FORMADO EM MEDICINA OU MÉDICO? – ILDO MEYER

Ildo


Ajudar uma criança a nascer, aliviar a dor de quem sofre, salvar a vida de um moribundo é um privilégio de poucos.

Logo depois de minha formatura em medicina, não gostava de atender urgências. O motivo era um só: interrompiam e atrapalhavam meus raros momentos de lazer. Cada vez que era chamado para uma urgência, abnegadamente deixava para trás aquilo que estava desfrutando (filme, parque, praia, festa, namoro, família, estudo, descanso) para cumprir com o famoso juramento de Hipócrates.

Sempre soube que ser médico exigiria certa dose de renúncia na vida pessoal, mas isto não era motivo suficiente para aplacar meu descontentamento quando convocado para urgências. Por isso, tentava driblar a insatisfação através de algumas compensações materiais.

Quando meu filho era pequeno, e, contra a vontade de ambos, nossa brincadeira era interrompida por algum telefonema, dizia a ele que papai precisava sair para trabalhar, pois alguém havia ficado doente e necessitava minha ajuda. Com isso ganharia algum dinheiro e lhe daria uma parte para que comprasse balas, sorvetes, figurinhas…

O menino não tinha outra opção senão resignar-se à descontinuidade da brincadeira, entretanto, a futura compensação financeira parecia deixá-lo menos infeliz. De minha parte, continuava sentindo um certo desconforto e até um pouco de culpa.

Com o passar do tempo, ele foi crescendo e até gostando dessas recompensas, a ponto de torcer para eu ser chamado a trabalhar durante o plantão. Quando percebi a confusão, amigavelmente rompemos o acordo.

O tempo passou, ele cresceu mais ainda, tornou-se médico e agora também obriga-se a conviver com urgências. Comentou que estava chateado porque precisaria sair de casa às 23 horas para atender uma cesariana. Aproveitei para lembrá-lo de nosso antigo trato e contei como fazia antigamente para sobrelevar meu aborrecimento nestas horas.

Considerava o pagamento das urgências um rendimento extra que não era computado no balanço mensal e, literalmente, torrava o montante comprando algo supérfluo, totalmente fora do orçamento. Aquilo aplacava meu desgosto e até desviava o pensamento para um lado consumista enrustido. Talvez não fosse a melhor conduta, mas era como eu me comportava. Comigo funcionava, o mal estar diminuia.

Enquanto ele saiu na madrugada para trabalhar, fiquei pensando se, ao sugerir essa forma de encarar urgências, não estaria cometendo o mesmo equívoco da infância, ou seja, estimular a busca da felicidade através de bens materiais.

Gostaria que meu filho encontrasse a sua maneira de bem levar a vida, sem grandes sofrimentos pelas renúncias inerentes à profissão. Talvez uma condição emocional mais lúdica e menos financeira. Por vezes sofremos muito com o pouco que nos falta e gozamos pouco o muito que já temos.

Bens materiais adquiridos com o trabalho inevitávelmente se desgastam com o tempo e, por mais que se acumulem, nunca serão suficientes para alcançar a felicidade. Zibia Gasparetto dizia que o segredo da felicidade está em escolher a comédia e largar o drama.

Filho, quando tiveres uma urgência médica, um problema, um desafio, um grande sofrimento ou qualquer outro contratempo que te afaste da felicidade, lembra do caminho para encontrá-la:

Conquiste-me, não me adquira;
Quero ser teu bem, não um dos teus bens;
O teu sonho de vida, não de consumo.

E acima de tudo, saiba que por melhor que te remunerem, algumas coisas jamais poderão ser compradas. Ajudar uma criança a nascer, aliviar a dor de quem sofre, salvar a vida de um moribundo é um privilégio de poucos. Não têm preço. Participar destes momentos mágicos é uma experiência maravilhosa. Se estás sendo chamado para o milagre da vida, aproveita. Vale a pena. Esta é a diferença entre ser médico e ser formado em medicina.


ILDO MEYER – Médico com especialização em anestesiologia e pós-graduação em Filosofia Clínica. Saiba mais.

ildmeyer@terra.com.br