IDENTIDADE JUDAICA NA MESA – POR HENRIQUE VELTMAN

341_especial_2_1Nos filmes judaicos (e filmes sobre judeus) a comida íidiche, casher ou não, representa tradições, história e identidade. Pra não ir muito longe, é o que acontece nos filmes de Woody Allen.


Há muitos anos, escrevi um artigo sobre a via gastronômica da identidade judaica. Eu falava da mágica do guefilte fish, do herring, do borscht e dos vareniques sobre o mais desligado dos judeus, até mesmo aqueles que se declaram brasileiros de remota origem judaica.

Narrei a aventura vivida no restaurante Europa (que não existe mais), no Bom Retiro, quando alguns dirigentes do Fundo Comunitário, à custa de algumas doses generosas de vodca e um prato cheio de vareniques e kischkes, lograram comover o coração empedernido de um empresário da área de revistas e TV, e arrancar, ali mesmo, na mesa do restaurante, uma generosa contribuição para a Magbit.

Ou seja, em muitas ocasiões, o caminho mais fácil para que alguém assuma ou reassuma a sua identidade, passa necessariamente pela tradicional mesa judaica.

Numa edição da revista de A Hebraica, num janeiro que já vai longe, o Breno Lerner escreveu com talento sobre a falta de charme da culinária de Hollywood. Mas ele não comentou a presença iídiche na sétima arte americana.

E aí surge a pergunta, e a culinária judaica, como ela é tratada no cinema americano?

Nos filmes judaicos (e filmes sobre judeus) a comida íidiche, casher ou não, representa tradições, história e identidade. Pra não ir muito longe, é o que acontece nos filmes de Woody Allen.

Beigales e caviar

Beigales, matzot e sanduíches de pastrami em pão de centeio são definitivamente judeus. Já o pão de forma branco, a maionese, o presunto e as lagostas simbolizam tudo o que não faz parte do universo judaico. Como dizia o comediante Lenny Bruce, “presunto enlatado é goy e pão de centeio é iídiche?”.

Em A História de Benny Goodman , filme de Valentine Davies de 1955, o personagem principal namora uma gentia. Quando ela pergunta à mãe de Goodman a razão pela qual se opõe ao casamento, a futura sogra responde: “Beigales e caviar simplesmente não combinam”.

A saudosa Nora Ephron, que escreveu os roteiros de Julia e Julie, Harry e Sally e Sintonia de Amor, traduziu como gentio o caráter étnico-social da maionese Hellman’s.

No filme Hannah e Suas Irmãs, o personagem Mickey, interpretado por Woody Allen, resolve se converter ao catolicismo. Chega em casa, retira da sacola do supermercado uma embalagem de Wonder Bread e um vidro de maionese Hellman’s.
A antropóloga americana Ruth Behar às vezes expressa o desconforto que sente por ter se casado com um homem que come “pão branco e maionese”.

No telefilme de Susan Mogul, realizado em 1984, The Last Jew in America, Barbara, a heroína que tenta atrair um rapaz judeu fingindo ser cristã, compra um pão de forma Wonder Bread e remove de sua despensa não apenas a caixa de matzá como também todas as embalagens de comida chinesa (preferência absoluta entre os judeus norte-americanos).

No filme Essa Estranha Atração, dirigido por Paul Bogart em 1988, Anne Bancroft, que interpreta a mãe do protagonista gay, vasculha os armários da cozinha na casa do filho à procura de farinha de matzá.

Quando encontra a caixa, não se contém: “Ele tem matzemail! Eu o criei como se deve!” O fato do filho usar um produto tipicamente judaico torna-se, naquele momento, uma compensação frente a sua opção sexual.

No centro do conflito

Na famosa seqüência do orgasmo em Harry e Sally, filmada na Katz’s, tradicional delicatessen kasher no Lower East Side de Manhattan, Harry, como bom judeu, pede um sanduíche de pastrami no pão de centeio e faz cara feia quando Sally, a shikse, escolhe um sanduíche de peito de peru e maionese no pão branco. Uma cena parecida acontece em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, um Woody Allen de 1977.

A questão dos sanduíches simboliza as diferenças culturais entre judeus e suas amadas não judias e os problemas que, talvez, venham a enfrentar no futuro. Mas não é só deles a prerrogativa: tanto em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa como em A descoberta de Leon (1992), de Jean Vadim e Gary Sinyor, tentativas patéticas de escaldar, cozinhar e comer lagostas evidenciam a distância entre desajeitados protagonistas judeus e seus objetos (não judaicos) de atração erótica.

A carne de porco, proibida pelas leis da kashrut, também sinaliza o abismo entre judeus e gentios, representando tudo aquilo que é taref, treif, ou não kasher. Lá atrás, em 1930, Big Boy, filme estrelado por Al Jolson, termina com o protagonista cantando as alegrias de voltar para casa, à sua pequena cabana. Rica em detalhes, a letra da música exalta o aroma do presunto que sua mãe prepara. Uma breve pausa e, então, Al Jolson diz: “Presunto?…Espere aí! Esta não é a minha casa!”.

Em O Cantor de Jazz o personagem desse mesmo Al Jolson faz questão de consumir ostensivamente comida não kasher: assim que abandona a casa de sua família ortodoxa para lutar por uma carreira no palco, ele entra num restaurante, pede salsichas e ovos e praticamente dança de satisfação na cadeira ao saborear o proibido. Há até mesmo uma tomada do prato e a cena na qual come bacon sublinhando a rapidez de sua assimilação.

Mobilidade social

No filme Europa, Europa, de 1991, dirigido por Agnieska Holland, cujo pano de fundo é o Holocausto, é servido presunto ao herói judeu que se faz passar por gentio durante um jantar na casa da namorada. Ele come para ocultar sua origem e sobreviver.

No filme Um Preço Acima dos Rubis, de Boaz Yakin, a protagonista usa um cachorro-quente comprado numa esquina de Nova York para indicar sua revolta contra o hassídismo. Mais tarde, em outra seqüência, seu marido e o rabino, que é terapeuta do casal, ficam chocados quando ela confessa que mantém a kashrut apenas “em casa”.

Em A Era do Rádio, de Woody Allen, uma seqüência antológica mostra uma família judia sentada em casa durante o Iom Kipur, todos famintos e entediados. Quando vizinhos judeus, ateus e comunistas, aumentam ao máximo o volume do rádio, o pai bate à porta deles para reclamar. Uma hora depois volta para casa, satisfeito e convertido ao comunismo. Mas imediatamente começa a ter indigestão graças ao presunto e às batatas fritas com que quebrara o jejum.

Em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, Allen expressa seu desconforto em relação à culinária da família de Annie (Diane Keaton). Quando Alvy, seu personagem, é convidado para o almoço de Páscoa na casa dos futuros sogros anglo-saxões protestantes, cumprimenta a avó por seu “presunto-dinamite”. Enquanto isso, a velhinha o imagina vestindo a longa capota preta e o chapéu dos judeus hassídicos. O recurso da tela dividida na seqüência seguinte, sobrepondo ambas as famílias à mesa durante uma refeição, reforça as diferenças.

A assimilação na comida

Alimentos proibidos também são sinais de sofisticação e de assimilação. A revista Commentary publicou na década de 1970 um anúncio de página inteira do vinho italiano Bolla em que a garrafa aparecia em meio a frutos do mar e salames, claramente identificando os elementos que compunham a foto com elegância e cosmopolitismo… Apesar do leitorado da revista ser considerado moderno, esse anúncio pegou mal entre os leitores.

Woody Allen usa o mesmo tipo de associação em Memórias, de 1980. Quando Sandy (Allen) e Dorrie (Charlotte Rampling) se beijam pela primeira vez, ela murmura entre um abraço e outro: “Por que não saio por um minuto e compro algo para comermos? Nós podemos ficar em casa e cozinhar!” A entonação da atriz à palavra “cozinhar” indica que ela tem outras iguarias em mente. Sua sofisticação e as proezas sexuais que sugere se expressam nas delícias de preparar entre beijos e abraços.

Certa vez, Nora Ephron levantou a hipótese de que talvez comprasse Gourmet, conhecida revista de gastronomia americana, porque seria o mais próximo a uma mulher gentia que ela jamais chegaria a ser.

O médico judeu de Tudo o Que Você Sempre Quis Saber Sobre Sexo Mas Tinha Medo de Perguntar pede caviar como prelúdio às atividades sexuais que está prestes a manter com uma ovelha. Frutos do mar, em especial a lagosta, são ícones que representam luxúria e excesso. Para Allen, lagostas simbolizam um desejo sexual insaciável, são como ardentes encontros ilícitos em contraponto aos pratos rotineiros de um casamento. Alvy e Annie fortalecem seu relacionamento em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa quando, a quatro mãos, eles matam, cozinham e comem lagostas. Em Sonhos Eróticos de uma Noite de Verão, quando sua esposa interroga-o a respeito de um antigo relacionamento, Allen responde com um certo nervosismo: “Saímos juntos uma vez… e comemos algumas lagostas, isto foi tudo!”. Num episódio da série Seinfeld, Jerry namora uma garota judia que mantém a kashrut e, portanto, se recusa a comer a lagosta que Jerry, George, Kramer e Elaine pescaram durante o fim-de-semana em Long Island. Durante todo o jantar, os quatro amigos falam como a lagosta está deliciosa e suculenta e a tentação acaba excessiva. No meio da noite, a garota se esgueira até a cozinha em busca da lagosta. Mas Kramer, adivinhando que isso aconteceria, fica em frente à geladeira e a proíbe de comer, tornando-se guardião auto proclamado dos seus princípios. Neste caso, a lagosta significa claramente tentação e abandono e, ao não comê-la, a moça mantém-se ritualmente pura.

Tabu do incesto

A relação entre restrições dietéticas e sexuais faz parte da cultura judaica e são comuns as interpretações que ligam o sexo à kashrut. Na verdade, estão inexoravelmente vinculados desde que Adão e Eva comeram a maçã no Paraiso. Num artigo publicado em 1979 no New York Review of Books, Jean Soler sustenta que o tabu do incesto bíblico está ligado à enigmática proibição de se cozer a cria no leite materno, observando que “mãe e filho não devem ocupar a mesma panela da mesma forma que não devem ocupar a mesma cama”.

Comida e sexualidade

Alisa Lebow e Cynthia Madansky deram o título de Taref num documentário sobre lésbicas judias, de 1998. No filme que Tony Goldwyn fez em 1999, A Walk on the Moon, uma jovem religiosa come bacon pela primeira vez e indica que se sente mais alerta sexualmente. Na cena final do orgasmo em Harry e Sally uma senhora na mesa ao lado se dirige ao garçom: “Vou comer o que ela está comendo”, talvez uma insinuação sobre o efeito erótico que a comida não kasher pode ter sobre judeus.

A obra inteira de Woody Allen contém referências sobre sexo e comida. São quase sinônimos em seus filmes. Em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, ele diz: “Agora vamos nos beijar… depois, saímos para comer”. Em outra cena, quando chega ao apartamento de Annie, em Manhattan, pronto para ir para a cama com ela, pergunta: “Você tem alguma coisa para comer em casa?” É uma questão delicada: sua incapacidade de cozinhar torna-o impotente. Ainda em Memórias Charlotte Rampling comenta: “Seu espaguete podia ter cozinhado mais uns vinte minutos”, ao que Allen retruca perguntando: “Você não quer macarrão mole demais, quer?”.

Casamenteiros

Muitas situações envolvendo sexualidade foram ambientadas nos hotéis de veraneio das montanhas Catskills, ao norte de Nova York, alimentando conscientemente o vínculo entre a tradição judaica dos “casamenteiros” e a culinária kasher. Freqüentados principalmente por famílias judias, os Catskills são usados por entidades que organizam fins de semana para grupos de judeus solteiros em busca de um par, um conhecido reduto romântico, até de lua-de-mel. Um anúncio do hotel mais famoso da região, o Grossinger’s, sugeria que, ali, as refeições eram próprias para os hóspedes se conhecerem e chegarem a casamentos endógamos e depois abençoados com filhos.

A refeição da família judia é quase sempre o momento escolhido para o debate filosófico que faz parte do roteiro. Cenas-chave são rodadas à mesa, certamente a locação mais apropriada para diálogos socráticos.

No filme Avalon, de Barry Levinson, a comemoração do Dia de Ação de Graças por uma família de imigrantes judeus é um sensível comentário sobre culinária e cultura judaicas que revela o legado da imigração, relata a história da assimilação dos integrantes e deixa entrever os desvios dos valores étnicos que vigoravam na Europa.

Na comédia Entrando Numa Fria, Greg Focker, interpretado por Ben Stiller, é um judeu que quer se casar com uma americana loira, anglo-saxônica e protestante e, por esta razão, a acompanha numa visita à casa dos pais, no norte de Long Island, próximo a Nova York. Mas tudo conspira para lembrá-lo de que ele não passa de um judeu classe média, e nisso se esmera o pai da namorada, Jack Byrnes, um ex-agente da CIA interpretado por um hilariante e paranóico Robert De Niro. As situações mais simples ocultam grandes perigos e a seqüência em torno da mesa de jantar ganha importância especial ao assinalar a distância cultural entre o judeu Focker e os wasp Byrnes. Convidado a pronunciar a bênção de graças antes da refeição, Jack ouve da filha que “Greg é judeu”. “Eu tenho certeza de que os judeus abençoam seu alimento”, responde o pai com um sorriso. Greg não tem outra saída, e resolve o problema repetindo os versos da trilha sonora de um filme Gospell, A Esperança. As refeições continuam a ser o terreno minado. Ele aparece no dia seguinte, no café da manhã, comendo um beigale, o que claramente o identifica como judeu.


HENRIQUE VELTMAN é jornalista.

hbv@uol.com.br

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