O SOM DO SILÊNCIO – RABINO JONATHAN SACKS

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O silêncio que conta, no Judaísmo, é, portanto, um silêncio de escuta – e a escuta é a arte religiosa suprema. Ouvir significa abrir espaço para outros falarem e serem ouvidos.


267_HISTÓRIA_4_2Bamidbar é geralmente lida no Shabat antes de Shavuot. Então, os sábios ligaram os dois. Shavuot é o momento da entrega da Torá. Bamidbar significa, “No deserto.” Qual é então a conexão entre o deserto e a Torá, a vastidão árida e a palavra de D’us?

Qual é a ligação entre o deserto e a Torá?

Os sábios deram várias interpretações. De acordo com o Mekhilta, a Torá foi dada publicamente, de forma aberta e num lugar do qual ninguém é dono, porque se tivesse sido dada na terra de Israel, os judeus diriam às nações do mundo, “Vocês não têm nenhuma parte nela.” Em vez disso, quem quiser vir e aceitá-la, deixem-no vir e aceitá la.1

Outra explicação: tivesse a Torá sido dada em Israel, as nações do mundo teriam uma desculpa para não aceitá-la. Isto segue a tradição rabínica de que antes de D’us dar a Torá aos filhos de Israel, ele a ofereceu a todas as outras nações e cada uma encontrou uma razão para recusar.2

Ainda uma terceira explicação: assim como o deserto é gratuito – não custa nada para nele entrar – assim também, a Torá é gratuita. É um presente de D’us para nós.3

Mas há uma outra razão, mais espiritual. O deserto é um lugar de silêncio. Não há nada para distraí-lo visualmente, e não há ruído ambiente para abafar o som. Contudo, certamente, quando os israelitas receberam a Torá, houve trovões e relâmpagos e o som de um shofar. A terra sentiu como se estivesse tremendo em suas fundações. Mas, em uma outra época, séculos à frente, quando o profeta Eliahu esteve na mesma montanha após seu confronto com os profetas de Baal, ele encontrou D’us não no turbilhão, ou no fogo, ou no terremoto, mas numa kol daká dmamá, uma voz mansa e delicada, literalmente “o som de um silêncio delicado.”4 Eu defino isso como o som que você só pode ouvir, se você está prestando atenção. No silêncio do midbar, o deserto, você pode ouvir o Medaber, O Locutor, e o medubar, o que é falado. Para ouvir a voz de D’us, você precisa de um silêncio atentivo na alma.

Muitos anos atrás, a televisão britânica produziu uma série de documentários, The Long Search, sobre as grandes religiões do mundo.5 Quando ela abordou o Judaísmo, o apresentador Ronald Eyre pareceu surpreso com a sua confusão ruidosa, florescente, especialmente as altas e argumentativas vozes no Bet Midrash, a casa de estudo. Comentando sobre isso para Elie Wiesel, ele perguntou: “Existe algo tal como um silêncio no Judaísmo?”

Wiesel respondeu: “O Judaísmo está cheio de silêncios … mas nós não falamos sobre eles.”

O Judaísmo é uma cultura muito verbal, uma religião de palavras sagradas. Por meio de palavras, D’us criou o universo: “E D’us disse: Haja … e houve.” De acordo com o Targum, é a nossa capacidade de falar que nos torna humanos. Ele traduz a frase, “e o homem foi feito uma alma vivente”6 como “e o homem foi feito uma alma falante.” Palavras criam. Palavras comunicam. Nossas relações são moldadas, para o bem ou para o mal, pela linguagem. Muito do Judaísmo é sobre o poder das palavras para fazer ou quebrar mundos.

Assim, silêncio no Tanach muitas vezes tem uma conotação negativa. “Aaron ficou em silêncio”, diz a Torá, após a morte de seus dois filhos Nadav e Avihu.7 “Os mortos não louvam Você”, diz o Salmo 115, “nem os que descem ao silêncio [da sepultura] . “Quando os amigos de Jó vieram consolá-lo após a perda de seus filhos e outras aflições,”Então sentaram-se com ele no chão por sete dias e sete noites, mas ninguém falou uma palavra a ele, pois viam que sua dor era muito grande.”8

Os sábios valorizavam o silêncio

Mas nem todo silêncio é triste. Os Salmos nos dizem que “a Ti, o silêncio é louvor.”9 Se estamos verdadeiramente extasiados diante da grandeza de D’us, da vastidão do universo e da medida quase infinita do tempo, nossas emoções mais internas estarão realmente profundas demais para ser expressas em palavras. Vamos experimentar a comunhão silenciosa.

Os sábios valorizavam o silêncio. Eles o chamavam de “uma cerca para a sabedoria.”10 Se as palavras valem uma moeda, o silêncio vale duas.11 R. Shimon ben Gamliel disse: “Todos os dias de minha vida, cresci entre os sábios, e não encontrei nada melhor do que o silêncio.”12

O serviço dos sacerdotes no Templo era acompanhado pelo silêncio. Os Levitas cantavam no pátio, mas os sacerdotes – ao contrário dos seus congêneres de outras religiões antigas – não cantavam nem falavam, enquanto ofereciam os sacrifícios. Em conformidade com isso, um sábio13 falou sobre “o silêncio do santuário.” O Zohar (2a) fala do silêncio como o meio em que tanto o Santuário acima como o Santuário abaixo são feitos.

Havia judeus que cultivavam o silêncio como uma disciplina espiritual. Chassidim de Bratslav meditam nos campos. Há judeus que praticam taanit dibur, um “jejum de palavras.” A nossa mais profunda oração, a recitação privada da Amidá, é chamada tefilá be-lachash, a “oração silenciosa.” Baseia-se no precedente de Chana, orando por um filho. “Ela falou em seu coração. Seus lábios se moviam, mas sua voz não era ouvida.”14

D’us ouve o nosso grito silencioso. No relato angustiante de como Sara disse a Abraão para enviar embora Hagar e seu filho, a Torá nos diz que quando a água acabou e o jovem Ismael estava a ponto de morrer, Hagar chorou, mas D’us ouviu “a voz da criança.”15 Anteriormente, quando os anjos tinham vindo visitar Abraão e disseram-lhe que Sara teria um filho, Sara riu interiormente, isto é, silenciosamente, mas ela foi ouvida por D’us.16 D’us ouve nossos pensamentos, mesmo quando eles não são expressos no discurso.

O silêncio que conta, no Judaísmo, é, portanto, um silêncio de escuta – e a escuta é a arte religiosa suprema. Ouvir significa abrir espaço para outros falarem e serem ouvidos. Como eu indico no meu comentário ao Sidur, não há nenhuma palavra em inglês que seja equivalente, mesmo que remotamente, ao verbo hebraico shmá, em sua ampla gama de sentidos: atender, ouvir, prestar atenção, compreender, interiorizar e responder por meio de ação.

Este foi um dos elementos-chave no pacto do Sinai, quando os israelitas, tendo já dito por duas vezes, “Tudo o que D’us diz, faremos”, disseram então: “Tudo o que D’us diz, faremos e ouviremos . [ve-Nishma].”17 É o Nishma – escutar, ouvir, atender, responder – que é o ato religioso chave.

Assim, o Judaísmo não é apenas uma religião de fazer-e-falar; ele também é uma religião de ouvir. A fé é a capacidade de ouvir a música sob o ruído. Há a música silenciosa das esferas, sobre os quais o Salmo 19 fala:

Os céus declaram a glória de D’us
O firmamento anuncia a obra de Suas mãos.
Dia-a-dia eles discursam,
Noite a noite eles comunicam conhecimento.
Não há fala, não há palavras,
Sua voz não é ouvida.
No entanto, sua música percorre toda a terra.

Há a voz da história que foi ouvida pelos profetas. E há a voz de comando do Sinai, que continua a falar-nos através do abismo do tempo. Às vezes, penso que as pessoas na era moderna acham o conceito de “Torá do céu” problemático, não por causa de alguma nova descoberta arqueológica, mas porque perdemos o hábito de ouvir o som de transcendência, uma voz além do meramente humano.

Há suficiente “ouvir” no mundo judeu hoje?

É fascinante que, apesar de sua relação frequentemente fragmentada com o Judaísmo, Sigmund Freud criou na psicanálise uma forma profundamente judaica de cura. Ele próprio a denominou de “cura pela fala”, mas na verdade é uma cura pela audição. Quase todas formas eficazes da psicoterapia envolvem uma audição profunda.

Há suficiente “ouvir” no mundo judaico hoje? Será que nós, no casamento, realmente ouvimos os nossos cônjuges? Será que nós, como pais realmente ouvimos os nossos filhos? Será que nós, como líderes, ouvimos os medos não ditos daqueles que procuramos liderar? Será que interiorizamos o sentimento de mágoa das pessoas que se sentem excluídas da comunidade? Podemos realmente alegar que ouvimos a voz de D’us, se deixamos de ouvir as vozes de nossos semelhantes?

Em seu poema, ‘In memory of W B Yeats, ‘W H Auden escreveu:

Nos desertos do coração
Deixe a fonte da cura iniciar.

De vez em quando nós precisamos dar um passo atrás do barulho e agitação do mundo social e criar em nossos corações o silêncio do deserto, onde, dentro do silêncio, podemos ouvir a Kol dmamá daká, a voz mansa e delicada de D’us , nos dizendo que somos amados, estamos sendo ouvidos, somos abraçados pelos braços eternos de D’us, não estamos sozinhos.


JONATHAN HENRY SACKS, Barão Sacks, Kt (nascido em 08 março de 1948), título que lhe foi concedido pela Rainha da Inglaterra, é um rabino e estudioso do judaísmo. Ele foi o Rabino-Chefe das Congregações Hebraicas Unidas da Commonwealth, Londres. Seu nome hebraico é Yaakov Zvi. É fundador e diretor do Meaningful Life Center (Centro para uma Vida Significativa).

Fonte: www.pt.chabad.org

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