AS ILHAS E AS VIAGENS DE ODISSEU. PARTE 2 – POR FELIPE DAIELLO

334_especial_5_1Num cálculo rápido, sendo realidade, pelo menos 9 mil quilômetros foram percorridos por Odisseu. O importante, no entanto, são as lições legadas para a posteridade.


334_especial_5_2Uma das Ciclopes, a ilha dos gigantes de único olho, com suas cabras, vai acolher os sobreviventes famintos e o navio avariado. Fartos de queijos, de leite, após repouso na caverna onde as cabras se abrigam são descobertos. Aprisionados na caverna, abrigo da besta, mesmo com as desculpas pela invasão e pelo consumo dos alimentos sem a devida permissão, dois marinheiros, como aperitivo, são devorados no jantar. Não adiantam os pedidos de misericórdia, não há salvação. A astúcia de Odisseu é sua única arma. Com o nome de “Ninguém” oferece ao gigante, o odre de bom vinho; cortesia do Rei Eolo? Depois de agradecer o presente, antes da queda, embriagado, Polifemo promete que “Ninguém” será o último a ser devorado.

334_especial_5_3Com toco de raiz, ponta afilada no fogo, Ulisses aproveita a oportunidade para cegar o monstro. Apavorado, entre dores, Polifemo solicita apoio dos companheiros, mas ao ouvir a respostas às indagações, eles nada fazem. Pois, ao perguntar quem era o autor das maldades, a resposta óbvia deixava Polifemo só com as suas loucuras.

– Ninguém é responsável!

Para escapar da gruta, no dia seguinte, pois o gigante controlava a passagem, apalpando as suas cabras na saída, era necessária nova estratégia. Preso aos ventres dos animais, um a um, os sobreviventes encontram a liberdade. Os demais marinheiros, ainda na praia, preocupados pela demora, imaginavam o pior para os seus companheiros de desdita.

334_especial_5_4Mesmo lamentando os companheiros devorados, era hora de zarpar. Vindas do alto do penhasco, Polifemo, às cegas, sentindo o logro, lançava imensas pedras na direção da nave. Era tarde e a distância aumentava a segurança.

Algo estranho desde a arribada. Animais circulam livres, apesar da forma animal, reagem como humanos. A bruxa Circe, a feiticeira da noite, através de poções secretas, transforma as pessoas em animais. Os companheiros de Odisseu, agora são porcos, perdidos na lama dos cercados. Avisado por Hermes, usando erva medicinal, contraveneno ao feitiço de Circe, Odisseu com a espada, ameaça de morte, recupera os seus marinheiros. Conquista a atenção e os favores da dama das trevas. Com Circe, na ilha de Ea, aprende lições de venenos e de filtros mágicos. Aprovisionado, embarcação recuperada, parte para a nova prova. Tem promessa para cumprir. Seu futuro está no inferno?

Um vulto à frente, representa outro desafio. Será de novo a ilha do vento? Éola? Promessa feita exigia que Odisseu buscasse o inferno em busca do seu futuro e do conhecimento para encontrar o caminho de Itaca. Dias de temor, medo crescente, até no final do horizonte, cercada de nuvens, escondida outro vulto aparece. Qual a nova surpresa? A salvação?

Cão com várias cabeças, Cérbero, aguarda os que chegam, No entanto, está calmo graças a atuação de Mercúrio, que intercede pelo seu protegido. Odisseu alcança o inferno. Precisa conhecer os tormentos destinados aos escolhidos. Quantos companheiros, amigos e inimigos, mortos nas guerras, os assassinados na calada da noite, até os seus algozes, passam cabisbaixos.

Sísifo, em tormento eterno, carrega pedra até o cimo da montanha, mal chega, a mesma despenca e ele continua em trabalho sem final. Tântalo, em suplício permanente, no meio da água mais pura, não consegue beber uma gota. Com fome, no meio de vergel, das frutas mais saborosas, morre de fome, incapaz engolir o alimento. Atenas é protetora fiel, permite a fuga do inferno, a viagem continua, outra aventura em ilha que se aproxima. Será Malta? Ou uma ilhota perdida na costa italiana?

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Djerba, nas costas da Líbia, atual Tunísia, aguarda os viajantes com outra surpresa, Chegam as Terras do Lotófagos, Os pântanos estão repletos de lótus, sua flor possui poderes alucinantes. A população alegre não tem problemas, esquece obrigações e tarefas. Odisseu percebe o perigo, se não fugir rápido perderá a sua tripulação. Enebriados pelo poder da droga não voltarão ao seu navio e esquecerão o desejo de retornar a seus lares.

Mesmo hoje, na cerâmica vendida aos turistas encontramos cenas que relembram a passagem do herói por essas praias magníficas.

Próxima parada, rápida na ilha dos Lestriões. Monstros inamistosos, pastores comedores de humanos que laçam pedras imensas quando naves se aproximam das suas praias. Fugir rápido é preciso. Pelo roteiro devemos estar perto da Sicília. Rumo a Positano, na Costa Amalfitana.

334_especial_5_6Ulisses vai passar pela prova das sereias. O seu canto atrai os marujos para a morte. Não se pode escapar do apelo de ente meio mulher e meio peixe. Alertado pelos seus deuses protetores, sabe como escapar, mesmo ouvido os sons da tentação. Amarrado ao mastro coloca cera nos ouvidos dos companheiros. As ordens são para amarrá-lo bem mais, mesmo que exija a libertação. A passagem, a gruta, segundo alguns seria próximo a ilha de Capri. As lendas locais tentam justificar as palavras de Homero.

Tudo ocorre conforme as ordens. Surdos pela cera, imunes ao chamado, quanto mais Odisseu esbraveja, mais amarrado ele é ao mastro. Desse modo, Ulisses, o humano, vence mais uma tentação criada pelo seu inimigo Netuno.

334_especial_5_7A seguir mudando o curso, a direção é o Estreito de Messina. Duas colunas impedem a passagem, o Penhasco de Sila de um lado os Caribdes do outro, monstros marinhos, dentes afiados, vão triturar alguns dos marinheiros, outros demônios sopram ondas, provocam redemoinhos,é o preço a pagar para passar incólume pelo estreito e seus guardiões. Depois o prêmio. A ilha já prevista do sol eterno.

Lugar perfeito, clima ideal, local de repouso. Mas um aviso é recordado pelos arautos. Os bois que pastam tranquilos pertencem aos deuses. Proibido o seu abate, mesmo em situação de penúria. Circulando pela ilha, encantado pelo clima, ao retornar Ulisses percebe o aroma da carne assada. Fora desobedecido, não consegue parar a gula dos seus marinheiros. Suas privações anteriores, o ambiente favorável, o gado disponível, não param os abates, mesmo com os avisos do seu comandante.

O castigo não tarda. Nuvens escuras, vento de fúria, tempestade obriga a fuga rápida para a embarcação. A punição não para mesmo no mar. Outro naufrágio, sobreviventes em jangadas chegam as terras dos Feácios. Possível Sicília Oriental, com terras férteis, vinhas, oliveiras e trigais, os acolhe.

Foram meses de bonança, de amabilidades e de reconhecimentos, oportunidade para festas, para ouvir loas, de confirmar relatos, sobre a sua atuação de herói reconhecido e cantado por muitos. Odisseu apaga as dúvidas, descobre o seu disfarce, relatando para o Rei Alcino e para a sua filha Nausica, o que sofrera durante a viagem de retorno.

334_especial_5_8Os artifícios de Circe, a feiticeira da noite, as suas poções mágicas, as proteções de Hermes, são detalhes escutados com curiosidade. As harpias cruéis, os monstros donos do mar atraem a atenção. Todas as demandas dos Deuses exigindo recondicionamento na personalidade do herói que desde o início fora contra a guerra, são ouvidos por plateia sempre atenta. Odisseu, apesar das festas, não esquece Itaca.

Era hora de partir, com novos barcos, provisões, tripulação renovada, agora Itaca tinha curso livre na decisão. Pelos mapas, do sul da Itália, da Sicília, onde Siracusa, no futuro será colônia grega famosa, não mais de 600 km até o seu lar. Corfu, denominação atual de Esquéria, no caminho seria a última parada?

334_especial_5_9Disfarçado de mendigo, conselho de Mercúrio, encontra antigo feitor e seu filho, Telêmaco, tem o abraço tão aguardado. Reconhecido por seu velho cão, Argus, terá de lutar pela esposa, Todos os pretendentes, os esbanjadores da sua fortuna são eliminados. O seu arco é potente e as flechas certeiras. Penélope, reconhece o seu senhor, não precisa mais tecer as suas desculpas de anos.

Mesmo com os descontos e falhas na descrição, da imaginação livre, nos versos Homero apresenta a cultura de um povo, a ideia de alcançar uma nacionalidade política e cultural comum a todos. Nos relatos, um tipo ideal de ser humano, um grego perfeito é moldado pelo escritor. As habilidades necessárias realçadas. A coragem aliada à inteligência, o respeito às leis ao lado da vontade de descobrir os mistérios da existência, a união das tripulações para chegar ao sucesso, a disciplina para enfrentar os perigos, a importância de descobrir as artes e as ciências dos entes superiores, a necessidade e a importância da lealdade, da amizade e da família, são constantes avisos para que o retorno à realidade seja feliz e com sucesso.

Ao completar a jornada, tentando ver nos mapas o possível trajeto da Odisseia, tempos em os fenícios mal iniciavam a sua conquista, em que a Atenas de Péricles ainda era um sonho, as guerras entre Cartago e Roma aguardavam séculos, não é fácil obter certezas, chancelar detalhes, confirmar lendas e seus detalhes. Mas as façanhas de Ulisses, nome latino do herói grego Odisseu ganham dimensão mundial. Antes de tudo um épico, o relato de uma expedição naval. Algo que desperta “Os Lusíadas” de Camões e as expedições portuguesas, 2.500 anos mais tarde, bem como as explorações do Almirante chinês Zheng He.

Num cálculo rápido, sendo realidade, pelo menos 9 mil quilômetros foram percorridos por Odisseu. O importante, no entanto, são as lições legadas para a posteridade.

Astúcia, inteligência, ousadia, fé e esperança, tenacidade, curiosidade e coragem no enfrentamento do desconhecido, perseverança nos propósitos, são qualidades necessárias para atingirmos nossa realização e o sucesso permitido pelos deuses.


FELIPE DAIELLO – Professor, empresário e escritor, é autor de inúmeros livros, dentre os quais “Palavras ao Vento” e ” A Viagem dos Bichos” – Editora AGE – Saiba mais.

daiello@cpovo.net www.daiello.com.br

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