FRANÇOISE DOLTO: MULHER DE ESTIRPE E INIGUALÁVEL, SOBRETUDO PARA A PSICANÁLISE – POR JAYME VITA ROSO

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Françoise e Boris (seu marido) não puderam ingressar na Resistência, mas não deixaram de auxiliar tantos quantos se escondiam, em diversos lugares, ao risco de serem presos. Boris foi preso pelos nazistas, porque sendo russo, era assemelhado aos judeus.


273_especial_2_2“Quando se ama, quando se é amado, é a vida! Isto é uma relação”. – Françoise Dolto

1)-Um dos sentimentos que mais nos assolam, com matizes diversos para cada pessoa, bem como graduado com a intensidade de cada ser humano, é a saudade. Desde quando tomei conhecimento de que era uma palavra intraduzível, com os estudos que amparavam essa conclusão, realizados pela filóloga alemã Carolina Vasconcelos (sobrenome adotado de seu marido, também filólogo, Teófilo Vasconcelos), passei a ter respeito por ele.

A saudade tem conotação com reminiscência. Eu prefiro agregar as duas, porque, sem intuito de comparação, elas podem se completar, sobretudo, como agora, que serão usadas como meio de comunicação para expressar um sentimento puro.

2) Bom, volto-me a recordar que tive o privilégio, com muitos compartilhado, de conhecer Françoise Dolto, na década de setenta, quando usava Paris como centro de apoio para obter os necessários vistos para ingressar em países africanos de língua francesa.

Como foi?

273_especial_2_3Sempre me hospedara num modesto hotel, como ainda faço, localizado na Rue Saint-Jacques, no 5e arrondissement. E Françoise residia no prédio de número 260, onde manteve seu consultório, após seu matrimônio. Transferiu-se para esse prédio em 6 de agosto de 1942 e lá viveu, até seu falecimento, num dia muito quente, em 25 de agosto de 1988.

3) Essa mulher, essa modesta e pequena mulher, nascida em 6 de novembro de 1908, deveria merecer atenção dos brasileiros, que vivem estes dias amargos em nosso país, mas não perdem a confiança, nem a esperança, porque têm fé. E ela, Françoise, teve tudo isso em abundância, com todos os imprevistos desde o seu casamento em 12 de fevereiro de 1942, Paris ocupada, e gerou dois dos três filhos (Yvan-Chrysostome e Grégoire Dolto) ainda durante o conflito. O marido Boris era russo, que lhe emprestou o sobrenome, pois solteira era Marette.

Que tem a ver, com o judaísmo, com os judeus, Françoise Dolto? É o que esboçaremos dentro dos limites deste valioso espaço de Glorinha Cohen.

4) Sempre, na profissão, teve companheiros judeus: desde Hartmann (em 1937) com quem estagiou no tratamento de crianças doentes, em sequência, Loewenstein, Spitz, Leubre e Sophie Morgenstern, para as crianças, até sustentar sua tese em 11 de julho de 1939 e, dois anos depois, abrir o seu consultório (clínica geral e pediatra).

Françoise Dolto convidou Colette Manier para gravar sua autobiografia, fazendo-a em sua casa-consultório, muito enferma, em duas datas: 29 de maio de 1988 e 14 de julho do mesmo ano, que resultaram no texto “Autoportrait d’une psychanalyste-1934/1988”[1], e Colette foi ajudada por seu marido Alain Manier, durante os anos de sua relação frutuosa. E Alain, cujo interesse científico centrou-se sobre a psicose o levou a elaborar sua teoria – do qual foi criador – sempre se maravilhou e como Françoise tornou-se psiquiatra, oriunda de uma família predominantemente psicótica.

Antes de adentrar ao objeto deste escrito, alguns textos da Introdução do livro mencionado, escrito por sua filha Catherine Dolto-Tolitch (5 de agosto de 1946), também médica como a mãe:

a) começo com um dito de Nietzsche, que leva a refletir: “Se eu lhe digo, é preciso ter o caos em si mesmo para pôr no mundo uma estrela dançante”;

b) “A psicanálise, antes de ser assim chamada, foi para ela uma questão de vida ou morte simbólica. Não vivendo em uma época em que não lhe traziam as crianças questionantes por seu acompanhante consultar um psicoterapeuta, ela toma as coisas em suas mãos, por ela mesma. ”(p. 8);

c) “quando se ama ou quando não se ame mais, há qualquer coisa de incontrolável” (p.9);

d) pouco antes de falecer, em 14 de julho, sua filha, mudando uma poltrona no consultório no qual vivera por cinquenta anos, dela ouviu: “É um belo escritório… mas não é mais meu”, disse ela alegre e espantada por esta descoberta”(p. 9);

e) Catherine traçou de sua mãe este retrato profissional: “Ela sempre se sentiu ‘antipática’ e eu creio que ela era verdadeira. Foi psicanalista, mas ela foi bem mais do que isso, não procurando nunca saber o que ela representava. Buscava fazer com seriedade tudo que produzia, mas não o tomara a sério, pois isto a fazia aberta à vida e assim foi até o fim. E, recordando, um de seus últimos desejos de sua vida, foi de contar isso”(p. 10)[2];

273_especial_2_45) Françoise Dolto, de 1937 a 1942, trabalhou em dois outros locais em Paris, tendo se transferido para Rue Saint Jacques, 260, em 6 de agosto de 1942, já mãe do seu primeiro filho com 6 meses. Isso tem um significado próprio com a deflagração, que ensejou reportar-se ao capítulo 6 do livro em foco: “A Segunda Guerra Mundial” (p. 151/162).

5.1) Como viveu esta guerra e, sobretudo, com o nascimento do seu primeiro filho e, com a “partida” de amigos muito queridos judeus?

Soube ela que, enquanto se desenrolava a guerra, havia campos de extermínio de judeus?

“Não. Sabia dos campos de trabalho. E os judeus eram levados a eles para serem roubados. Foi a razão que eu encontrei para esses atos. E não era um genocídio para mim. Era para roubar os judeus, seu dinheiro” (p. 152).

E emendou: “Como eu era na época, o genocídio me parecia inimaginável” (p. 152). Narra que teve conhecimento que os registros massacravam os ciganos. E a “religião dos nazistas era contra um deus judeus, contra o deus judeu-cristão. Para mim, era uma maneira de ser contra os cristãos” (e nunca leu Mein Kampf).

5.2) Narra a farsa que a polícia engendrou para enganar os judeus e aos demais que se distanciam dos ciganos. Com referência a uma amiga austríaca, também psicanalista, conta: “E como os alemães estavam em Paris, a polícia francesa dizia desejar colocá-los em abrigos e protegê-los dos nazistas. E eram os parisienses que faziam isso. Foi, por exemplo, o caso Vel’ d’Hiv (o caso tornou-se simbólico, porque, como narra Jacques Adler, “no dia 16 de junho de 1942, mais de 1200 judeus emigrados, inclusive as mulheres, as crianças e os idosos foram presos pela polícia francesa”, em “Face à la persecution, Paris, Calman-Lévy, 1985, p.20, com a nota 76 da narrativa de Dolto, à página 269, e acrescentou que: “O Centro de documentação judia contemporânea confirmou que, nessa prisão em massa, foram 3031 homens, 5802 mulheres e 4051 crianças”).

Narra que a polícia francesa, a título de proteger os judeus, os enviava aos campos de concentração na França. E todos, piamente, inclusive ela, acreditaram que os judeus retornariam às suas casas após o fim da guerra. Mas, terminado o conflito, e somente após, constatou, vendo as fotos, com as primeiras imagens, o horror das mortes e das torturas.

Deu uma ênfase: até parentes, engajados na Resistência, não contava nada do que sabia. Assim: “Ele (Jacques) não falava nada: ‘Estou aqui agora. Não me pergunte mais. Eu não sei onde estarei dentro de um mês! ’ O clima de desconfiança era total, mesmo quando, e Françoise explica, abrigavam os maquis – e foram muitos –, até diziam: ‘Escute, isso é igual, não é? Jantei bem, posso ser ingrato, mas eu vou! ’”

Françoise e Boris não puderam ingressar na Resistência, mas não deixaram de auxiliar tantos quantos se escondiam, em diversos lugares, ao risco de serem presos.

Boris foi preso pelos nazistas, porque sendo russo, era assemelhado aos judeus. Preso durante oito dias, foi liberado, quando conseguiu despir-se em conta de exibir que não era judeu e frequentara a igreja ortodoxa da Darsi.

6) Quanto à participação dos judeus na construção da psicanálise, Dolto afirmou:

6.1) “há um problema histórico, de fato, entre a psicanálise e a ‘judaïté’, melhor o judaísmo”;

6.2) respondendo se o fato de Freud ser judeu tinha importância para ela: “Sim, mas sobretudo porque ele recusava ser. Ele mesmo disse: ‘Não, não sou’, e por isso pode descobrir a psicanalise” (p. 159). Mas a forma de Freud, responder que não era judeu – contraditória – porque afirmava sê-lo, porém, descrente, sobretudo relativamente à prática, assim como à espiritualidade judaica; frente a tanta ambiguidade remanescia a dúvida do que pensava Freud.

6.3) Mas Dolto é incisiva, sem deixar dúvida: “Eu não creio que a psicanálise pudesse ser inventada por um não-judeu. Eu creio que, em uma época certa, a palavra, significando o que se pensava no inconsciente criativo, criativo de coesão carnal de um ser humano, de coesão biológica que faz um ser humano nasça e voltado à palavra, este não poderia de ser senão um judeu. Isto não poderias ocorrer de outra forma” (p. 160).

6.4) Naqueles tempos, – quando depois desse questionamento, Dolto foi emparelhada a Lacan, como os dois grandes nomes da psicanálise francesa. Ela contestou a metodologia do seu colega, mas concordou que, pelo fato de não serem judeus, de outra forma não poderia o desejo ser entendido, afirmando: “Sem sua ‘judaïté’, jamais teria sido podido entender o desejo. O entendimento do desejo no qual é Deus sem que o humano o saiba. Deus “mêlé” ao perverso, Deus “mêlé” ao refoulement, a vida “mêlé” ao desejo de morte, todo ato que faz este drama humano deve ser tomado eternamente no pecado original. É tudo do autor do mito da falta original que se enraíza na humanidade” (p. 162).

7) A narrativa, para terminar, da história pessoal de Dolto, impressa pouco depois de sua morte, é um diálogo com um psicanalista, uma troca de alto nível entre dois profissionais.

Encontram-se os fatos decompostos entre pessoas de mesma família, de amigos e de colegas, o cuidado em que foram abordadas questões técnicas, desde a psicose, até incursões meta-psicanalistas, como a pintura e a relação de seu interesse pela liturgia ortodoxa, oriunda do seu matrimônio com Boris.

Por fim, suas obras abordam temas relevantes que impelem os espíritos curiosos a de debruçarem sobre elas com toda afeição, interesse e introspecção, ainda que já se passaram muitos anos de sua Páscoa.


JAYME VITA ROSO – Graduado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, é especialista em leis antitruste e consultor jurídico de fama internacional, ecologista reconhecido e premiado, “Professor Honorário” da Universidade Inca Garcilaso de La Vega de Lima, Peru e autor de vários livros jurídicos. Saiba mais.

vitaroso@vitaroso.com.br


[1] DOLTO, Françoise. Autoportrait d’une psychnalyste 1934-1988. Paris: Éditions Du Seuil, 1989. 283 p.

[2] Os textos foram traduzidos livremente.

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