ENERGIA RENOVÁVEL – POR RABINO JONATHAN SACKS

284_história_3_1Shabat é quando celebramos shalom bayit – a paz que vem do amor e mora na casa abençoada pela Shechiná, a presença de D’us que você pode quase sentir na luz da vela, no vinho e no pão especial.


A primeira tradução da Torá em outro idioma – o grego – ocorreu por volta do segundo século AEC, no Egito durante o reinado de Ptolomeu II. É conhecida como o Septuaginto, em hebraico Hashiv’im, porque foi feita por uma equipe de setenta eruditos.

O Talmud no entanto diz que em vários pontos os sábios trabalhando no projeto deliberadamente traduziram mal alguns textos porque acreditavam que uma tradução literal seria simplesmente ininteligível para uma leitura em grego. Um desses textos era a frase “No sétimo dia D’us terminou.”1 O que eles acharam, que os gregos não iriam entender? Como a ideia de que D’us fez o universo em seis dias faz mais sentido que Ele o fez em sete? Parece intrigante, porém a resposta é simples. Os gregos não podiam entender o sétimo dia, Shabat, como ele mesmo uma parte da obra da criação. O que há de criativo em descansar? O que conseguimos ao não fazer, não trabalhar, não inventar? A ideia parece não fazer qualquer sentido.

Na verdade temos o testemunho independente dos escritores gregos daquela época, que uma das coisas que eles ridicularizavam no Judaísmo era o Shabat. Um dia em cada sete os judeus não trabalham, diziam eles, porque são preguiçosos. A ideia de que o dia em si mesmo poderia ter valor independente estava aparentemente além da compreensão deles. Por estranho que pareça, dentro de um período muito curto de tempo, o império de Alexandre Magno começou a ruir, assim como a antiga cidade estado de Atenas que tinha dado origem a alguns dos maiores filósofos e escritores da história. Civilizações, como indivíduos, podem sofrer extinção. É o que acontece quando você não tem um dia de descanso anotado em sua programação. Como disse Achad ha-Am: “mais do que o povo judeu tem guardado o Shabat, o Shabat tem guardado o povo judeu.” Descanse um dia a cada sete e não será extinto.

O Shabat, que encontramos pela primeira vez na parashá desta semana, é uma das maiores instituições que o mundo jamais conheceu. Mudou a maneira de o mundo pensar sobre o tempo. Antes do Judaísmo, as pessoas mediam o tempo pelo sol –o calendário solar de 365 dias nos alinhando com as estações – ou pela lula, ou seja, por meses (“mês” vem da palavra “lua”) de basicamente trinta dias. A ideia da semana de sete dias que não tem contrapartida na natureza – nasceu na Torá e se espalhou pelo mundo via Cristianismo e Islã, dos quais ambos a emprestaram do Judaísmo, marcando a diferença simplesmente tendo-o em um dia diferente. Temos anos por causa do sol, meses por causa da lua, e semanas por causa dos judeus.

O que o Shabat fez e ainda faz é criar espaço dentro da nossa vida e da sociedade como um todo no qual somos realmente livres. Livres das pressões do trabalho; livres da exigências de patrões impiedosos; livres das sirenes de chamado de uma sociedade de consumo insistindo para que gastemos o tempo com felicidade; livres para sermos nós mesmos na companhia daqueles que amamos.

De alguma maneira este dia renovou seu significado geração após geração, apesar da mais profunda mudança econômica e industrial. No tempo de Moshê significava liberdade da escravidão ao faraó. No século dezenove e início do século vinte significava liberdade das condições de trabalho cansativas em troca de um pequeno pagamento. No nosso, significa liberdade de e-mails, smartphones e as exigências da disponibilidade 24/7.

O que nossa parashá nos diz é que o shabat estava entre as primeiras ordens que os israelitas receberam ao deixar o Egito. Tendo reclamado sobre a falta de comida, D’us disse a eles que lhes enviaria maná do céu, mas eles não deveriam apanhá-lo no sétimo dia. Em vez disso uma porção dupla cairia no sexto dia. É por isso que nesse dia temos duas chalot no Shabat, em memória daquele tempo.

Não apenas o Shabat foi culturalmente sem precedentes. Foi também de maneira conceitual. No decorrer da história as pessoas sonharam com um mundo ideal. Chamamos tais visões de utopias, do grego ou que significa “não” e topos, que significa “colocar”.2 São chamados assim porque nenhum sonho jamais se tornou verdadeiro, exceto em um exemplo, ou seja, o Shabat. O Shabat é “utopia agora”, porque nele criamos, por vinte e cinco horas por semana, um mundo no qual não há hierarquias, nem empregados ou empregadores, nem compradores ou vendedores, desigualdades de riqueza ou poder, nenhuma produção, nenhum tráfico, nenhum tumulto na fábrica ou clamor no mercado. É o “ponto parado do mundo ao redor”, uma pausa entre movimentos sinfônicos, uma pausa entre os capítulos dos nossos dias, um equivalente em tempo do campo entre as cidades onde você pode sentir a brisa e ouvir o canto dos pássaros.

O Shabat é utopia, não como será no final dos tempos mas sim, enquanto ensaiamos agora no meio do tempo. D’us quis que os israelitas começassem seu ensaio de liberdade de um dia em sete assim que deixaram o Egito, porque a verdadeira liberdade, dos sete dias em sete, leva tempo, séculos, milênios. A Torá considera a escravidão algo errado,3 mas não a aboliu imediatamente porque as pessoas ainda não estavam prontas para isso. Nem a Grã-Bretanha nem a América a aboliram até o século dezenove, e mesmo então não foi sem conflito. Porém o resultado era inevitável, uma vez que o Shabat tinha sido colocado em movimento, porque escravos que conhecem a liberdade por um dia em sete irão se revoltar contra suas correntes.

O espírito humano precisa de tempo para respirar, inalar, crescer. A primeira lei no controle do tempo é distinguir entre questões que são importantes, e aquelas que são meramente urgentes. Sob pressão, as coisas que são importantes mas não urgentes tendem a se amontoar. Porém essas são com frequência aquilo que mais importa para nossa felicidade e senso de uma vida bem vivida. O Shabat é um tempo dedicado às coisas que são importantes, mas não urgentes: família, amigos, comunidade, um senso de santidade, prece na qual agradecemos a D’us pelas coisas boas em nossa vida, e a leitura da Torá na qual relatamos a longa e dramática história de nosso povo e nossa jornada.

Shabat é quando celebramos shalom bayit – a paz que vem do amor e mora na casa abençoada pela Shechiná, a presença de D’us que você pode quase sentir na luz da vela, no vinho e no pão especial. Esta é uma beleza criada não por Michelangelo ou Leonardo mas por cada um de nós; uma ilha serena de tempo no meio do mar revolto de um mundo incansável.

Certa vez participei, junto com o Dalai Lama, num seminário (organizado pelo Instituto Elijah) em Amritsar, no Norte da Índia, na cidade sagrada de Sikhs. No decorrer das palestras, feitas para uma audiência de dois mil estudantes de Sikh, um dos líderes voltou-se para os alunos e disse: “O que precisamos é aquilo que os judeus têm: Shabat!” Imagine, disse ele, um dia a cada semana dedicado à família, lar e relacionamentos. Ele podia ver sua beleza. Podemos viver sua realidade.

Os antigos gregos não podiam entender como um dia de descanso podia ser parte da criação. Porém é assim, pois sem descanso para o corpo, paz para a mente, silêncio para a alma, e uma renovação dos nossos vínculos de identidade e amor, o processo criativo termina diminuindo e morre. Sofre entropia, o princípio de que todos os sistemas perdem energia no decorrer do tempo. O povo judeu não perdeu energia no decorrer do tempo, e permanece tão vital e criativo como sempre foi. O motivo é o Shabat: a maior fonte de energia renovável da humanidade, o dia que nos dá a força para continuar criando.

NOTAS

1. Talmud Babilônia, Meguilá 9 a.

2. A palavra foi criada por Sir Thomas More em 1516, que a usou como titulo de seu livro com aquele nome.

3. A respeito do erro da escravidão sob uma perspectiva de Torá, veja a importante análise em Mesillot Bilvavam de Rabino N. L. Rabinovitch, (Maaliyot, 2015), 38-45. A base do argumento é a opinião, central na Torá Escrita e na Mishná, de que todos os seres humanos partilham a mesma dignidade ontológica como a imagem e semelhança de D’us. Isso estava em profundo contraste com as opiniões, por exemplo, de Platão e Aristóteles. R. Rabinovitch analisa as opiniões dos sábios, de Rambam e Meiri, sobre a frase: “Eles serão seus escravos para sempre” (Levítico 25:46). Veja também a citação que ele faz de Job 31:13-15, “Se eu tivesse negado justiça a qualquer um dos meus servos… quando eles tiverem uma queixa contra mim, o que farei quando D’us me confrontar? O que responderei quando chamado a prestar contas? Não foi Ele que me fez no útero que fez eles? Não foi o Mesmo que nos formou dentro das nossas mães?”


JONATHAN HENRY SACKS, Barão Sacks, Kt (nascido em 08 março de 1948), título que lhe foi concedido pela Rainha da Inglaterra, é um rabino e estudioso do judaísmo. Ele foi o Rabino-Chefe das Congregações Hebraicas Unidas da Commonwealth, Londres. Seu nome hebraico é Yaakov Zvi. É fundador e diretor do Meaningful Life Center (Centro para uma Vida Significativa).

Fonte: www.pt.chabad.org

Fonte: www.beitchabad.org.br

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