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POR ONDE VOCÊ CHORA? – ILDO MEYER

Ildo

Quando as lágrimas não descem pelos olhos, abrem uma ferida no corpo Aristotélico até encontrar uma saída, uma forma de se manifestar.

Assim como sorrir, chorar também pode ser um bom remédio.


Por onde você chora? Através das lágrimas que escorrem de seus olhos? Não necessariamente. Vou tentar lhe mostrar outros prantos.

Um primeiro paradigma a ser quebrado é o do corpo Aristotélico, composto de cabeça, tronco e membros, músculos, ossos e vísceras. Esta é uma idéia de corpo em sua natureza física, orgânica e material. Um corpo vivo, porém inanimado. Uma cisão entre corpo e alma, entre objetividade e subjetividade.

Durante muitos séculos, a busca de exames e doenças ficou restrita ao corpo físico. A partir dos sintomas apresentados, o paciente se enquadrava nos padrões de normalidade da época ou era considerado doente. A medicina decompunha as pessoas em partes ou sistemas e os examinava objetivamente. O fígado estava doente, o cigarro fazia mal ao pulmão…Este modelo cartesiano demonstrou-se ineficaz.

Passamos então a um corpo animado, vivo, dotado de sentimentos e emoções. Um corpo como fenômeno. Não mais um corpo da pele para dentro, mas um corpo que transita, fala, interage, reconhece e constrói a qualidade e os significados de nossa relação com o mundo. Ao pegar a mão da namorada o rapaz não está apenas tocando na pele, articulações, músculos e vasos. Esta é a mão de quem ama. Ao sentir o toque, a carícia, a maciez, ele estará recebendo o afeto que lhe é dirigido.

O limite do corpo ultrapassa a epiderme. Não temos um corpo, somos um corpo. Esta distinção é fundamental. Para alguns, o corpo físico serve apenas como meio de locomoção e estas pessoas só se dão conta da corporeidade, quando adoecem ou sentem dor. Se o filho não come direito, para algumas mães é como se elas próprias tivessem fome. Quando uma mãe presencia sua filha morrendo de câncer, não reage como alguém que vê apenas a corrosão da capa da filha. A posse da doença é da menina, mas o sofrimento é de ambas. Por vezes, o sofrimento da mãe é maior que o da filha. As lágrimas podem vir de um só corpo, mas o choro é, ou deveria ser, de todos.

O corpo físico pode ter extensões. Telefone celular e computador ficaram tão intimamente incorporados à rotina, que algumas pessoas não conseguem viver longe deles. Quando o celular estraga, o indivíduo entra em desespero e adoece. Este fenômeno de extensão corporal acontece com família, amores, animais de estimação, amigos, plantas, automóveis, casas, bibliotecas. A doença de um se manifesta, ou contamina o outro.

Palavras também podem machucar, doer e fazer sangrar. Até mais que qualquer agressão física. Em minha experiência como anestesiologista, percebo que muitos pacientes não se preocupam com o corpo sem roupas que ficou exposto durante o procedimento cirúrgico. A ansiedade deles está relacionada a bobagens ou fatos que possam ter relatado durante o procedimento. Definitivamente, a epiderme não é o fator limitante de nossa corporeidade.

O corpo não é uma máquina como diz a ciência, tampouco uma culpa como nos fez crer a religião. O corpo é uma festa, um templo, uma fonte de emoções e sentimentos, que nos fazem sorrir, chorar e viver. O cantor Cazuza dizia: “Não sei se choro, sumo ou finjo que estou bem.” Ele pode até ter tentado, mas não se consegue engolir o choro e colocar um sorriso falso no rosto por muito tempo.

Quando as lágrimas não descem pelos olhos, abrem uma ferida no corpo Aristotélico até encontrar uma saída, uma forma de se manifestar.

Pesadelo, insônia, enxaqueca, ansiedade, bruxismo, psoriase, calvície, herpes, gastrite, refluxo, hipertensão… Por onde você chora? Por quem você chora? Por que um homem não deveria chorar? Assim como sorrir, chorar também pode ser um bom remédio.

Baseado no artigo Corpo e Corporeidade: uma leitura fenomenológica – Ari Rehfeld


ILDO MAYER – Médico formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Saiba mais.