PESSACH 2014/5774 – POR BERNARDO SORJ

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O passado não pode ser desprezado, porque condensa a sabedoria que nos faz ser em boa parte quem somos, nem deve ser uma camisa de força que tolhe nossa criatividade e liberdade.


Porque nos libertamos da escravidão no Egito. E fomos enclaustrados em guetos. E incinerados em Auschwitz.

Lembramos Pessach para manter acesa a chama interna da liberdade, que nenhum poder consegue apagar se está enraizada dentro de nós. Porque a saída do Egito não representa a garantia da liberdade, mas a consciência de seu valor, e a terra prometida não é um lugar de chegada, mas o espaço de nossa consciência que cabe a cada um e a todos juntos cultivar.

Escolhemos participar da tradição judaica pois ser judeu não é uma certidão outorgada por um estado, nem um clube ao qual devemos pedir autorização para entrar. Mas um sentimento de mundo que não pode ser reduzido a uma única palavra. Seja povo, religião, tribo ou família.

A tradição judaica é a sabedoria acumulada por milênios de sobrevivência como uma minoria. Que pode nos enriquecer se fortalece nossa humanidade, e nos limitar se nos empurra ao isolamento.

Porque ser minoria exige conviver com crenças diferentes, dissonantes das nossas, ela nos ensina que todo problema tem varias soluções. E que toda solução traz novos problemas, exigindo sempre sermos criativos.

Porque ser minoria nos ensina que devemos procurar entender o outro, que a convivência exige flexibilidade e não maniqueísmo. Pois ninguém tem o monopólio da verdade. E que nos oprimimos e oprimimos os outros quando acreditamos que existe uma única forma correta de estar no mundo, e que os outros devem ser nossos espelhos ou que devemos ser espelho dos outros

Porque o futuro sempre pode ser melhor, com menos preconceitos, estigmas e opressão, apostamos no tikun olam, na melhoria da humanidade. Como lembra a Bíblia, em Pessach saíram do Egito não só os judeus mais também “outros povos”.

E se hoje temos o privilégio de viver em condições de liberdade e prosperidade únicas na história, devemos lembrar de que fomos perseguidos e não podemos ser cúmplices de nenhum tipo de perseguição, que fomos estigmatizados e não podemos aceitar que alguém o seja, e que a ascensão social pode nos tornar insensíveis e arrogantes. Nunca deixando de lado o princípio no qual o Rabino Hillel sintetizou a Bíblia: “Não faças ao outro o que não desejas que façam a ti”.

Mas ser minoria também pode nos fragilizar, produzindo inseguranças e sentimentos de perseguição e isolamento, que nos desumanizam. E o medo de perder nossa identidade pode induzir a querer congelar as mudanças, colocando cada coisa no seu lugar retornando a um passado mítico, em vez de criar novas formas de ver sentir o mundo, que expandam nossa capacidade cognitiva e emocional.

Por isso não devemos temer a convivência, pois ela não borra nossa memória, sem a qual não existimos. Pois toda memória individual se sustenta num passado que nos precede e um presente e um futuro pelo qual todos somos responsáveis.

O passado não pode ser desprezado, porque condensa a sabedoria que nos faz ser em boa parte quem somos, nem deve ser uma camisa de força que tolhe nossa criatividade e liberdade. Assim podemos dizer que:

O passado é uma luz que nos ilumina, mas não nos ofusca. As diferenças nos enriquecem. Está em nossas mãos criar um futuro melhor para todos pois nada é mais ilusório do que pensar que nossos seres queridos possam viver em paraísos enquanto outros vivem no inferno. A luta contra a opressão nunca acaba. E esta luta acontece em primeiro lugar nos nossos corações e mentes.

Porque estamos dispostos a melhorar e lutar por um mundo melhor, agradecemos:

Shehechyanu, ve´quimanau ve’higuianu lazman haze.

Que vivemos, que existimos, que chegamos, a este momento.


Bernardo Sorj nasceu em Montevidéu, Uruguai, e mora desde 1976 no Brasil, onde se naturalizou brasileiro. Estudou antropologia e filosofia no Uruguai, cursou o B.A. e M.A. em História e Sociologia na Universidade de Haifa, Israel, e obteve o título de Ph.D. em Sociologia na Universidade de Manchester, Inglaterra. Foi professor de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais, do Instituto de Relações Internacionais da PUC/RJ e é professor titular de Sociologia aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autor de 26 livros e mais de 100 artigos, ocupou na qualidade de professor visitante várias cátedras em universidades europeias e norte-americanas. Entre as mais recentes, destacam-se a Sérgio Buarque de Holanda, da Maison des Sciences de l’Homme, e a cátedra Simón Bolívar, do Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine, em Paris. Foi eleito Homem de Ideias 2005. Atualmente é diretor do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais e do Projeto Plataforma Democrática, e coordenador do SciELO Latin American Social Sciences Journals English Edition.

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