UMA REAL E EMOCIONANTE HISTÓRIA OCORRIDA EM SIMHÁT TORÁ – RABINO KALMAN PACKOUZ

Rabino Kalman Pa


Esta é uma edição especial de Simhát Torá. É uma história relatada pelo escritor polonês Normal Salsitz (1920-2006) intitulada: Em Simhát Torá me chamaram de Zaleski

Em 1965 eu morava em Springfield, New Jersey (EUA). Embora tivesse me afastado do judaísmo ortodoxo há muitas décadas, sempre guardei um conhecimento de judaísmo e assuntos judaicos adquiridos de minha educação e formação hassídica em Kolbuzowa, na Polônia.

 Certo ano nosso líder espiritual, Israel Dresner, teve uma idéia inspirada. Ele percebeu que sua congregação de judeus ocidentalizados não tinha a mais remota familiaridade com o fervor que os ortodoxos e os hassidim praticavam a religião. Organizou então uma viagem ao Brooklyn, Nova York, na festa de Simhát Torá, para levar os membros interessados de sua congregação para observar a Festividade de Alegrar-se com a Torá (Simhát Torá). Ele perguntou-me se eu queria ir e concordei.

 Já havia muitos anos que eu estivera com os hassidim em Simhát Torá.

 O ônibus chegou à região de Crown Heights, no Brooklyn – que era então, junto com Williansburg, o principal centro da vida hassídica nos Estados Unidos. Entramos na sinagoga do Rebe de Bobov, o grande Rabino Shlomo Halberstam Z”TL (1847-1905).

 Os hassidim (seguidores do Rebe) de Bobov usavam barba, vestiam-se com compridos casacos de seda e shtreimel (um típico chapéu feito de pele). Enquanto os Judeus de Springfield ficaram parados do lado de fora, acanhados, mergulhei em meio à multidão, e em alguns instantes eles podiam me ver pelas janelas, cantando com os hassidim.

A celebração era caracterizada pelo Rebe, com sua cabeça coberta por um Talit (uma manta utilizada nas orações), dançando com a Torá por incontáveis horas. Para este fim, ele segurava um rolo de Torá especial, em miniatura, e girava e girava. Fiquei batendo palmas, cantando junto com os hassidim.

Parte dos muitos costumes desta festividade são as hakafót, onde honras são dadas a congregantes destacados para dançar com a Torá e com o Rebe. A primeira ‘rodada’ de danças é dada aos Cohanim (descendentes do sumo Sacerdote Aharon). Se há mais Rolos de Torá do que Cohanim, então os restantes são dados para congregantes importantes.

Um hassid parado próximo à Arca Sagrada chamava os nomes daqueles que seriam honrados, sob os aplausos da congregação.

Conforme iam sendo chamados, ávidos congregantes pegavam o Rolo da Torá e dançavam junto com o Rebe. Como não sabiam que eu era um Cohen, fiquei contente em permanecer de fora.

Foi aí que um homem com uma barba ruiva estendeu um Rolo da Torá e disse: “Zaleski, eu dou esta honra a Zaleski”. Quando ninguém no salão respondeu, novamente ele gritou: “Zaleski”. Quando voltei meu olhar da multidão em direção a ele, percebi que a Torá estava sendo oferecida a mim.

Zaleski. Não ouvi este nome nos últimos 20 anos! Zaleski foi o nome que adotei enquanto disfarçado de capelão no exército polonês durante os anos da segunda guerra mundial. Tadeusz Zaleski. Este hassid de barba vermelha estava honrando Tadeusz Zaleski com a hakafá !

Perplexo, aproximei-me e aceitei a Torá. Enquanto o grupo de Springfield olhava pela janela, rodopiei pela sinagoga, com a Torá em meus braços, dançando com o Rebe de Bobov, o último líder hassídico a transplantar seus seguidores da Europa destruída para a América.

Depois de muitas voltas, passei a Torá a outra pessoa e segurei o braço do homem que havia chamado o meu nome. “Por que você me deu a Torá?”, perguntei em idish. “Como você me conhece por Zaleski?”

“Tenho uma dívida com você”, ele respondeu. “E estou feliz de repagar uma pequena parte dela dando-lhe esta honra”.

“Mas eu não o conheço”, protestei.

“Ah sim, você me conhece”, ele disse. “Você se lembra, na Cracóvia, quando resgatou dois garotos que estavam sendo mantidos presos num depósito de carvão num distrito policial?”

Dois jovens num depósito de carvão. Minha mente retrocedeu no tempo, para antes dos Estados Unidos, para antes da Alemanha, antes da fuga da Polônia. Dois jovens num depósito de carvão – sim, me lembrava.

Era o inverno de 1945. Naquela época eu havia sido promovido dentro das forças de segurança polonesas ao posto de chefe de segurança da região da Cracóvia e suas comunidades vizinhas. Para um judeu receber este cargo era impossível. Entretanto, apenas um punhado de pessoas dentro do governo sabia que eu era judeu. Para os demais euera Tadeusz Zaleski.

Eu falava um polonês perfeito e sem sotaque, tinha um rosto polonês característico e sem barba. Não havia razão alguma para alguém pensar que eu fosse qualquer coisa além de um capelão, como alegava ser.

Depois que as forças russas libertaram a Polônia, os poucos judeus sobreviventes gradualmente começaram a dirigir-se às cidades. Conforme o número de judeus crescia, eles se organizavam em comunidades para se recuperarem da destruição causada pelos nazistas.

Pouco depois que cheguei à Cracóvia, fiz questão de visitar a liderança judaica: um advogado chamado Stulbach e uma mulher chamada Marianska, para revelar-lhes que eu era judeu e para que soubessem que estava disponível para fazer o que fosse possível, não oficialmente, para aliviar suas condições.

Embora pudesse ajudar pouco dentro da estrutura formal, havia muito que podia fazer nos bastidores. A pequena comunidade judaica era extremamente vulnerável ao abuso pessoal e governamental na Polônia, e minha oferta foi aceita com muita gratidão.

Naquela época, o Rabino Moshe Steinberg, um rabino que sobrevivera à guerra por milagre, servia como o líder espiritual da cansada e desanimada comunidade judaica. Foi dele que, certo dia, fiquei sabendo sobre os dois jovens que haviam sido presos e desaparecido. A polícia os pegou transportando uma carga de açúcar, confiscou o veículo e a carga e levou os jovens em custódia.

A partir daquele ponto eles haviam desaparecido completamente, sem nenhuma resposta satisfatória sendo oferecida às preocupadas investigações feitas pela comunidade judaica. O rumor era que as autoridades haviam confiscado o açúcar para o seu próprio proveito e entregue os jovens à milícia da Cracóvia para serem mantidos em alguma prisão.

Como chefe de segurança da região, eu era superior à milícia local. Embora não seguíssemos a mesma cadeia de comando, nosso patrono político nos colocara numa posição dominante. Todavia, o predomínio político não podia evitar simples mentiras.

Na manhã seguinte questionei cada responsável pelas delegacias se sabiam alguma coisa sobre o destino daqueles dois irmãos. De maneira não surpreendente, ninguém sabia. Comecei a inspecionar as celas pessoalmente, delegacia por delegacia, as 12 delegacias da Cracóvia.

Aparentemente a inspeção não tinha nada a ver com os irmãos judeus desaparecidos. Era apenas um inventário das cadeias da cidade sendo realizado por razões burocráticas.

Uma por uma, visitei as sujas e escuras celas nos porões das delegacias. Uma por uma, as portas das celas foram abertas para a minha inspeção. Algumas estavam ocupadas, outras vazias. A maioria continha criminosos e presos políticos de varias classes.

Acabei chegando a uma chefatura numa região chamada Woinica. A inspeção transcorria normalmente, exceto que no final do corredor daquele porão escuro havia uma porta ainda trancada.

Quando perguntei sobre ela, o chefe de polícia me garantiu que era apenas um depósito utilizado para armazenar carvão. Persisti que queria olhar lá dentro. “As chaves foram perdidas”, disseram-me. Imediatamente afastei todos dali, saquei minha arma e atirei no cadeado da porta. Quando a porta moveu-se, pude distinguir na luz fraca do corredor duas figuras imundas – os irmãos judeus desaparecidos.

Enquanto o oficial alarmado revirava papéis e registros, ralhei e o repreendi por incompetência e coisas piores. No final, fui menos severo em não dar-lhe uma punição rigorosa. “Apenas limpe-os imediatamente e leve-os para o meu quartel-general. Tomarei conta deste assunto pessoalmente!”

Aliviado por sua óbvia incorreção não ter levado a nada pior, o chefe da milícia prontamente concordou e, no final da tarde, os prisioneiros foram entregues.

Vocês podem imaginar o alívio que sentiram – após terem sido espancados e presos por duas semanas – quando lhes contei que havia sido enviado pelo rabino Steinberg, que eu era judeu e que iria deixá-los partir, contanto que saíssem da Cracóvia e que nunca mais os visse.

E nunca mais os vi – até aquele Simhát Torá no Brooklyn.

“Como você me reconheceu?”, perguntei ao hassid. “Eu não o reconheço de forma alguma”.

“Nunca esqueci o seu rosto, especialmente suas sobrancelhas”, ele disse. “Constantemente pensava sobre como fomos libertados do depósito de carvão. No minuto em que o senhor entrou aqui na sinagoga, eu sabia que era o senhor”.

Ele continuou relatando que na Cracóvia eu não usava barba, como agora. Ele, por outro lado, era muito jovem e depois deixou crescer a barba, estava vestido com um casaco preto e era totalmente diferente da pessoa que eu libertei.

Enquanto meus vizinhos de Springfield olhavam de olhos arregalados por aquelas janelas da sinagoga no Brooklyn quando antes dançara com o Rebe, agora assistiam eu receber um forte abraço de um hassid de barba vermelha, vestido de preto e com um shtreimel, com o rosto molhado por lágrimas de alegria há muito tempo contidas.


RABINO KALMAN PACKOUZ – Da Aish Há Torá, é o criador do Meór Hashabat, boletim  semanal com prédicas. Saiba mais.

 

NOTAS:

– Este ano, Simhát Torá é comemorado no dia 27 de setembro.

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