MAIMÔNIDES, O RAMBAN. FILÓSOFO E MÉDICO DO MUNDO – POR FELIPE DAIELLO

“É preciso explicar a Torá, em seu autêntico sentido, para os desorientados, os perplexos, os confusos, que, ao renunciarem à razão, permanecem agarrados às suas fantasias”.

O nosso encontro inicial foi na cidade de Córdoba, na Espanha onde nasceu em 1135. Era época de grande esplendor de califado que suplantava em fama e poder econômico o de Damasco na atual Síria. Escolas, universidades, bibliotecas, mesquitas, mais de dez, onde a Grande Mesquita, com seu minarete altaneiro, chamava os fiéis para as preces diárias.

Maimônides, de abastada família judia, destaca-se na área da filosofia e principalmente na da teologia. No antigo bairro judeu, ruelas estreitas e tortuosas, onde encontramos uma das poucas sinagogas construídas segundo a arquitetura mudéjar, na Espanha, sua estátua em bronze, mostra a importância desse grande personagem. Conhecido também como Ramban, principalmente hoje no Estado de Israel, Maimônides ao final, vai encontrar seu repouso eterno em sepultura junto a cidade de Tiberíades no Mar da Galileia. Mas antes do final terá vida bem atribulada com muitas lutas e enfrentamentos com poderosos adversários.

Como teólogo, especializado no Talmude, trabalha em estudos e pesquisas que balizarão os princípios da fé hebraica:

D’us existe. D’us é único. D’us é espiritual.

Usando os princípios da filosofia grega e da árabe, pois convivia em plena expansão da cultura e da fé muçulmana na região do Mediterrâneo, com conexões intensas com as tribos vindas do Magrebe e do norte da África e das áreas dominadas da Andaluzia, introduz novos conceitos religiosos nem sempre aceitos pelos membros da sua fé e mesmo dos severos imãs muçulmanos.

Entra em contradições com os ensinamentos persas defendidos pelo mestre Avicena. Como descendente do “ Povo do livro” está em cadinho cultural, onde Averroes, também nascido em Córdoba em 1126, será constante contraponto. Ambos escrevem no idioma árabe, a língua cultural daqueles anos. Época em que as bibliotecas e as escolas florescem em Córdoba, tanto em quantidade quanto em qualidade. Nos seus escritos, com seu prestígio como magistrado, Averroes menciona biblioteca onde estuda, com centenas de milhares de livros e de manuscritos.

As terras da Andaluzia e do Al Garbe em Portugalia, pródigas na produção de alimentos e de minerais, mantêm intenso comércio com outras regiões do Mediterrâneo e mesmo da Ásia. Maimônides vive e trabalha em época de grande esplendor cultural e econômico.

Mesmo com os episódios da Reconquista Cristã para recuperar os territórios ocupados desde 711 d.C., quando iniciou a conquista da Andaluzia partindo de Gibraltar, havia certa paz no Califado de Córdoba, mesmo com a chegada dos guerreiros templários. A situação política em Córdoba dependia muito mais do equilíbrio entre as tribos árabes que dominavam o Magrebe no norte da África. Após a morte do Profeta, seus sucessores lutam pelo controle do poder político, pois na fé muçulmana, conforme a Alcorão, o poder religioso está ligado ao poder civil.

Com a predominância das legiões fundamentalistas, em alternância de poder, Maimônides é obrigado a fugir de Córdoba, indo por primeiro para outras cidades da Andaluzia e depois para Tanger e Fez, no atual Marrocos. Para sobreviver estuda e se aplica nas artes médicas, atividade que vai lhe trazer fortuna. Os Almohadas, defensores da fé pura, baseada no Alcorão, exigiam a conversão dos judeus, caso contrário seriam expulsos, multados e perseguidos até a conversão forçada.

Ao circular entre Ceuta, Tanger e Fez, traços de Maimônides ainda podem ser encontrados ou indicados sem muita convicção ou certeza. Em Fez, a casa indicada como local de sua moradia, não tem validade científica, parece ser construção fake para ganhar moedas. Séculos mais tarde a região vai receber levas de refugiados, tanto de muçulmanos como de hebreus. Os reis católicos Isabel e Fernando, após a conquista de Granada ,precisam cristianizar a península andaluza.

Com prestígio crescente no Magrebe pelos seus conhecimentos na medicina é convidado para ser médico particular do Sultão do Cairo e de sua família. Lá viverá, reconhecido e rico, os seus últimos anos até falecer, em 1204, na cidade de Fustat.

Rabi Moshê ben Maimon, mestre das profecias, parte dos ensinamentos de Avicena (Ibn Sinã em árabe),filosofo e medico persa, de quem discorda, para estabelecer novos conceitos e paradigmas nos livros que escreve. Escritos que vão redefinir o judaísmo, como: Guia para os perplexos e Os treze princípios da fé.

Como reformador, um novo Moisés, Maimônides vai estabelecer novas regras para os seguidores da Bíblia e da estrela de David. Fieis dispersos pelo mundo, falando línguas diferentes e assimilando estranhos e distintos costumes e com dois Talmudes: o de Jerusalém e o da Babilônia. Suas palavras:

É preciso explicar a Torá, em seu autêntico sentido, para os desorientados, os perplexos, os confusos, que, ao renunciarem à razão, permanecem agarrados às suas fantasias.

No Cairo, onde trabalha por mais de 10 anos para codificar os seus Talmudes, vetusta sinagoga do século X ou XI leva o seu nome; está esquecida pelos humanos e pelo tempo. Não longe do Nilo, perto do Museu da Arte islâmica, da Cairo Tower e do Cassino Barrière. Vale a caminhada.

Após a sua morte em Fustat, no Egito, onde será enterrado, conforme sua vontade de ser sepultado em Israel, seus restos mortais serão transladados. Mas para onde? Não deixara nenhuma indicação ou referência.

Diz a lenda que seu esquife, no dorso de um dromedário, começou longa peregrinação, enfrentando desafios de todos os tipos. Não esqueça que Saladino havia retomado Jerusalém dos cristãos, em 1187, mas os francos através de novas cruzadas tentavam recuperar a cidade de três religiões. O perigo era uma constante.

Certo dia, o dromedário parou e se ajoelhou. Seria um aviso? O local do fim da jornada? O Mar da Galileia estava em frente, a cidade era Tiberíades.

Após a destruição de Jerusalém por Tito, em 70 d. C., das revoltas dos Macabeus, da dispersão das tribos, em Tiberíades núcleo de resistência e de manutenção da fé mosaica se instala. A jornada chega ao seu final.

Hoje, na parte antiga de Tiberíades, perto do velho cais e de um muro de lamentações, mausoléu dedicado não apenas a Maimônides, mas a outros mestres e filósofos recorda o reformador e o criador da Mishnê Torá com as suas 14 partes, Trabalho bíblico criado no Cairo, 10 anos de labuta, sob inspiração de um D’us único e da persistência de um homem.

Do Mar da Galileia muitas histórias ainda podem ser escutadas, as ondas movidas pelos ventos vindos dos altos do Golan, curiosas, não param de chegar. Fiquem atentos às mensagens vindas de tão longe, mesmo as do infinito.


FELIPE DAIELLO

FELIPE DAIELLO – Professor, empresário e escritor, é autor de inúmeros livros, dentre os quais “Palavras ao Vento” e ” A Viagem dos Bichos” – Editora AGE

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