NOSSO PAPEL NA COMUNIDADE, NOSSO PAPEL COMO POVO JUDEU – RABINO RUBEN NAJMANOVICH

Rabino Ruben'

Fazemos todos parte de um imenso corpo. Um pequeno “problema” que não seja bem tratado, e todo o conjunto pode ficar comprometido. Um pequeno gesto pode modificar completamente o presente e construir um futuro melhor.


A respeito do assunto, relata-se uma história ocorrida em uma cidadezinha típica do interior, que contava com uma pequena comunidade judaica e apenas uma sinagoga. Um dia, apareceu na porta do templo e também no jornal comunitário uma notícia que impressionou a todos: “Com o mais profundo pesar, comunicamos a morte da nossa congregação. O féretro partirá da sinagoga rumo ao cemitério, no domingo, às 11h”.

Bem, podia tratar-se de uma brincadeira, mas todos os anúncios vinham com o carimbo da congregação e a assinatura do rabino.

“Deve ser sério” – pensavam.

No dia marcado, a sinagoga estava muito cheia. Nunca se tinha visto tanta gente reunida.

Ha tempos, aquela que outrora fora o centro da comunidade, andava vazia. Mas não naquele dia. Todos esperavam ansiosamente pelo rabino, a fim de perguntar-lhe quem havia falecido. Afinal, a comunidade era pequena e todos se conheciam. Estavam todos lá. “Quem será o defunto?” – perguntavam-se.

De repente, o shamash (bedel) apareceu, empurrando um carrinho com um caixão. Era, de fato, um caixão; não havia dúvidas. Colocou-o defronte à Arca Santa (Aron Hakodesh) e, puxando uma cadeira, sentou-se ao seu lado.

Subitamente, ouviu-se um choro. A congregação paralisou. Com seus trajes rasgados, o velho rabino apresentou-se diante dos fiéis com a aparência de quem havia perdido um ente muito próximo. “Meu D’us” – gritou uma senhora – “será que sua esposa faleceu?” .Não. Ela estava lá. “Ai, não. Será que foi seu filho, seu único filho?” – exclamou outra. Ele também estava lá, bem como sua nora, seus netos e bisnetos. Todos estavam lá. Não faltava ninguém.

Mas nada disso importava. Todos se lembravam do rabino sorridente, acalentador, tranquilo. Vê-lo naquele estado era deprimente. Mesmo não sabendo o motivo, lágrimas começaram a verter de alguns olhos. Atentos, os fiéis esticavam-se para ouvir e ver melhor. Nem respiravam.

O rabino dirigiu-se ao púlpito. Fez uma prédica muito simples, mas extremamente emotiva. Mesmo quem não tinha a menor ideia do que estava acontecendo, comoveu-se. Já no fim, em tom misterioso e compassivo, olhou para o caixão, depois para a comunidade e disse:

“Creio, meus filhos, que a nossa congregação não possa mais ressuscitar. Não sou D’us, nem tenho poderes extraordinários, mas vou fazer uma ultima tentativa. Enquanto rezo, com a maior fé possível, vocês, em fila indiana, vão passando para ver o cadáver”.

Dito isso, o shamash se levantou e abriu o caixão. Parou ao seu lado e começou a observar lá dentro.

Um frenesi tomou conta dos mais velhos. “Que absurdo!” – gritavam – isso não é um costume judaico!”. Porém os mais jovens se levantaram, formaram a fila e eles foram atrás. O desfile começou lentamente e, ao passar, todos olhavam, curiosos e admirados, para o caixão.

Como no fundo havia um espelho, cada um via seu próprio rosto dentro do caixão.

No fundo, no fundo, esta história, apesar de ser uma fictícia parábola, acontece com todos nós. Nossas instituições estão aí, nossas escolas, nossas sinagogas, cada vez mais vazias, cada vez menos frequentadas. Muitos acreditam que basta ser judeu nas festas e comemorações, outros acham que ser judeu é apenas uma questão de fé. Com isso, acabam desprendendo-se de sua responsabilidade comunitária – seu papel na sociedade judaica –, a responsável por sua existência durante milênios. “É problema dos outros” – pensam.

Houve alguém no passado que pensava da mesma forma. Caim, inconformado com a graça que seu irmão alcançava perante D’us, resolveu matá-lo. A grande lição que se obtém no início do Livro Bereshit (Gêneses) está na pergunta a ele feita por D’us: “Aieca? – onde você esta? “. Caim, após ser questionado sobre seu irmão, responde com outra pergunta: “Acaso sou guardião de meu irmão?”.

Esta pergunta nos é feita diariamente: “Aiénu? – Onde estamos nós?”. Acaso estamos cuidando de nossos irmãos como deveríamos? Somos responsáveis por eles?

Sim, somos. Kol Israel Arevim Zé Baze – todos somos responsáveis uns pelos outros (Talmud Babilônico – Tratado Shavuot 39a). Fazemos todos parte de um imenso corpo. Um pequeno “problema” que não seja bem tratado, e todo o conjunto pode ficar comprometido. Um pequeno gesto pode modificar completamente o presente e construir um futuro melhor.

Se quisermos que o jargão “continuidade judaica” deixe de ser um slogan; se quisermos – como dizia Elie Wiesel, assim como repete o grã Rabino do Reino Unido de Grã Bretanha Lord Jonathan Sacks – que judeu seja aquele cujos netos continuam sendo judeus, precisamos ter orgulho de proporcionar a nossas famílias uma autêntica vivência judaica; se quisermos, sobretudo, evitar o funeral de nossa história, então, é hora de agirmos! Pois, com a “morte” espiritual de nossa tradição, seremos nós os sepultados. Nosso rosto é que estará no esquife do desprezo e da irresponsabilidade.

A pergunta é: onde estamos nós?

Shalom.


RUBEN NAJMANOVICH – Rabino, Professor da Ciência da Religião, Mestre em Ciências Sociais e humanidades menção educação. Saiba mais.

rubenaj@terra.com.br

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