BONDADES VERDADEIRAS – RAV EFRAIM BIRBOJM
Achamos fácil amar aqueles que são bonitos ou divertidos, mas não gostamos das pessoas que nos incomodam ou nos fazem sentir desconfortáveis. E você? O seu amor tem condições?
“Um soldado americano que participou da terrível guerra do Vietnã, após meses sem contato com a família, conseguiu ligar para os seus pais, que viviam em São Francisco, e lhes disse:
– Queridos pais, a guerra acabou, estou voltando para casa. Mas eu queria pedir a vocês um favor. Eu tenho um amigo, que lutou comigo na guerra, e queria que ele viesse morar conosco em casa. Ele não tem para onde ir.
– Claro, meu filho, nós adoraríamos conhecê-lo! – disseram os pais.
– Mas há algo que vocês precisam saber – disse o filho – Ele foi ferido na última batalha que participamos. Pisou em uma mina e perdeu um braço e uma perna. O pior é que ele não tem família nem outro lugar para ir. Por isso eu gostaria que ele viesse morar conosco, para podermos ajudá-lo.
– Eu sinto muito em ouvir isso, filho. Talvez nós podemos ajudá-lo a encontrar um lugar onde ele possa morar e viver tranquilamente. Mas alguém com tanta dificuldade seria um grande fardo para nós. Temos nossas próprias vidas e não podemos deixar que alguém assim interfira em nosso modo de viver. Acho que você deveria voltar pra casa e esquecer este amigo. Não se preocupe, ele encontrará uma maneira de viver…
Neste momento o filho desligou o telefone. Alguns dias depois os pais receberam um telefonema da polícia de Nova York. O filho havia morrido depois de ter caído de um prédio. A polícia acreditava em suicídio. Os pais, angustiados, voaram para Nova York e foram levados para identificar o corpo do filho. Eles o reconheceram, mas descobriram algo terrível: o filho havia sido ferido na guerra e tinha perdido um braço e uma perna…”
Achamos fácil amar aqueles que são bonitos ou divertidos, mas não gostamos das pessoas que nos incomodam ou nos fazem sentir desconfortáveis. E você? O seu amor tem condições?
Na Parashá desta semana, Reê (literalmente “Veja”), um dos assuntos trazidos é a Mitzvá de Tzedaká, ajudar e se importar com as pessoas necessitadas. E assim está escrito: “Se houver alguma pessoa destituída entre vocês, algum dos seus irmãos em alguma das suas cidades… você não deve endurecer seu coração nem fechar sua mão para seu irmão destituído. Ao contrário, você deve abrir sua mão para ele; você deve emprestar o que ele necessita, tudo o que está faltando para ele” (Devarim 15:7,8). É interessante perceber que o versículo começa com as palavras “você deve abrir sua mão para ele”, como se estivesse referindo-se a uma doação generosa, um presente ao pobre destituído, mas depois o versículo continua com a linguagem “emprestar o que ele necessita”, referindo-se apenas a um empréstimo. Por que o versículo aparentemente mudou o contexto da ajuda ao pobre?
De acordo com Rashi (França, 1040 – 1105), das palavras “você deve abrir sua mão para ele” aprendemos que, quando estamos diante de alguém destituído, devemos ajudá-lo dando-lhe dinheiro com generosidade, sendo proibido comportar-se de maneira mesquinha. Porém, das palavras “você deve emprestar” aprendemos que, caso a pessoa se sinta humilhada por estar recebendo algo de presente, sem nenhum tipo de esforço, então devemos ajudá-la através de um empréstimo, permitindo que ela mantenha sua dignidade e sua autoestima.
Nos versículos seguintes a Torá traz uma dura advertência em relação ao empréstimo de dinheiro a um necessitado: “Se cuide para que um pensamento ruim não suba ao seu coração e você diga: ‘Se aproxima o sétimo ano, o ano da Shemitá’, e seus olhos serão maldosos com seu irmão destituído e se recusará a dar para ele. E ele apelará contra você para D’us e será uma transgressão para você” (Devarim 15:9). O versículo está nos ensinando sobre uma pessoa que se recusa a emprestar dinheiro ao necessitado por causa da aproximação do ano de Shemitá. E por que a pessoa se recusaria a fazer um empréstimo a um necessitado? Pois a cada sete anos completamos um ciclo de Shmitá. No sétimo ano deste ciclo não podemos trabalhar nos campos e nem ter proveito financeiro das nossas colheitas na terra de Israel. Além das implicações agrícolas, também há implicações financeiras. Por exemplo, qualquer dívida é automaticamente anulada após a passagem do ano de Shemitá. Por isso a pessoa tem medo que, ao emprestar dinheiro próximo ao ano de Shemitá, não haverá tempo suficiente para que a dívida seja paga e ela será automaticamente cancelada, causando uma perda. A Torá então nos adverte a não sermos mesquinhos e não deixarmos de emprestar a um necessitado, mesmo quando o ano de Shmitá estiver próximo e a chance da pessoa não pagar a sua dívida for maior.
Porém, é difícil entender por que a Torá traz esta advertência logo depois do ensinamento anterior. De acordo com a explicação de Rashi, o versículo estava falando sobre uma pessoa que estava disposta a doar seu dinheiro com generosidade para uma pessoa necessitada, sem exigir nada em troca, e decidiu fazer a bondade através de um empréstimo apenas pela dignidade da pessoa necessitada, para que ela não se sentisse humilhada. Então por que a Torá precisou logo depois dar esta advertência para que a pessoa não deixasse de ajudar com um empréstimo quando se aproximasse o ano de Shmitá? Se a pessoa já estava disposta a dar todo o dinheiro como presente, por que estaria preocupada com o cancelamento da dívida?
Explica o Rav Yohanan Zweig que D’us, nosso Criador, conhece todos os mecanismos psicológicos que atuam sobre o ser humano. Quando uma pessoa dá um presente a um necessitado, ela experimenta um sentimento de preenchimento e alegria, uma sensação de realização. Normalmente este sentimento de “nobreza da alma” que sentimos é o que nos motiva a fazermos atos de bondade, como doar dinheiro a um pobre. Mas quando a pessoa ajuda o próximo através de um empréstimo, este sentimento de preenchimento e “nobreza da alma” é diminuído. A pessoa já não sente de maneira tão forte esta sensação de realização.
Além disso, se por algum motivo a dívida for cancelada, como acontecia após o ano de Shemitá, o destituído não reconhece a bondade daquele que “deu” o dinheiro e não atribui a ele a “boa sorte” de não precisar mais pagar a dívida. E o benfeitor, que fica sem o dinheiro do seu empréstimo, acaba sentindo que aquele que recebeu o dinheiro tirou vantagem dele. Certamente esta é uma experiência muito menos satisfatória do que quando a bondade é feita através de uma doação. Mesmo que, no final das contas, o efeito será o mesmo, isto é, nos dois casos a pessoa necessitada ficará com o dinheiro do benfeitor, quando o ato é feito através de uma doação ele vem com um sentimento de preenchimento, enquanto quando o ato é feito através da “doação forçada” de um empréstimo não pago ele vem acompanhado de um sentimento amargo.
A Torá está nos revelando algo impressionante sobre a psicologia do ser humano: mesmo quando fazemos bondades ao próximo, um dos principais motivadores é o nosso próprio bem estar. Portanto, isto não é uma bondade completa, e sim uma bondade “condicional”, que depende do quanto estamos sentindo que também estamos ganhando e nos sentindo preenchidos com o nosso ato de doação. É por isso que a Torá sentiu a necessidade de advertir a pessoa que faz a bondade ao necessitado através de um empréstimo de dinheiro. Por ser algo que causa uma experiência muito menos satisfatória, o empréstimo já não é feito com tanta alegria quanto uma doação. Associado com o iminente risco de perder o dinheiro do empréstimo no ano de Shemitá, a pessoa acaba se tornando egoísta e não tem mais vontade de emprestar. A Torá então afirma que isto é um mau ato, baseado no nosso egoísmo e com consequências espirituais negativas.
A Parashá nos ensina que D’us também se importa com as nossas motivações quando fazemos bons atos. Obviamente que o ato de ajudar é importante, mas se não fazemos pelas motivações corretas, o ato fica vazio. Além disso, se a motivação dos nossos bons atos for apenas a nossa própria satisfação, deixaremos de fazer bondades quando elas não nos agradam. Escolheremos a quem ajudar de acordo com a nossa empatia com a pessoa e não de acordo com as necessidades de cada um. Deixaremos de fazer bondades caso nos causem dificuldades ou esforços. Isto certamente limita o nosso potencial de bondade e, portanto, nos afasta de D’us.
D’us criou o mundo apenas por bondade e Sua bondade é infinita e incondicional. Se queremos que nossos atos emulem os atos de D’us, devemos nos esforçar para que nossas bondades sejam completas, tanto nos atos quanto nas intenções. Ao fazer a bondade, devemos pensar na satisfação daquele que recebe, não no nosso próprio preenchimento e bem estar. Normalmente traduzimos a palavra “Tzedaká” como “caridade”, mas na realidade Tzedaká significa “justiça”. Quando estamos ajudando um irmão necessitado, estamos fazendo apenas justiça, pois o que D’us nos dá “a mais” é apenas para que possamos ajudar as outras pessoas que necessitam. D’us intencionalmente faz uma distribuição desigual das rendas para que as pessoas possam se ajudar e se preocupar umas com as outras e, com isso, acumular méritos espirituais para o Olam Habá (Mundo Vindouro). Tudo o que temos foi dado por D’us e Ele quer que utilizemos nossos bens de forma a criar um ciclo de ajuda mútua. Desta maneira, cada um de nós pode contribuir para criar um mundo mais justo e mais feliz
Shalom.
RAV EFRAIM BIRBOJM – Mestre em Engenharia pela Escola Politécnica da USP, começou seu processo de Teshuvá (retorno ao judaísmo) aos 25 anos, através da Instituição “Binyan Olam”. Saiba mais.
Email: efraimbirbojm@gmail.com