O EMBUSTE DA MEMÓRIA ARTIFICIAL E ELOGIO DO SENSO HISTÓRICO* – Por Paulo Rosenbaum

Há pouco mais de 75 anos do fim da segunda guerra mundial o mundo fez renascer o que jamais morreu. Em 07/10 algo foi destravado e dos galpões saíram neonazistas, stalinistas, gente intolerante de todos os espectros políticos. Você acha mesmo que todas estas mobilizações se referem a Israel?

Dia 27 de janeiro, Dia Internacional em memória das Vítimas do Holocausto – relembrar para não repetir.

Normalmente, um dia de memória é data para tributo. Para muito além disso, é uma ocasião de alertas para a prevenção de erros recorrentes. Desculpem, falhamos, não é o que tem acontecido. Não há o que celebrar.

Você me diz que é assim mesmo, mas como é que não sinto assim? O que posso te dizer? Que cansei de enaltecer a memória?

Que assim como na negação da morte, só conseguimos viver ao reconhecer que precisamos negá-la? Uma certa amnésia parece tanto inevitável como necessária.

Você considera derrotismo? Antes de criticar apresento um exemplo: lembro de quase tudo o que houve com a família do meu avô, e como todos eles desapareceram no gueto de Varsóvia.

Querem saber se foram assassinados pelos nazistas?

Decerto. Mas é mais importante registrar que nunca mais se ouviu falar deles. Sumiram sem deixar marcas no mundo. Evaporaram como folhas secas trituradas e pulverizadas que jamais serão identificadas. Meu avô foi o único que conseguiu sair de lá, e isto só aconteceu porque ele serviu o exército na Polônia. Se já existem negadores do Shoah hoje, imagine daqui a 100 anos.

Deduz-se então que a memória pode envenenar. Como afirmava o médico medieval Theophrastus Bombastus Von Honenhein, também conhecido como Paracelso, ela, a memória, pode funcionar como veneno ou bálsamo. Ela intoxica pelo excesso. Ela nos adoece pela distorção. Vejam e ouçam a multidão que desfilou solidária aos terroristas. As marchas que fizeram coro de ódio contra judeus. Há pouco mais de 75 anos do fim da segunda guerra mundial o mundo fez renascer o que jamais morreu. Em 07/10 algo foi destravado e dos galpões saíram neonazistas, stalinistas, gente intolerante de todos os espectros políticos. Você acha mesmo que todas estas mobilizações se referem a Israel? À resposta de auto defesa contra os massacres sem precedentes intencionalmente impostos contra civis desarmados? Da reação de legitima defesa contra os terroristas palestinos do Hamas e seu jihadismo por procuração?

Nada disso. Isso tampouco é por falta de memória. Estamos sim, diante de uma memória a serviço da desinformação. Que funciona a todo vapor.

Você agora me pergunta: os judeus são vitimas crônicas do mundo?

Não colocaria desta forma. Aqui no ocidente, somos todos pacientes de uma medicina inescrupulosa chamada geopolítica. Terá a ver com a Rússia despistando suas ações na Ucrânia? China fazendo o mesmo em relação às suas ambições sobre Taiwan? Ou os Aiatolás tentando dar sobrevida à uma teocracia terminal?

Provavelmente. Mas é chegada a hora de lançar decretos sobre nós mesmos e impor uma certa alienação. Há uma idade que podemos nos dar a este luxo. Não, não , isso que você me apresenta também não é memória.

Enxergo memória seletiva, memória informada, memória distorcida, memória parcial, memória lacunar, memória intermitente e tantos outros tipos de acúmulos: a memória ao qual estamos acostumados são as notícias estrategicamente colocadas nas manchetes das consciências. É isso, são trechos de informação em meio aos novelos de desinformação. Todos enroscados na cabeça das pessoas. Mas elas não entram, ficam paradas na superfície. Nas imagens do Instagram. Nos comentários dos tribunais eletrônicos. Na opinião pública sem livre arbítrio. As notícias selecionadas pelos editores não são metabolizadas. Não foram feitas para fazer parte do sangue, das células, da genética, do corpo e do espírito. São montadas para que você julgue instantaneamente. Porque se fossem processadas e discutidas esculpiriam em cada sujeito o que realmente faria toda diferença: senso histórico. Um sentido muito mais importante do que a memória. A memória nos obriga a lembrar de fatos, fotografias, encontros e trechos da vida. O senso histórico é um registro anímico.

Por isso, por favor, agora que você já sabe, nunca mais exija coerência da memória.

A memória também pode ser ilógica, pois ela não é necessariamente sequencial. As consequências, por exemplo, podem vir antes das causas, as teses antes das hipóteses, o revisionismo histórico contra os fatos e os fenômenos, e assim por diante. Entendes agora porque elogio algum esquecimento? Imagine por um momento: uma certa amnésia pode ser ser a origem de uma paz embrionária. Um lapso curto pode fazer esquecer do teu compromisso com a vingança. E aquela lista negra que carregamos para todo lado poderia muito bem ficar extraviada depois do cafezinho, em uma restaurante de beira de estrada.

A memória pode, inclusive, ser tirânica. Como as declarações recentes de pessoas que se imaginam lideres. Que tem a ilusão de grande personagem, mas são incapazes de exercer o altruísmo mínimo. O tirano sempre nutri um sonho narcisista. Assume-se como benfeitor com nostalgia do reconhecimento das massas. Através de manobras populistas pode atingir algum êxito. Já à noite, ah, a noite não perdoa! A verdade impertinente entra e assopra à queima roupa, o que os obriga a reconhecer, no espelho, o tirano jamais será, de fato, um Estadista. E o recalque obriga-o a trabalhar dobrado, impulsionado pelo leitmotiv da desforra, da represália e da vendeta mesquinha. Um exemplo auto evidente de como opera uma memória regida por um núcleo mental perverso.

O que deseja o mundo quando se trata dos judeus?

Uma reedição informal das leis raciais promulgadas em 1935 pelos juízes arianos de Nuremberg? Ali também foram leis publicadas por um Tribunal: “os judeus pertencem a uma raça separada, inferior a todas às demais raças” Desta vez, porém, não serão mais leis raciais. O argumento racial está desprestigiado, pegaria mal. E já não podem confessar abertamente o que desejam: submeter os judeus novamente ao status de “Sem Nação” e forçá-los a viver sob a velha insegurança ancestral? Quem sabe para reafirmar o gozo: “continuarás a ser o judeu errante de sempre”!

De que outro modo explicar a postura do atual executivo brasileiro rasgando toda doutrina de comedimento diplomático em política externa? Claro que o fizeram usando o astuto manto do antissionismo. E usaram estratégicas redes de desinformação salpicadas de implantes de memória artificial. Por acaso esqueceram do papel simbólico fundamental de Oswaldo Aranha? Uma coisa já é possível afirmar, há limites para fluxo de manada contra Israel, — que deve respeitar as leis humanitárias mesmo lutando contra um exército terrorista vil — incluindo o apoio ao previsível julgamento político contendo acusações caluniosas de intenções genocidárias levadas ao Tribunal Penal Internacional. O veredito? Acaba de sair com um resultado parcialmente favorável a Israel, apesar de uma retórica para lá de duvidosa. Conforme nos adiantou um brilhante e sagaz advogado: nada sobre o maroto jogo de palavras do País que, seguindo o plano premeditado, provocou o tribunal. Em síntese: essa memória artificial não presta. É um engodo.

Destarte, lembrem-se, e repitam em voz alta: vocês não estão sendo traídos pela memória. Vocês é que a traem.

Afinal, como previsto, você acabará me perguntando:

— Será que o mundo não tem memória?

Possui excelente memória, memória corrompida pelo revisionismo de ocasião.

Portanto, passou a ser muito mais honesto exaltar a senso histórico.

Só preciso saber o que fazer com o meu senso histórico: ele continua a emitir sinais ambíguos, onde se alternam estados de alerta e lampejos de esperança.

Vou avaliar o que sobrar no final do dia.

Se sobreviver, informo.


*Para todos aqueles que tombaram na luta contra a intolerância.

Nota – matéria publicada no Estadão:

https://www.estadao.com.br/brasil/conto-de-noticia/o-embuste-da-memoria-artificial/


PAULO ROSENBAUM

Médico e escritor, mestre em medicina preventiva, doutor em ciências (USP) e pós doutor em Medicina Preventiva (FMUSP) , autor de Outro Código da Medicina, Medicina do Sujeito, Novíssima Medicina, Entre Arte e Ciência, as bases hermenêuticas da homeopatia. Na literatura publicou os romances “A Verdade Lançada ao Solo” (Ed. Record, 2010), “Céu Subterrâneo” (Perspectiva, 2016), “A Pele que nos Divide” (Poesia – Quixote-Do, 2018). Desde 2013 edita e publica o Blog “Conto de Notícia” no Jornal O Estado de São Paulo.

rosenbau@usp.br

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