Não é religião, são Nervos : para Topol – Por Paulo Rosenbaum
Topol, o ator protagonista de “O Violinista no Telhado” (1934-2023)
Faleceu ontem (11/03) o ator Chaim Topol, aos 84 anos, que atuou no icônico, estereotipal, brilhante, reducionista, destarte maravilhoso filme acima referido. “Tevye” foi seu personagem, de aparente simplicidade como tudo que se refere a uma análise panorâmica e unidimensional, abriu ao mundo uma percepção inédita: retratou o modo como viviam os judeus em seus stetl (guetos) na Europa oriental do XIX, em uma dimensão que abrangeu o humor peculiar, a estética dos costumes e principalmente a musicalidade inata de uma nação de ouvidos absolutos. Mas é o subtexto abordado naquela película era menos mostrar ao mundo a peculiar condição precária das populações judaicas e sua estranha felicidade imotivada, e muito mais evidenciar a cansativa, maçante e abjeta repetição das perseguições judeofóbicas e antissemitas, pelo visto incuráveis vícios da humanidade. Muito provavelmente o termo “película” é cronologicamente insustentável, mas será mantido já que a insustentabilidade pode, em algumas almas, produzir regozijo inexplicável .
Ataques antissemitas crescem pelo mundo, de New York a Nova Zelândia, o número de crimes de ódio e discursos que misturam xenofobia e teses mitômanas explodiu, culminando em um record perturbador. Desde os anos 30 não se registrava esta quantidade de atos terroristas contra pessoas e instituições judaicas pelo mundo. Alimentadas por autocratas e patrocinadas por teocracias pseudo democráticas. Gente boa, como os que, sob licença do populismo arrivista, puderam recentemente atracar suas belonaves no Atlântico Sul para que os membros da Guarda Revolucionária viessem pegar um bronze da hora em Copacabana. São os mesmos acusados de organizar o ataque terrorista contra a AMIA em Buenos Aires e de recentemente terem fornecido a logística para franco atiradores massacrar pelo menos 500 mulheres nos recentes protestos pela morte de Mahsa Amini contra a polícia moral dos aiatolás que fiscaliza o uso do hijab, o véu.
Sob os mais diversos argumentos justificacionistas a guerra contemporânea contra os judeus se repete sob slogans e fórmulas das mais incríveis e autenticamente paradoxais: são de esquerda, são de direita, liberais em demasia, povo conservador, são capitalistas, são socialistas, apegados à matéria, lunáticos que vivem no mundo supernal, povo isolado, querem se integrar, estão dispersos, defendem valores anacrônicos, sionistas, por que não vão embora para Israel, são alegres demais, excessivamente melancólicos, reclamam demais, tiveram a passivividade de cordeiros, tem autonomia exagerada, se fazem de vitimas, defendem-se demais, como ousam protestar contra os foguetes diários, e mais uma centenas de teses e sintaxes hostis para bem além dos neonazistas, que enchem a boca, as redes sociais, as páginas de gente acrítica e a testeira dos jornais, num amplo arco de nonsense, ignorância não dialética e desonestidade intelectual.
Trecho do livro “A Verdade Lançada ao Solo”*
“Não é religião, são nervos.
A manhã vai ameaçando com suas migalhas. Nos olhos fotofóbicos de Zult é possível ver o reflexo da janela com os pontos nevados ao fundo. No primeiro plano, acompanha o deslize de carroças, que passavam lentamente, transportando, precariamente, tambores de madeira contendo leite fresco. O leite gotejava há décadas nas tábuas ressecadas da carroça. As poucas crianças mal agasalhadas correm ao largo para se divertir com os cavalos do leiteiro. Ganhariam sobras no final da jornada. A cena é bela, mas na tradução interna de Zult, ela se estabiliza como angina melancólica, que o oprimem.
Os campos poloneses nunca deixaram de ser altiplanos agro-pastoris. Os primeiros judeus que ali aportaram remontam a época da primeira cruzada em 1098. Primeiro vieram em agrupamentos para buscar refúgio do clima fanático antijudaico na Europa central que se tornava insuportável durante os surtos de peste negra. Novas levas, desta vez em massa, vieram depois no século XVI, tentando escapar das unhas afiadas do santo ofício em seguida aos éditos imperiais luso-hispânicos. Esperançosos, como sempre, imaginavam-se seguros em lugares cada vez mais remotos e frios.
No dia seguinte, um domingo, o primeiro dia útil da semana Zult descansa o braço no mesmo sofá de madeira despedaçado. Está esperando ser chamado para a reza da manhã – o que, aparentemente, não exigiria muito dele, pois o Shil, a sinagoga, era sua própria casa. Cansa-se, por um momento, da rotina mecânica dos afazeres diuturnos.
“Não devia ter acumulado tantas funções”
De fato Zult era orador, editor, rabino, escritor, médico, orientador de cabeças extraviadas, lenhador.
“Confesso Oh Altíssimo que tenho medo…medo de descobrir novos talentos…teria que exercê-los”
Retoma a explicação, desta vez foca o olhar reluzente sobre a filha Dvora Lea.
O que Zult achava mesmo extraordinário era a capacidade das crianças para construir imagens sobre o mundo espiritual. Pegava-se espiando para ouvir o que conversavam, de preferência antes de terem sido formalmente instruídas sobre conceitos religiosos. O que o interessava era capturar a osmose delas, que antes de tudo, pescavam do que viam e sentiam. Como impressionava a facilidade com que desenvolviam os temas. Quando podia, anotava ideias com a atenção de um discípulo acrítico. Enxergava a despretensão inata na construção da linguagem, numa gramática intuitiva. Alguns assuntos se mostravam tão complexos que nenhum mentor poderia ter correspondido satisfatoriamente às arguições. Mas, ainda assim, Zult seguia à risca o hábito hassídico de jamais responder sem ser antes questionado.
Durante anos passou a coletar uma série de perguntas em um bloco de sobras de pergaminho. A maioria formaria uma espécie de antologia, um livro dos “por quês” sem resposta:
“Quem criou o Criador?” “Por que ele deixa que tudo isso aconteça?” “A alma é uma bola de ferro pregada dentro?” “Ele está depois do nada?” “Nós fomos eleitos para que?” “De onde vem a boa sorte?” “O universo é um escorpião enrolado com a cabeça voltada para a cauda?” “O que é o outro mundo?” “Onde estão os justos?” “Precisamos de Deus ?” “Quem é Ele, ou é Ela?” “O nada estava lá? Antes de tudo?” “Deus está nas janelas?”“O que viemos fazer aqui?”
— Porque estamos sempre tentando controlar a vida dos outros? Damos muito valor às formas. Há excessiva maledicência e ódio gratuito. Isto – gira levemente o tronco para fitar outros interlocutores com os dedos tensos e estirados forçando as digitais contra um púlpito improvisado — não pode ser religião.
— Não, não é é religião, são nervos. Ponderou enquanto balança a cabeça com o pescoço tenso.
Invoca o que o deixava confortado quando a intolerância se pronunciava de forma muito hostil. O tratado talmúdico Shabat recomenda, como exceção, que uma luz pode ser produzida em pleno shabat – o que significa violá-lo – se uma criança apresentar pânico de escuro, o medo incontrolável justifica a violação.
Depois de alguns minutos de silencio explode tentando dissimular seu inconformismo.
— É o caso de se falar em avesso absoluto, o oposto da exigência do Altíssimo!”
Rosenbaum, P. *Verdade Lançada ao Solo, Record, Rio de Janeiro, 2010
https://www.estadao.com.br/brasil/conto-de-noticia/nao-e-religiao-sao-nervos-para-topol/
Paulo Rosenbaum
Nasceu em São Paulo em 1959. É médico e escritor. Possui Mestrado em Medicina Preventiva, Doutorado em Ciências e Pós-doutorado em Medicina Preventiva pela USP, com mais de uma dezena de livros publicados na área. Escreve, regularmente, para o jornal Estado de São Paulo, no blog “Conto de notícia”. Roteirista e produtor de documentários, atuou como editor de revistas científicas no campo da saúde. É pesquisador na área de clínica médica, semiologia clínica, relação médico-paciente, prevenção e promoção da saúde e pesquisa de medicamentos. Além de ensaísta, é poeta, contista e romancista. Antes de Navalhas pendentes, publicou os romances: A verdade lançada ao solo (Record, 2010) e Céu subterrâneo (Perspectiva, 2016).