CULTURA NÃO É ESPETÁCULO – MERALDO ZISMAN

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Parece-me desastrosa a ideia de condensar os mais diferentes acontecimentos, manifestações musicais, artes plásticas, etc. em único produto para atrair um público que entende cultura apenas como entretenimento, obliterando o conceito de que adquirir cultura dá trabalho.


Falar sobre cultura popular ou erudita, cultura de massa ou cultura pop é caracterizar o — inapreensível. O significado da palavra Cultura está desbussolado desde a segunda metade do século XX, quando teve início o desenvolvimento da midia, a montagem da sociedade do consumo e a expansão do narcisismo. A expressão “cultura popular” surgiu no século XIX para definir a educação e a cultura das classes consideradas mais baixas. O ensaio “A Crise da Cultura” de Hannah Arendt (1906-1975), escrito em 1961, sugere que uma “mídia dirigida pelo Mercado liderou o deslocamento da Cultura para os ditames do entretenimento”. Na verdade, a denominada cultura popular, de massa, cultura pop, seja como for designada, tem uma relação simbiótica com a midia. Uma depende da outra. Por outro lado, a internet veio para ficar. Temos que nos adaptar a ela e à evolução natural das coisas, pois ela já é parte do nosso dia a dia globalizado.

Graças ao advento da escrita, Marcel Proust foi capaz de produzir sua celebração da memória “Em Busca do Tempo Perdido” dissecando o microcosmo de uma aristocracia prestes a ser suplantada pela nova burguesia na/da sua Paris. Joyce, que viveu miseravelmente nas mais diversas cidades: Paris, Zurique, Trieste, Roma, dedicou sua obra a Dublin, pequena e pobre cidade da Irlanda, cenário de uma obra literária que transmutou a arte escrita, que era a mesma desde Homero. Franz Kafka gerou em Praga, por vez primeira, a Literatura do universo alienado em que todos nós vivemos. E por último, Machado de Assis criou literatura em um Rio de Janeiro periférico.

Acusar a Internet de ser a causa da descultura é acusar Cervantes de tirar proveito da psicopatia de Don Quixote, louco intoxicado pela leitura de livros de cavalaria. E se somos perfeitamente capazes de cultivar nossa memória e nossa criatividade enquanto escrevemos, certamente podemos fazê-lo ao usarmos a internet, internalizando o que nela aprendemos e aproveitando o aprendizado proporcionado pela nova tecnologia.

Considere o trecho de “Fedro” no qual o faraó critica o deus Thoth, inventor da escrita, pela criação de uma tecnologia que permitiria aos homens confiar fatos ao papel, em vez de à memória. Não importa a plataforma: a cultura é uma das principais características humanas, pois somente o homem tem a capacidade de desenvolver cultura, distinguindo-se dessa forma de todos os outros seres dos reinos animal e vegetal. Parece-me desastrosa a ideia de condensar os mais diferentes acontecimentos, manifestações musicais, artes plásticas, etc. em único produto para atrair um público que entende cultura apenas como entretenimento, obliterando o conceito de que adquirir cultura dá trabalho.

Na escala zoológica, alcançamos o cume da evolução graças à capacidade de produzir a verdadeira cultura e de passá-la às gerações sucessivas, que a aprimorarão cada vez mais. Repito: cultura não é espetáculo. E se continuarmos a pensar em cultura como entretenimento e nada mais, não demorará muito para que retornemos às cavernas.


MERALDO ZISMAN – Natural de Recife, Pernambuco, é médico psicoterapeuta. Saiba mais.

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