QUANDO O ABISMO NÃO TE OLHA DE VOLTA – A EXPERIÊNCIA NO CANYON VERMELHO – POR PAULO ROSENBAUM

Mais do que distante, fui dominado por um estoicismo melancólico. Em apenas um segundo, eis que fui invadido por um insight: o abismo é só um vazio que não só não te deseja como te despreza acintosamente.


O risco faz parte da decisão daqueles que resolvem emigrar. Mas e quando os pais visitam filhos cuja escolha foi essa? Além da viagem ser um empreendimento perigoso em nossos tempos, as barreiras não se limitam a ela. Os riscos? Risco de ter a saudade exacerbada no lugar de mitigada. Risco de enxergar as condições nada ideais de vida prática mesmo considerando que foi esse o impulso que costuma mover o imigrante. Risco de saber que uma distância de 12.000 milhas não pode ser transposta mesmo por mensagens de texto instantâneas ou ligações de vídeo pela internet. E, por último, o mais difícil, saber que o horizonte substituto do outro jamais se transformara no seu próprio. Foi neste contexto que resolvemos, então, durante a viagem, fazer uma escalada em família.

Escolhemos o canyon vermelho, região sul de Israel, uma pequena área de Wadi Shani, (em hebraico: הָעֲרָבָה, literalmente “área desolada e seca”; em árabe: وادي عربة) uma cadeia montanhosa que começa sua trajetória desde o Deserto do Sinai no Egito, e que tem um desfecho nesta estranha paisagem de deserto. Trata-se de uma formação montanhosa rochosa, pequena, um trajeto de 5 quilômetros, com uma hora e meia de duração a depender do trajeto escolhido. O problema está na volta. O risco paira sobre a vida assim como em toda literatura, e o retorno costuma simbolizar a dor passada. O exemplo icônico é representado pela estátua de sal na qual se transformou a mulher de Lot: a areia que nunca se desfaz.

Mais uma vez estive visitando e ouvindo uma terra que persiste em ser ameaçada e inserida num mapa alternativo do mundo. Evidentemente, para desgosto dos caluniadores, em Israel não há apartheid, não há racismo, claro que isso não significa que a tensão entre os desiguais não esteja presente, como em todas as partes do mundo. O alarmante recrudescimento do antissemitismo, mereceria, dos democratas do mundo e da imprensa livre bem mais do que tímidas interjeições de ultraje.

O mais notável que — mesmo em meio as escaramuças— as relações entre árabes e judeus sejam contínuas há milênios. E mesmo que sejam instáveis e mesmo que sempre estejam sob uma integração oscilante, elas permanecem. Chamou a atenção como a vida se desenvolve em meio a uma multiplicidade de variáveis incomodas. Por exemplo, a tipologia dos povos, costuma ser vasta em todos os cantos, porém, em Israel, isso se transforma em uma metáfora exuberante, pois há uma multiplicidade de tribos e pessoas em estado de pura peculiaridade. Étnica, racial, cultural. Beduínos gourmets, árabes yuppes, judeus ortodoxos rastfari, drusos especialistas em drones, cuidadores tailandeses, russos guias de museus, penitentes em estado extático sem contar aqueles que desenvolvem a famosa síndrome de Jerusalém, quando sujeitos comuns se descobrem prolixos profetas assim que desembarcam na cidade.

A polissemia religiosa, cultural e política é tão ampla que se torna impossível estabelecer qualquer predomínio ou homogeneidade. A divisão é uma das permanências nesta sociedade. Para além de interpretar este fato como virtude ou defeito o curioso – para contornar o vocábulo “milagroso”- é preciso tentar compreender por que todas aquelas pessoas querem estar ali, amontoadas, espremidas em trens lotados, em intransitáveis mercados, alguns a céu aberto, em peregrinações erráticas.

Isso tudo em Jerusalém, mas deslocando-se mais ao sul, em Eilat, pode-se apurar melhor que este é um lugar parecido com todos. Mesmo Israel sendo único, como todos os outros rincões.

Já em Tel Aviv, sob um cosmopolitismo quase artificial, pode-se sentir a modernidade liquida na pele. Antes de tudo ela é afetiva e dosada em shekels, já que hoje passou a ser a cidade mais cara do mundo, superando Paris e Singapura. As pessoas passam a sensação de estar em uma ciclotimia ritual e isso pode ser muito estranho para um visitante. O humor aqui oscila bem mais do que a temperatura. Sim, pois para entender a improvável diversidade do País é preciso capturar senão sua história, seu contexto exclusivo.

Não basta ser o lugar dos judeus, dos sobreviventes do holocausto, nem a terra que, mesmo em meio às turbulências dos arredores, se recusa a ser uma ditadura como tantas espalhadas pelo oriente, e enigmaticamente toleradas pelo ocidente. Este resultado – uma diversidade cheia de couraças, mas duradoura — só pode acontecer sob eleições livres e com rodízio de poder. Por isso mesmo, judeus e árabes convivem mesmo sem as confluências e isonomias idealizadas por analistas militantes e acadêmicos com viés ideológico A coexistência não significa necessariamente paz, assim como compreender não significa perdoar.

É portanto mais do que plausível arriscar que uma das características desta sociedade seja esta: ninguém por aqui idealiza mais nada. A receita? Quase seis milênios transformam qualquer um em pragmático. Dos garçons aos vendedores de suco de romã. Dos fumadores de narguilé aos operários que varrem os pedidos que costumam ser grudados no Kotel (o muro ocidental, também conhecido no jargão do SAC como “muro das lamentações”) a vida prática se impõe com a mesma devoção das tradições e o turista não deve se assustar. A não ser que alguém busque criar espaço com os cotovelos ou uma vendedora de sorvete se recuse a vende-los se você deixou algo fora do lugar no supermercado. Neste caso, abstenha-se de coisas geladas e esfrie a cabeça.

Conflitos costumam ser resultados de complexos, que geralmente são comandados por desejos inconscientes, idiossincrasias e mitos pessoais. Porém aqui existe uma espécie de densidade geográfica espiritual. Sob a carga da experiência acumulada, camadas e camadas de uma arqueologia sentimental ignorada, de qualquer maneira, praticamente indecifrável, se faz presente e predomina.

Se toda análise requer uma síntese é preciso uma que reconstitua a trajetória dos sentimentos e sensações para colocá-los no lugar certo. O judeu, não mais o errante — de Eugene Sue e Sigmund Freud — permanecerá para viver a vida por aqui e onde mais ela estiver disponível. A coexistência no Oriente Médio não significa necessariamente paz, assim como compreender não significa perdoar.

Voltando ao Canyon, lá estava eu pendurado sobre o abismo e sob o olhar apavorado das minhas filhas – de fato estar pendurado sobre a face do abismo é um exercício pouco recomendável para pessoas acima dos 40. Foi quando pensei no meu pai e no recente sofrimento por perdê-lo. Agarrei mais fortemente as alças de metal chumbadas para escaladores. Foi ali, ainda pendurado, apreciando o mundo de ponta cabeça que enxerguei o canyon com outra perspectiva. Vasculhei com os olhos as camadas que demoraram milênios para formar aquela sedimentação, a precariedade das rochas empilhadas e o aviso na placa “Cuidado: fique atento, pedras rolantes”.

Pensei na célebre frase de Nietzsche: a sensação de que enquanto olhava para o abismo ele olhava de volta. Se houvesse uma insinuação do desfiladeiro não era fazer o papel de imã, mas reafirmar sua vocação de um solo, outrora fértil. Minhas mãos vacilaram e deslizei. O insustentável peso do ser pode ser um momento sublime de apego a vida. Aumentei a pressão das mãos sobre as barras de segurança. E, de novo, fiquei atento: pedras rolantes. Uma mensagem digna da porta da cozinha para antes do café da manhã. Ali, com a lua pairando ao fundo em pleno dia, e ainda vendo o mundo sob outro ângulo, o pendente, notei que desde que a morte impôs o frio veredito sobre a família, permaneci alienado. Mais do que distante, fui dominado por um estoicismo melancólico. Em apenas um segundo, eis que fui invadido por um insight: o abismo é só um vazio que não só não te deseja como te despreza acintosamente. Voltei então à avaliação do risco original. É possível que concorremos mesmo para nossa própria extinção, e até ela só se torne possível sob tal condição.

Ainda assim, o apego à vida ficou mais enraizado, e, nunca saberei ao certo se tal adesão foi o instinto de auto preservação ou puro amor pelos demais. Soube apenas que o risco revelara seu valor oculto e fiquei grato pela experiência no canyon vermelho.

E agora, já de volta, posso ouvir a risada das filhas abafando o silencio do abismo.

*Para Marina, Hanna e Iael

Paulo Rosenbaum

Paulo Rosenbaum nasceu em São Paulo em 1959. É médico e escritor. Possui Mestrado em Medicina Preventiva, Doutorado em Ciências e Pós-doutorado em Medicina Preventiva pela USP, com mais de uma dezena de livros publicados na área. Escreve, regularmente, para o jornal Estado de São Paulo, no blog “Conto de notícia”. Roteirista e produtor de documentários, atuou como editor de revistas científicas no campo da saúde. É pesquisador na área de clínica médica, semiologia clínica, relação médico-paciente, prevenção e promoção da saúde e pesquisa de medicamentos. Além de ensaísta, é poeta, contista e romancista. Antes de Navalhas pendentes, publicou os romances: A verdade lançada ao solo (Record, 2010) e Céu subterrâneo (Perspectiva, 2016).

rosenbau@usp.br


Fotos – Paulo Rosenbaum[/caption]