bacia mediterrânea, norte da África, chegando até a Turquia. Comum aos dois grupos é a maneira como se conduz o serviço religioso nas sinagogas, é o tal de “Noussakh sefaradi”(maneira sefaradi), nas liturgias, nos ritos e costumes, em contraponto ao “Noussakh Ashkenazi” dos judeus oriundos dos países da Europa, tanto oriental quanto ocidental.

Numa viagem minha a Israel, me deparei com uma reportagem no jornal “Yediot Aharonot” sobre documentos históricos, relativos à formação do Estado de Israel, que foram liberados para consulta. Os documentos trazem o relato do dilema que o então Primeiro Ministro, David Ben Gurion, nos primórdios da formação do Estado de Israel, teve que enfrentar sobre como formar a identidade do “novo judeu israelense“; ele tentou entender como se transformam dezenas de culturas diferentes vindas do mundo todo em uma única cultura. Trago aqui uns trechos do texto do jornal relativos a essa questão, que me chocaram:

Vocês marroquinos vieram para causar estragos“- Com essa manchete começou essa história no dia 27 de março de 1949, ao final da guerra da independência, quando jornais reportaram sobre a saída de judeus marroquinos que deixaram Israel por causa de humilhações sofridas no país.” Os marroquinos reclamam que não se cuida deles em Israel e admitem que é difícil para eles o trabalho duro”, publicou naquele ano o jornal Yediot Aharonot, e num outro dia publicou : ” Nós, somos os israelenses que conquistamos essa terra e vocês marroquinos vieram aqui só para causar estragos.” Assim, a Agência Judaica recusou trazer uma imigração de jovens da África do Norte.

“Naquela época, os dirigentes da nação estavam muito preocupados com a imagem que a nação teria do ponto de vista cultural”, comenta o Dr. Hazi Amior, responsável sobre os documentos da Biblioteca Nacional.” Como o Estado de Israel terá uma cultura ocidental, se continuar a aceitar hordas que não conhecem essa cultura? Havia aqueles que achavam que isso era um grande perigo”. “…naquele tempo em Israel, havia uma grande discussão sobre se era preciso mesmo aceitar e integrar todos esses imigrantes oriundos dos países do Oriente. Não resta dúvidas sobre alguns casos de imigração seletiva”. “Apesar das boas intenções, um olhar mais aprofundado nos protocolos mostra a discriminação e o racismo em relação a esses novos imigrantes”.

À essa reportagem no jornal, seguiu-se um documentário para televisão,”Hashed Ha edati” (O diabo étnico) do famoso jornalista Amnon Levy, ele próprio descendente de imigrantes tunisianos. Ele pesquisou o assunto da discriminação das comunidades mizrahis e chegou à conclusão que o preconceito existe ainda nos dias atuais, por isso resolveu fazer uma ampla pesquisa que resultou nesse documentário.

Estou trazendo esses trechos para tentarmos entender e analisar (essa análise e teoria são minhas) o que está acontecendo hoje em Israel em relação ao conflito Israel/Palestina. Entender o porquê da resistência em se aceitar um estado palestino lado a lado com o estado israelense. Israel tem a pretensão de pertencer à Comunidade Europeia, mesmo estando cravada no Oriente Médio e não na Europa. É compreensível que queiramos ser identificados com os vencedores da História, ou seja com os ideais ocidentais, mas esquecemos que esses mesmos ideais ocidentais, que tanto admiramos e louvamos e com os quais queremos ser reconhecidos, levaram ao nazismo e ao massacre de milhões de seres humanos entre eles seis milhões de judeus.

Israel é um país árabe, com influência árabe na língua, na escrita, na música, na culinária… Os árabes israelenses são tratados como cidadãos de segunda classe, e os Mizrahim não ficam muito atrás, e apesar da situação deles ser melhor daquela dos palestinos, ainda está longe daquela que os Ashkenazim usufruem.

Hoje ainda, os Mizrahim ganham em média 30% menos do que os Ashkenazim nas mesmas funções… Na verdade os Mizrahim têm muito mais em comum com os palestinos e os árabes israelenses, do que eles gostam de admitir. Depois de décadas rejeitando sua herança cultural árabe e mediterrânea, tentando assimilar a cultura ashkenazi, eles têm uma grande dificuldade em reconhecer que são muito mais próximos dos seus compatriotas árabes e não querem ser identificados com eles…

É preciso levar em conta esses fatos, acordar e tentar fazer um “Heshbon Ha Nefesh” (exame de consciência), e se perguntar que democracia queremos para Israel? Não somos nós que nos gabamos de ser a única democracia da região? Será que isso é verdadeiro? Como ficam os direitos desses povos que vivem na mesma terra, sejam eles os judeus mizrahim que imigraram pra Israel, ou os palestinos que estavam lá? Israel está obcecado com a demografia do país, almeja superar em número os palestinos e os árabes israelenses, e continua chamando e acolhendo judeus da Diáspora, mas a que preço e com que tratamento? Acabamos de ver recentemente como os etíopes são tratados por causa da cor da sua pele. Não se conseguiu ainda superar a discriminação étnica e racial, depois de tantos anos da existência de Israel, e isso tem implicações morais e éticas sérias, que está pondo em questão tanto o judaísmo quanto o sionismo. Depende de nós todos, ao termos consciência desses fatos, dar espaço para todos e fazer com que o conflito tenha uma solução viável e justa para todos os envolvidos.


SHEILA MANN

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Sheila Mann é judia, formada em artes plásticas, nascida no Líbano e crescida em Israel. Ela é conhecedora das culturas árabe e judaica com fluência em ambas as línguas, o que a torna ainda mais próxima das duas comunidades. A artista chegou ao Brasil, com 18 anos, casada e grávida de gêmeas. A dura fase de adaptação a nova cultura e aos filhos logo foi superada com a decisão de voltar a estudar. Inscreveu-se no curso de literatura da Aliança Francesa, para não perder a fluência no idioma adquirido em sua escola primária no Líbano, e também resolveu estudar artes plásticas.

Sheila Mann criou o POT – Peace On The Table, projeto que propõe unir os povos através da culinária, projeto que hoje se tornou a sua grande razão de viver, e com essa proposta se tornou uma ativista pela paz, principalmente entre árabes e judeus.

No ano passado Sheila lançou um livro de memórias e culinária denominado “Culinária do Líbano a Israel”. Atualmente dá aulas de culinária libanesa na sua própria escola, em São Paulo, e palestras sobre o seu trabalho, tendo formado um grupo de mulheres judias e mulheres árabes que se reúnem para compartilhar experiências e fortalecer laços de amizade .

sheila@peaceonthetable.org

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