FISIOPATOLOGIA DA CULPA E A ELISÃO DA LINGUAGEM – POR PAULO ROSENBAUM

315_ESPECIAL_1_1Hoje as lideranças terroristas perceberam que a propaganda de vitimização e falseamento de dados e imagens traz um saldo um pouco mais efetivo e é bem mais econômico do que providenciar a logística para os homens-bomba. A tática tem cobrado um alto preço para os judeus em Israel, mas também fora dele.


315_ESPECIAL_1_2É muito provável que quem viu o excelente filme “1945” (Hungria, 2017) ficou apreensivo nas poltronas e saiu com a sensação de ter vivenciado uma experiência única: acompanhar didaticamente as etapas de como opera a fisiopatologia da culpa. Sabe-se que cerca de 250.000 judeus foram mortos nos países do leste europeu depois que o nazismo já havia sido oficialmente derrotado. O filme — que se passa num pequeno vilarejo húngaro — mostra dois judeus vestidos em trajes tradicionais ortodoxos voltando de trem para o que seria sua cidade natal. Sua enigmática chegada agita a vila com apreensões e, mais uma vez, reacende-se — num conhecido e abjeto automatismo — o “problema judaico” como Marx gostava de se referir aquele que seria um elemento estranho e perturbador para suas propostas ideológicas. É sempre assim com doutrinas e ideologias, quando alguém ou alguma coisa não cabe nela, classifique-a como “problema” e, quando ninguém estiver por perto, elimine-a.

Imagino que boa parte das pessoas gostaria de acreditar — por conforto ou omissão — que isso é passado e o antissemitismo é página virada. Pois não é. Não faltam exemplos atuais. Uma parte dos legisladores na Polônia resolveu aderir à estratégia revisionista em alta mundo afora. A novidade agora é abolir o passado ou renegá-lo (o que parece ser cada vez mais tentador quando se fundem caneta e poder) através da criminalização instrumental da linguagem. A partir de agora o uso de expressões como “polish death camps” ou “campos de extermínio poloneses” será rigorosamente punida. Em recente sessão o parlamento polonês aprovou a resolução, que depois foi aprovada pelo senado, e agora apenas aguarda a sanção presidencial para entrar em vigor. O conteúdo poderia ser engraçado se não representasse um escárnio contra a história e um atentado à livre expressão. A lei em vias de ser aprovada: será crime passível de punição legal e pena que inclui a prisão por até 3 anos de detenção para quem, por exemplo, usar a expressão “campos de extermínio poloneses”. De fato, para sermos justos, os campos onde se naturalizou a chacina e a crueldade contra judeus e outras minorias, foram instalados pelos invasores alemães em território polonês. O que não se consegue explicar — e a justificação funcionaria como confissão — é por que 250.000 judeus encontraram a morte, a espoliação de bens e a expropriação de patrimônio bem depois que os nazistas foram derrotados. A solução imaginada aqui e acolá é apenas uma tentativa ineficiente de reverter a culpa pela conivência de uma parcela da população e governos à época da guerra. Mais eficaz seria mudar esta percepção expondo os horrores de toda forma de intolerância, mas as soluções fáceis e sinistras são as mais caras ao nosso tempo. Virou hábito retorcer os processos históricos, de fato é um dos vícios em nossa era.

O que vale notar é que fenômenos como este denotam — mais frequentes nas extremas esquerda e direita — algo para além do mero revisionismo. É a linguagem que entra em mutação para construir uma elisão instrumental da linguagem. E a armadilha não é só a proibição de narrativas incomodas. A legenda do clube associativo Psol-PT recém publicou uma nota que repudia a presença da comissão LGBT de Israel na parada Gay realizada em São Paulo, por sinal, o único País democrático do oriente médio e também o único que não discrimina esta comunidade. Enquanto isso, os arautos da probidade socialista exaltaram a delegação palestina onde os gays são rotineiramente esfolados vivos. Não é caso isolado, a estupidez política tomou proporções de pandemia e a desonestidade intelectual assumiu o comando naqueles que deveriam ser os grandes centros do saber.

O mesmo engano persistente de análise está ocorrendo no acirramento atual entre Israel e as organizações que declararam abertamente em sua “carta”constitucional o desejos de exterminar aquele Estado. A estratégia adotada, e muito bem aplicada, por parte dos grupos terroristas, com destaque para o Hamás que oprime — diante dos olhos inertes do mundo — os cidadãos na faixa de Gaza. Usando táticas da chamada guerra assimétrica e financiado pelos aiatolás iranianos, monarquias árabes e jihadistas mundiais eles buscam na imolação de sua população civil numa tática para fazer ressaltar a suposta “desproporção” de forças. Apesar de ser patente o desequilibro, nem de longe, ele tem sido transferido à ação. Existem vários relatórios — pouco divulgados por uma imprensa especializada na pré condenação do Estado judaico — que as forças de defesa de Israel têm um dos exércitos que mais se preocupa com a preservação da população civil.

Está acontecendo em tempo real, aqui e agora. Poderia ser qualquer destes dias, mas hoje mesmo que é o dia final do Ramadã, o mês de jejum dos islamistas, a população civil de Gaza está sendo “convocada” — a 100 dólares a cabeça — para ir até a cerca que separa os dois territórios para lançar pipas incendiárias, coquetéis molotovs e outros artefatos caseiros, porém mortais, contra a fronteira sul de Israel. A mídia tem se esmerado em cobrir o “lado mais fraco” esquecendo-se que Israel já devolveu Gaza aos palestinos há quase uma década além de fornecer água, combustível e energia aos seus habitantes, a despeito dos mísseis e morteiros que recebe em suas cidades, nos parques e nas escolas do sul do País. Enquanto isso, boa parte da ajuda bilionária recebida é direcionada pelos dirigentes palestinos para táticas de guerrilha, compra de material bélico e construção de túneis para infiltrar terroristas Vale dizer, Israel pode cometer erros, mas entre eles nao está a despreocupação com o caráter e espírito humanista que fundou as bases sionista para o retorno dos judeus à sua terra ancestral.

O que se vê, entretanto, na linguagem escrita e falada — No Brasil e pelo mundo — são as velhas e ressuscitadas acusações contra Israel e seus habitantes que sim, lembram a pregação sistemática contra os judeus durante o III Reich alemão. Tanto na testeira dos jornais como nas manchetes Israel figura como vilão a priori, de qualquer forma, em todas as circunstâncias. É sob esta manipulação que vivemos, com o agravante de que isso é muito mais grave do que a mera adulteração das notícias: envolve um esgarçamento da linguagem. É apenas um passo então, para obter o monopólio do pensamento. Assim, a comunicação confessa, sob tortura, que a elisão linguística encontra-se de fato instalada no mainframe. Pois o que será que estes jornalistas e professores universitários aprenderam na graduação sobre o conflito israelo-palestino senão uma doutrinação maniqueísta reiterada e nada reflexiva de que o Estado hebreu é o algoz e a eternas vítimas são os palestinos? Pois não é que as “vítimas” escutaram as aulas magistrais e assimilaram a doutrina?

Hoje as lideranças terroristas perceberam que a propaganda de vitimização e falseamento de dados e imagens traz um saldo um pouco mais efetivo e é bem mais econômico do que providenciar a logística para os homens-bomba. A tática tem cobrado um alto preço para os judeus em Israel, mas também fora dele. O que o Ocidente ainda não detectou é o tamanho do arrastão que o aguarda. O preço impagável que essa mesma demonização gerará, tal qual o efeito-espelho — sobre as sociedades europeias como um todo. Se os refugiados merecem abrigo, o mesmo não se pode dizer dos jihadistas do Islã radical, que hoje gozam de tolerância excessiva dos países da União Europeia. No entanto, à portas fechadas, já é possível perceber a insônia em Bruxelas e alguns começam a admitir o tamanho do equivoco em receber milhões sem criar uma estrutura econômica e social que os acolha. E principalmente a indulgência exagerada O excesso de civilidade com a barbárie pode ser um sintoma de falência da cultura, pois como escreveu Isaiah Berlin, “liberdade para os lobos significa morte para as ovelhas”.

Segundo a matéria publicada no NYT, a intenção dos revisionistas é redirecionar a culpa que ainda pesa — justificadamente — sobre os países que colaboraram ativamente com os nazistas durante a segunda guerra mundial e fazê-la recair, exclusivamente, sobre os seguidores de Adolph. Este escritor, descendente de judeus poloneses — cujo avô serviu o exército da Polônia — tem orgulho de ter ele mesmo uma parcela polonesa e sugere portanto que as autoridades locais abandonem ou reformulem o projeto.

A história já nos ensinou que a farsa, mesmo quando muito bem estruturada, acaba desmontada pela própria força dos eventos e, como um elástico super tensionado, quando não há mais nada artificial que o detenha, volta com violência à posição original, espirrando para longe toda impregnação manipulada. Há um bumerangue à deriva, e ele está vindo com força direto em nossa direção. Desta vez, não nos desviaremos.

Paulo Rosenbaum – Médico e escritor, assina a coluna semanal “Coisas da Política”, no JB – Jornal do Brasil. Saiba mais.


Mais conteúdo sobre: O filme “1945”fisiopatologia da linguagem e a elisão da linguagem

https://brasil.estadao.com.br/blogs/conto-de-noticia/fisiopatologia-da-culpa-e-a-elisao-na-linguagem/

20
20