A REUNIÃO MINISTERIAL E O NAZISMO À BRASILEIRA: UMA CRÔNICA SOBRE A GRAMÁTICA DO GOVERNO BOLSONARO – POR MICHEL GHERMAN*

357_especial_2_1As hemorroidas do governo são a parte cômica de um encontro que desnuda por completo a república bolsonarista, expondo uma lógica de crueldade e loucura nunca antes vista no Palácio do Planalto

Muito já se disse sobre a agora famosa (e triste) reunião dos ministros do Governo Bolsonaro: dos palavrões e ofensas do mandatário à ausência de qualquer política de combate à pandemia. A reunião entrou para os anais da política nacional como comédia e como tragédia. As hemorroidas do governo são a parte cômica de um encontro que desnuda por completo a república bolsonarista, expondo uma lógica de crueldade e loucura nunca antes vista no Palácio do Planalto. Mas há partes que remontam à tragédia típica do Mal em seu estado banal: o mal dos burocratas e das burocracias.

Primeiro exemplo disso é a (única) fala sobre a pandemia. Proferida pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, deveria ser estudada como referência das relações entre o Mal e a política. Seu objetivo claro é destruir florestas em nome de interesses econômicos, mas há mais do que isso. O ministro percebe a perspectiva de dezenas de milhares de mortes como oportunidade para alavancar suas políticas.

Ou seja, além do fato absurdo de um ministro do meio ambiente querer destruir o meio ambiente, tem-se aqui uma chave de compreensão da relação que o governo Bolsonaro estabeleceu com a pandemia: o novo coronavírus não é um problema a ser resolvido; a COVID-19 não é uma inimiga a ser derrotada. A doença é aliada do governo.

Como bem disse Salles, enquanto a mídia está olhando para as milhares de mortes, “passamos a boiada”. A frase, importa notar, não foi dita com ódio, com entusiasmo ou mesmo com desejo. Ela foi dita cuidadosamente, em tom baixo e comedido. Tom de quem tinha pensado muito antes de falar. De quem tinha feito os cálculos entre os cadáveres insepultos e as oportunidades que eles criavam. Para o jovem ministro, os cadáveres valiam a pena.

Enquanto a mídia estarrecia-se com a barbárie, não teria tempo para se preocupar com a derrubada de milhares de quilômetro de matas ou, sequer, com o assassinato de milhares de indígenas. Quase uma Conferência de Wanssee ecológica, de onde ninguém se levantou, mesmo após escutar os planos estratégicos de uma espécie de “solução final” para as florestas e para os povos indígenas brasileiros que, segundo Salles, impedem o desenvolvimento econômico do país.

Essa, entretanto, não foi a parte mais reveladora na reunião. Próximo ao Ministro do Meio Ambiente, estava o Ministro da Educação, cuja fala desnuda de forma definitiva a ideologia hegemônica no governo Bolsonaro. Não me refiro à parte em que ele defende a prisão dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, que chamou mais atenção do público, mas aquela em que Abraham Weintraub cita, quase integralmente, uma das máximas nazistas. “Odeio o termo ‘povos indígenas’, odeio esse termo. Odeio”, inicia ele, como se isso interessasse a alguém naquela mesa. E segue dizendo odiar também o termo “povo cigano”. Por fim, se explica, adaptando a máxima do Terceiro Reich: “Só tem um povo nesse país. Quer, quer. Não quer, sai de ré”.

O inconsciente de Weintraub nos deu a chance de conhecer melhor as entranhas ideológicas do governo. Para além do ódio escancarado à expressão “povos indígenas”, o Ministro fala em “ciganos”. Se “povos indígenas” já haviam frequentado a reunião, ninguém havia falado ainda de ciganos. Foi Abraham Weintraub quem trouxe à tona. E por quê?

Não devemos deixar que isso passe despercebido. É sugestivo lembrar que os ciganos foram, depois dos judeus, as maiores vítimas dos nazistas. Weintraub não cita os judeus, mas associa seu ódio ao termo “povos ciganos” à famosa frase nazista “Ein Volk”, “Um Povo”.

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*Michel Gherman é mestre em Antropologia e Sociologia pela Universidade Hebraica de Jerusalém, e doutor em História Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor e pesquisador, coordena o Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos e Árabes na mesma universidade.

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