PABLO NERUDA. O HOMEM PRECEDE A LENDA – FELIPE DAIELLO

FELIPE LUIZ DAIELLO


Poeta imortalizado em 1971, expoente máximo da literatura chilena, nasceu com nome estranho: Ricardo Eliecer Neftali Reyes Basoalto.

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Neruda foi a denominação que retirou das ladeiras de Praga — capital da república Checa —, ao reconhecer o talento de outro poeta. Numa visita tente localizar a casa onde morou a inspiração; fica no caminho do Castelo de Praga.

Não falaremos do poeta, mas apenas do personagem humano; simples, tímido, desorganizado, como ele mesmo afirma, com voz hesitante, num audiovisual produzido pela Universidade do Chile.

Nascido em 1904, no extremo sul do Chile, teve a floresta, as folhas e a madeira das árvores, os pássaros, como os primeiros inspiradores. As lendas das populações indígenas de Temuco, as chuvas alucinantes, persistentes, serão musas e companheiras eternas.

É importante observar como ele viveu, onde e como morou, o que fazia no dia a dia para compreender em parte, se possível, a sua personalidade, a sua característica humana.

Observador do mundo, como embaixador do Chile em terras do extremo oriente, absorverá conhecimento e os prazeres dos exploradores dos continentes, dos marinheiros e dos seus navios. De lá trouxe a primeira esposa, origem holandesa.

Apesar de amar o mar, tinha medo e desconforto ao enfrentá-lo.

Nas três casas, onde viveu, podemos encontrar as pegadas deixadas no seu livro de vida. Todas as casas possuem detalhes construtivos de navios: teto baixo, escadas íngremes, circulação estreita, diversos ambientes em cada andar. Observando as minúcias em Isla Negra, Sebastiana e La Chascona — nome das suas residências — o que dizemos fica claro.

Toda a decoração é feita com motivos náuticos. Réplicas e maquetes de navio, quadros e reproduções de barcos e marinas. Esculturas de proas de antigos navios eram a sua paixão. Estão por toda a parte.

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Comprador compulsivo, presença frequente, assídua em feiras e leilões, aumentava aos poucos as suas coleções. Lembranças de infância, a necessidade de juntar peças surge em cada canto, em cada armário e prateleira. Garrafas de vidro, porcelanas, estátuas. Nunca perderá o impulso infantil de amontoar besouros, conchas e outros bichos. No exterior, em viagens não perdia as tradicionais feiras de antiguidades.

Após doar a imensa coleção de conchas para a Universidade Chilena, não resistiu a tentação de reiniciar a pesquisa e outra busca incessante. A segunda coleção tem mais de 3.000 peças.

Com a carreira diplomática, desde cedo suas amizades possuem raízes internacionais: Rivera, Picasso, Garcia Lorca, Hemingway, Niemayer, Jorge Amado e muitos outros.

Seu viés ideológico é moldado, como embaixador, no período em que convive com a Revolução Civil na Espanha.

Simpatizante dos republicanos, no entanto, não se engaja na Brigada Internacional, força que abriga intelectuais ocidentais que possuíam a mesma visão. Lutar contra o fascismo era a bandeira em voga. Na Espanha, duas correntes destroem a nação, a divisão continuará mesmo após a morte do Generalíssimo Franco.

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Amante da boa mesa, dos bons vinhos — Cabernet Sauvignon —, dos fortes wiskys, gostava de receber em mesa farta os seus amigos, colegas e convidados. Especialista em coquetéis não admitia que ninguém entrasse no seu bar. Ali era o senhor, o dono absoluto. Heresia a tentativa de qualquer intrusão no santuário.

Para quem se considerava um comunista, marxista de primeira comunhão, parece haver um contrassenso.

Senador, em 1948, pelo Partido Comunista precisa fugir disfarçado — usa barba — para o exterior. A escapada tem características de novela.

A fuga pela cordilheira dos Andes, o emprego do cavalo, os disfarces, são peripécias que as fotos e os jornais da época reapresentam. Na ilha de Capri, com a terceira mulher, refugia-se em casa de amigo; La Chascona, artista de teatro chilena, será a parceira até o último momento.

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Em 1950, em Varsóvia, junto com Pablo Picasso, participou de Congresso pela Paz Mundial. A pomba branca, estilizada por Picasso, torna-se símbolo mundial, imortal. O interessante, fato que os poloneses não esquecem: na oportunidade milhares de poloneses eram desterrados para a União soviética. Deslocados em vagões de carga, eram necessários para suprir a falta dos braços exigidos para a reconstrução soviética do após-guerra.

Durante os anos de Stalin, como tantos outros intelectuais e escritores de renome, foi voz omissa ao sofrimento e a perseguição sofrida por escritores rebeldes que ousavam contestar o regime.

Em audiovisual, feito em Valparaiso, afirma em voz sem grande expressão, lenta, mesmo enfadonha, ser um simples tolo, uma criança grande, desorganizada, que detesta as matemáticas, mas que adora e vive a poesia. Razão de sua existência. Fanático pelas coleções, não cessa nunca a busca das suas preciosidades. Em Paris não perde os leilões e as oportunidades. Os desejos infantis de juntar insetos, besouros, nunca cessarão. Admirável a coleção de esporas, estribos.

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Lembra o desejo de criança, quando vivendo em Temuco, passava por loja que apresentava na vitrine um cavalo de madeira em tamanho natural. Muitos anos, após um incêndio que consumiu a loja, consegue concretizar o seu sonho. O salvado do incêndio foi presente dos amigos. O estranho são os rabos, por sinal três. Os ornamentos podem ser vistos em Sebastiana, residência museu em Valparaiso.

Nas suas residências, com todo o conforto possível para à época, utiliza a madeira como vigas, suporte e apoio estrutural, as telhas são de zinco, essenciais para reproduzir e ampliar os movimentos das chuvas e dos ventos. As recordações da infância, em Temuco, são imprescindíveis.

Seu ambiente de trabalho, normalmente tinha dois pontos especiais em cada residência, estava sempre voltado para o mar.

Sua cama possuía localização estratégica, meio enviesada no quarto, permitia sempre olhar o parceiro, o instigador, o desafiante à sua inspiração: o mar.

Antes de começar a trabalhar, tinha o hábito de lavar as mãos.

A caligrafia é clara, letras grandes, espaçadas, no branco das folhas.

As bibliotecas, principalmente em La Chascona, mostram os seus autores prediletos: Edgar Allan Poe era um deles.

Adorava as revistas de viagem, os artigos científicos, tudo relacionado ao Universo que tanto amava.

O interessante, o pitoresco, era o barco localizado em Isla Negra. Nele, com quepe de comandante, recebia os amigos para festas e comemorações. No entanto, a embarcação nunca enfrentou nenhuma das ondas que vinham teimosas do Oceano Pacífico.

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Junto à sua escrivaninha ainda se escuta:

“O oceano escapou do mapa.

Não havia lugar para colocá-lo.

Tão grande, desordenado e azul.

Não cabia em nenhum lugar.

Por isso o deixaram

Junto a minha janela.”

Pablo Neruda


Felipe Daiello – Autor de “Palavras ao Vento” e “A Viagem dos Bichos”Editora AGE. Saiba mais.

www.daiello.com.br

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