SHOFAR 5777 – RABINO MICHEL SCHLESINGER

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Por que será que tocamos este instrumento no período das Grandes Festas? Segundo a tradição, este é o período que corresponde aos quarenta dias, durante os quais Moshé esteve no Monte Sinai para receber a segunda versão das Tábuas da Lei.


Tekia, Shvarim, Teruá.

De todos os símbolos relacionados às Grandes Festas, o shofar é aquele que mais chama a nossa atenção. Este instrumento musical milenar já era tocado na época da Torá nas mais variadas ocasiões. O shofar convocava as pessoas para a guerra, anunciava a chegada de um novo mês, comunicava um falecimento na comunidade, embalava comemorações, entre diversas outras possibilidades.

Por que será que tocamos este instrumento no período das Grandes Festas? Segundo a tradição, este é o período que corresponde aos quarenta dias, durante os quais Moshé esteve no Monte Sinai para receber a segunda versão das Tábuas da Lei.

Conta um midrásh que o líder teria pedido ao povo que tocasse o shofar nos dias em que ele estivesse sobre a montanha para que os israelitas se lembrassem do pecado do Bezerro de Ouro.

Contudo, no judaísmo, nenhum costume ou tradição possui um único significado. Além das explicações tradicionais, somos convidados a criar nossa própria interpretação. Convido vocês a se aventurarem comigo e buscarmos, juntos, um novo significado para os toques do shofar no período das Grandes Festas.

A Torá conhece apenas dois toques do chifre do carneiro: tequia (o toque longo) e teruá. Como será que surgiu shvarim, o terceiro e toque?

Uma interessante discussão talmúdica tenta determinar como seria o teruá. Os rabinos concordam que ele deveria soar como um choro. Mais especificamente, o choro da mãe do general Sisrá quando soube que seu filho morreu na batalha ocorrida na época da profetiza Débora. Enquanto um rabino acreditava que o choro era soluçado, algo semelhante ao nosso teruá, outro sábio argumentava que o choro teria sido um lamento. Em coerência com sua tradição pluralista, o Talmude decidiu não adotar uma única opinião. Ao invés disto, introduziu um terceiro toque para acomodar as verdades divergentes. Assim nascia shvarim, o terceiro toque do Shofar, parecido com um lamento.

Penso que a comparação sugerida pelo Talmude entre o shofar e o choro merece atenção. Como me tornei pai da Tamar no início do mês de setembro, posso falar sobre choro com alguma propriedade.

Segundo Winnicott, pediatra e psicanalista inglês que viveu no século 20, a criança expressa todos os seus sentimentos por meio do choro. Ele pode significar fome, dor, desconforto, medo e pode também expressar excitação e prazer. Como este é o único mecanismo de comunicação disponível para o recém-nascido, é por meio do choro que a criança vai transmitir tudo o que se passa com ela.

Chegaram inclusive a inventar uma milagrosa babá eletrônica que analisa o choro e determina qual é o desejo do bebê. Obviamente o aparelho mais erra do que acerta. Para entender uma criança, somente a sensibilidade de uma mãe “suficientemente boa”, na linguagem no psicanalista inglês, ou um pai “suficientemente bom”, acrescentaria eu.

O shofar também é uma forma de comunicação não verbal. Assim como a criança informa pelo choro aquilo que não pode ser dito em palavras, o chifre de carneiro transmite o que as palavras não poderiam falar.

O período das Grandes Festas é uma época de muitas palavras. Pedimos desculpas para aqueles que ofendemos, mandamos cartões de Shaná Tová, lemos centenas de páginas de rezas em nossos machzorim, acompanhamos as leituras da Torá e Haftará. No entanto, em determinado momento, esgotam-se as palavras. Numa certa hora, já dissemos tudo aquilo que poderíamos dizer. Então o que fazemos? Tocamos o shofar. Por meio do instrumento musical mais antigo do mundo, comunicamos aquilo que as palavras já não podem transmitir.

Somos pessoas acostumadas a transformar todas as emoções em palavras. Precisamos resgatar o choro da criança que existe em cada uma e cada um de nós. Possuímos um poderoso shofar interior e muitas vezes nos furtamos em utilizá-lo por desatenção, comodidade ou medo. O nosso chifre de carneiro é nossa capacidade de comunicar emoções sem a necessidade de transformá-las em palavras. Acionamos nosso shofar quando nos permitimos chorar, abraçar, beijar, tocar, segurar a mão, ou apenas ficar em silêncio. Aliás, este último parece ser nosso shofar mais poderoso e um dos menos utilizados, o ensurdecedor barulho do silêncio. A força deste recurso foi lindamente captada pela liturgia das Grandes Festas. Ubeshofar gadol itacá vecol demamá daca ishamá. Dizemos na oração Unetanê Tokef: quando o grande shofar for tocado, um profundo silêncio será ouvido.

Por que, então, tocamos shofar no período das Grandes Festas? Inspirado na comparação que o Talmude traçou entre o instrumento e o choro, acredito que o chifre de carneiro representa nosso choro. Representa toda a gama de emoções que nunca poderemos traduzir em palavras. Assim como chorávamos quando éramos pequenos, precisamos ter coragem de chorar como adultos.

As palavras continuarão sendo essenciais em nossa comunicação com Deus, com os outros e com nós mesmos. No entanto, se nos limitarmos somente a elas, estaremos desperdiçando uma ferramenta valiosa para a expressão daquilo que sentimos.

Que Deus nos conceda a bravura necessária, neste período das Grandes Festas e sempre, para comunicar também aquilo que as palavras nunca poderão dizer. Sejamos capazes de usar com coragem nossos recursos não verbais. Que saibamos fazer bom uso do shofar que sempre existiu dentro de cada uma e cada um de nós.

Tekia, Shevarim, Teruá.

Shaná Tová!


RABINO MICHEL SCHLESINGER – Michel Schlesinger é bacharel em direito pela Universidade de São Paulo. Realizou seus estudos rabínicos e seu mestrado em Jerusalém, no Instituto Schechter. Nos Estados Unidos, trabalhou em um acampamento judaico, o Camp Ramah de New England, e se capacitou para dar apoio a doentes e seus familiares no Jewish Pastoral Care Intitute na cidade de Nova Iorque. Desde 2005 é rabino da CIP. Em 2012, por ocasião de seu ano sabático, passou três meses em Nova Iorque, onde visitou instituições judaicas e estudou Talmude no Jewish Theological Seminary. O rabino Schlesinger é representante da Confederação Israelita do Brasil (Conib) para o diálogo inter-religioso e coordenador da delegação judaica na Comissão Nacional de Diálogo CatólicoJudaico da CNBB. Em 2013 esteve em Doha, no Qatar, para a Décima Conferência Internacional de Diálogo Inter-religioso. No mesmo ano, concluiu seus estudos em gestão de sinagogas no Rabbinical Management Institute de Los Angeles. Casado com a antropóloga Juliana Portenoy Schlesinger e pai da Tamar e da Naomi.

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