UM PRÍNCIPE NEGRO EM PORTO ALEGRE – POR FELIPE DAIELLO

331_especial_1_1Um Príncipe Negro em Porto Alegre – Mérito Cultural no XI Concurso FECI-Inter de 2018

331_especial_1_2Ainda pequeno, ouvindo escondido palestras dos mais velhos, conhecidos políticos do meu pai, de relatos das revoluções que ensanguentam as coxilhas do meu Rio Grande, nomes de Júlio de Castilhos, de Borges de Medeiros, de Pinheiro Machado despertam eventos que preciso gravar. Menção a personagem misteriosa, desconhecida, despertam a curiosidade. Um príncipe negro em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul?

Com poderes estranhos, fama de curandeiro, de pessoa capaz de acalmar os espíritos, era solicitado para prever fatos futuros, com capacidade para solucionar situações políticas desconhecidas. Qual seria o perfil do Eminente Príncipe Negro?

O tempo passa, a criança cresce, fatos da infância perdem brilho, mas deixam sulcos na memória. Traços que os anos não conseguem deletar. Príncipe Custódio? Preciso retomar a busca?

No Mercado Público da cidade, seguro, conduzido pelas mãos do meu progenitor, curioso, vendo detalhes das mercadorias, novidades, descobri o significado do Bará, Símbolo religioso, místico de uma raça, de um credo. Localizado bem no centro, na encruzilhada dos caminhos, espaço ocupado por banca central, o seu significado era desvendado para curiosidade de criança.

Mais do que uma entidade juvenil, representa espírito rebelde, jocoso, não cumpridor das normas e refratário às ordens do universo dos orixás, as raízes baianas do meu pai traziam as informações requeridas.

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Colocado, talvez em segredo, pelos escravos durante a execução das fundações do mercado. Mais do que um marco, representa o cruzeiro, o local sagrado para a colocação das oferendas exigidas pelas divindades africanas.- aos pouco, ouvidos atentos, aprendiam novas lições.

Mais tarde, bem mais tarde, removida a banca invasora, o sítio recupera a sua posição de respeito para as intenções originais e para as realizações rituais.

A contribuição dos negros escravos, no Estado, está associada a instalação das charqueadas nas zonas fluviais, dos arroios da cidade de Pelotas. Para aproveitar a disponibilidade da matéria-prima, dos bois livres nas coxilhas do Pampa, a mão de obra negra não tinha substituição. Para o sacrifício e abate dos animais, no uso da faca curva usada nos abates, como em rito tradicional, eles eram insubstituíveis.

Bem antes da Lei Áurea, a escravidão fora a abolida no Rio Grande, mas os antigos laços da servidão ainda permaneciam numa sociedade rural e patriarcal. A colônia africana, com seus rituais e batuques, permanecia isolada nos seus núcleos em Porto Alegre.

Página de jornal fez a primeira referência. No sul do Estado, partindo de Bagé e depois nas cidades de Pelotas de Rio Grande, notícias de um curandeiro africano, chamavam a atenção.

Nascido na Nigéria, seria soberano destronado pelos ingleses e, para evitar conflitos, desterrado para a América. Custódio Joaquim de Almeida, era a denominação local de Osuanlele Okozi Erupê; em troca recebia estipêndios em libras inglesas. Recursos suficientes para manter sua posição real em qualquer lugar do mundo. Sua vinda para o Brasil, as razões ainda permanecem desconhecidas. Pelos dados, chegou no início do século XX. Teria 70 anos?

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O que teria motivado sua vinda para o Brasil? Por onde andou até a sua chegada no Estado que tinha Júlio de Castilhos como chefe; época em que o Mundo perguntava se haveria separação do Rio Grande do Sul da Nova República Brasileira. O mistério, todo, está aberto as pesquisas.

Alto, vestido de branco, com o gorro tradicional das elites africanas, era personagem de respeito. Falando diversas línguas, culto, mantinha residência adequada na cidade baixa, na capital porto-alegrense. Com séquito de servidores, muitos brancos e mestiços, mantinha posição de respeito e de prestígio. Era considerado pessoa importante, convidado para festas e para cerimônias no Palácio do Governo.

Nas celebrações dos 100 anos de vida, as festanças duraram 3 dias. Música, ao som dos tambores, comidas, homenagens e honras ao chefe da comunidade; era o reconhecimento da sua importância.

Com o dinheiro recebido, libras de ouro, fornecidas mensalmente, mantinha oito filhos, quatro atendentes por dependente, esposa e serventes. Fanático por cavalos de corrida, inclusive importados da Inglaterra, tinha equipe para tratar dos seus atletas. Era o tratador quando participava das corridas dominicais.

Vida de rei, durante os 30 anos em que viveu em Porto Alegre. Até a sua morte em 1935, como líder da sua comunidade, ajudava monetariamente os necessitados e dentro do possível, pela sua influência junto ao Palácio Piratini, tentava solucionar os problemas normais de todos.

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Para escapar da canícula dos verões, em carretas puxadas por bois ia para Cidreira, a praia mais perto. Carregadas de víveres, incluindo alfafa para os seus cavalos, o trajeto era feito sem pressa. Paradas aleatórias, no caminho, rendiam homenagens, festas, comilanças que ele patrocinava. De antigos quilombos, as pessoas vinham prestar tributo ao seu Rei. Todos queriam conhecer e apertar as mãos de ilustre personagem.

Não media esforços em ajudar no que fosse possível; dava consultas, usando as ervais locais na sua medicina e palavras de apoio nos diversos dialetos que dominava. Nas poucas fotografias existentes, aparece, vestido a rigor, como soberano africano.

Ao falecer, suas exéquias seguiram os ritos da sua pátria; festas, alegria no ritmo dos tambores africanos, som que ele introduziu nos batuques que enchiam as madrugadas nos morros da cidade. Algo que continuou por muito tempo como simbolismo das religiões africanas, como recordação eterna ao Príncipe Negro Custódio. O que fica em suspense, sem respostas, já que morava perto do Estádio dos Eucaliptos, inaugurado em 1931, seria a sua atuação no futebol. Pelas suas raízes inglesas, não teria apoiado a comunidade negra de Porto Alegre que tinha no Sport Clube Internacional a única oportunidade de aparecer em esporte que ganhava o mundo?

Não teria sido colocado o Primeiro Príncipe Negro a reinar em Porto Alegre?

Obs. Conforme informação do escritor Roberto Rossi Jung, autor do livro “O Príncipe Negro, recomendo a leitura, as cores da sua escuderia tinham o vermelho e o amarelo como símbolos. A ausência do padrão tricolor não seria outra confirmação, a resposta?


FELIPE DAIELLO – Autor de vários livros, dentre os quais “Palavras ao Vento” e ” A Viagem dos Bichos” – Editora AGE – Saiba mais.

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