COM TRADIÇÃO DE 5 MIL ANOS, COZINHA JUDAICA É RICA EM SAÚDE E CULTURA – LUCIANA MASTROROSA

324_fique_1_1Crédito: iStock

Em termos de alimentação, é inegável que a cultura e a religião exercem uma influência considerável sobre hábitos, atitudes e a nutrição, em si. A maioria dos povos ao redor do mundo criou suas próprias tradições e considerações sobre uma alimentação saudável e correta, e a manutenção desses hábitos é essencial para se levar um estilo de vida que combine o prazer de comer aos cuidados com a saúde.

Já falei por aqui, por exemplo, da dieta nórdica, com sua riqueza de peixes, vegetais e produtos locais, ou ainda a culinária japonesa, considerada uma das mais saudáveis do mundo, contribuindo inclusive para a longevidade. Desta vez, falo da culinária judaica, menos difundida fora de sua comunidade (pelo menos aqui no Brasil), mas riquíssima em tradição, cultura e identidade – e em ingredientes e hábitos que podem ser incorporados também por quem não segue essa religião.

A ideia de falar dessa cozinha tão rica e antiga (mais de 5 mil anos de tradição!) veio com o relançamento do livro “Cozinha Judaica”, de Marcia Algranti (editora Record, R$ 89,90). A obra, um clássico da literatura gastronômica, volta às livrarias com novo formato e 480 páginas de muita informação para quem deseja saber mais não só sobre alimentação judaica, mas também sobre essa cultura diversa, ritualizada e que conseguiu se manter por milênios, apesar de toda a perseguição sofrida.

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Dois estilos, duas contribuições
O livro é um verdadeiro passeio sobre a história do povo judeu, e mostra como a religião judaica é definidora para os hábitos alimentares de quem a segue. Com riqueza de detalhes históricos e culturais, Marcia relata como funcionam todas as festas e ritos simbólicos judaicos, sempre com um enfoque na parte alimentar, intrinsecamente ligada a essas celebrações. Assim, aprendemos, por exemplo, que o Cholent e a Adafina são os pratos judeus que mais influenciaram outras cozinhas pelo mundo. E foram a solução encontrada para usufruir de uma comida quente no Shabat (o descanso semanal judaico), sem precisar acender o fogo. Dentre os ícones dessa cozinha, não se pode esquecer dos pães e seu simbolismo, como o Challah, um pão em formato de trança. Servido em ocasiões especiais, ele representa a criação de laços e a continuidade das tradições familiares.

Como explica a autora, a alimentação judaica foi sendo formada ao longo de milênios como um mosaico, de acordo com os locais onde as comunidades conseguiam se desenvolver e praticar livremente sua religião. Assim, essa cozinha é marcada por dois estilos diferentes: ashkenaze e sepharade. Vindos de uma região fria, os ashkenazim baseiam sua alimentação principalmente em gordura de galinha, cebola, alho, repolho, cenoura, beterraba e batata, além de peixes defumados e salgados, como a carpa e o arenque.

É uma cozinha mais austera, baseada em sabores de subsistência, mas não menos nutritiva: o frango é fonte de gordura saturada, necessária para a boa saúde, e a banha obtida da ave pode ser feita em casa mesmo, derretendo-se as peles de frango em fogo baixo. O resultado é uma gordura rica e dourada, que fica particularmente boa nas sopas e caldos judaicos (ótimo para o restauro dos convalescentes), e torresminhos crocantes de pele de frango para servir de aperitivo.

A raiz-forte é um condimento tipicamente usado para acompanhar carnes e peixes, e sempre é servida com o gefilte fish, um dos pratos emblemáticos judaicos. Além de seu sabor picante característico, a raiz forte tem sabor parecido com o do wasabi, tempero usado na cozinha japonesa, e, por sua pungência, é recomendada para aliviar problemas respiratórios, como gripes, sinusites e bronquites, além de atuar como diurético, atenuante para problemas hepáticos e digestivos e, ainda, como vermífugo. Outro diferencial da cozinha ashkenaze é a combinação de vinagre, suco de limão, sal e açúcar ou mel, contribuindo sempre para um fundo agridoce nos preparos – e, também, ajudando a preservar os alimentos por meio de conservas naturalmente fermentadas, como a de pepinos, ricas em probióticos.

Por outro lado, a cozinha dos sepharadim é mais diversa e tem fortes marcas da dieta mediterrânea, considerada uma das mais saudáveis do mundo. Como os judeus sepharadim foram expulsos da Espanha durante a Inquisição, acabaram por se dispersar por todo o Mediterrâneo. Dessa forma, incorporaram ingredientes locais para seus hábitos também, sem deixar de lado as regras e leis que regem a forma de se alimentar judaica (como o não consumo de carne de porco, por exemplo, nem de crustáceos).

Por isso, a cozinha dos sepharadim é rica em frutas, ervas, grãos e especiarias mediterrâneas, como alcachofras, aipo, aspargos, espinafre, alfaces variadas, tomates, berinjelas, azeitonas, pimentões, pepinos, feijões-verdes, favas, amêndoas, melões, tamarindos, abricós, uvas, etc. O vinho, rico em polifenóis, também garante presença na mesa judaica. Por isso, como relata Marcia, a cozinha sepharadim é considerada uma cozinha mais “próspera, colorida e variada”.

Isso resulta em benefícios também para a saúde, pois o consumo de frutas, verduras e legumes, em particular os de época e locais, é altamente recomendado para evitar o desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis, como hipertensão, obesidade e diabetes, algumas das principais causas de morte no mundo atual. Diferentemente da cozinha ashkenaze, a sepharade é abundante em azeite de oliva, rico em gordura monossaturada, uma das mais benéficas para a saúde cardiovascular, além de cítricos (fontes de vitamina C e antioxidantes) e frutas secas oleaginosas, como amêndoas e avelãs, consideradas um superalimento por conterem quantidades importantes de proteínas e gorduras de alta qualidade.

324_fique_1_3Challah, pão da tradição judaica – Crédito: iStock

É preciso ser kosher?
A alimentação dos judeus, como disse acima, é fortemente baseada em sua religião. Por isso, os mais ortodoxos seguem os preceitos à risca, alimentando-se de um tipo específico de alimento, chamado de kosher ou kasher. Isso implica em seguir regras estritas de combinações alimentares, como não misturar carnes e leite, abater os animais de uma forma específica, remover completamente o sangue dos animais antes do consumo, etc. Há mercearias especializadas em oferecer alimentos kosher, com selos que garantem que os preceitos foram seguidos. Porém, a amplitude da culinária judaica é tamanha que, mesmo não sendo judeu ou seguindo uma alimentação kosher, muitos dos sabores, receitas e ingredientes típicos dessa cozinha podem ser absorvidos.

O mais importante, para mim, é observar como a cultura alimentar tem sido tão definidora para marcar a identidade do povo judeu, ao mesmo tempo em que suas regras alimentares os auxiliaram a manter a saúde em meio aos momentos de crise. Como afirma Marcia no livro, “os hábitos alimentares são como genes em cada família, de uma geração para outra. Por meio de pratos familiares, pode-se definir sua identidade geográfica, e nesse sentido a cozinha judaica tem um sabor de memória, apesar de apátrida por séculos, por conta de ter sofrido o difícil caminho da diáspora”.

E, mesmo sendo milenar, continua a nos ensinar a importância de se utilizar ao máximo o que se tem à mão, produzido de forma local, adaptando o que é possível e atraindo novos sabores para receitas velhas conhecidas. Como afirma Marcia, “Dentro desse espírito, a principal influência [que a cozinha judaica] recebeu foi a mobilidade imperiosa que fez com que fosse obrigada a fazer uso daquilo que se encontrasse disponível. Foi uma cozinha que se desenvolveu por pessoas comuns, cozinhando para suas famílias, tendo muitas vezes que improvisar, onde quer que estivessem.” E não é um pouco assim também a nossa vida, independentemente de nossas fés ou crenças?


Sobre a Autora
Luciana Mastrorosa é apaixonada por escrever, cozinhar e comer. Jornalista especializada em gastronomia e pesquisadora da área de alimentação, passou pelos principais veículos do país. Formada no Le Cordon Bleu Paris e Université de Reims Champagne-Ardenne, atualmente cursa o Mestrado em Nutrição Humana Aplicada, na Universidade de São Paulo. É autora do livro Pingado e Pão na Chapa – Histórias e Receitas de Café da Manhã (editora Memória Visual) e do e-book “Natal Feliz – 30 Receitas Incríveis para a Sua Ceia”.


Fonte: https://menudodia.blogosfera.uol.com.br/2018/09/27/com-tradicao-de-5-mil-anos-cozinha-judaica-e-rica-em-cultura-e-saude/

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