BAIRRO DE JUDEUS – POR RAQUEL NAVEIRA
O jurista Celso Lafer, ex-ministro das Relações Exteriores do governo Fernando Henrique Cardoso, foi homenageado pela Universidade de Haifa com o título honorário Doutor Honoris Causa, em cerimônia realizada no dia 27 de maio no auditório da instituição. O evento fez parte da 42ª edição do Meeting of The Board of Governors, organizado anualmente pela universidade.
“Um reconhecimento acadêmico tem sempre um grande significado e o fato de ser concedido pela Universidade de Haifa o torna, para mim, ainda mais relevante. Esta é uma instituição que se caracteriza pelo empenho no pluralismo e na diversidade de seu público: entre seus valores está o reconhecimento da importância de absorver não apenas a população judaica, como também a cristã e a muçulmana. Ela tem o objetivo de ser um ‘blue print’ do que seriam os ideais de uma sociedade democrática”, afirmou Lafer.
A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), presidida por ele, mantém acordo de cooperação com a instituição. Lafer também ressaltou a importância da Universidade de Haifa no âmbito das pesquisas oceanográficas e da aplicação da tecnologia à educação.
No momento da entrega do diploma, a Universidade de Haifa frisou a importância de Lafer como líder político e diplomata, e ressaltou sua excelência acadêmica na área da Filosofia e do Direito. O presidente sul-africano Frederik de Klerk, outro dos oito homenageados da noite, proferiu o discurso com o qual o evento foi encerrado.
Leia abaixo a entrevista concedida por Lafer à jornalista Miriam Sanger, em Israel, na qual ele avalia as relações Brasil-Israel e a situação geopolítica na Europa e no Oriente Médio. Para ele, palestinos e israelenses têm que aprender a lidar com um grau de insatisfação suportável, uma vez que a formação de dois Estados é a única saída para a paz na região. Ele acrescenta que sanções internacionais a Israel não contribuem para a sustentabilidade política interna necessária para a consolidação de um processo de paz.
Conib – O que significa para você receber o título de Doutor Honoris Causa da Universidade de Haifa?
Celso Lafer – Um reconhecimento acadêmico tem sempre grande significado. Este Doutorado Honoris Causa me foi concedido, segundo os termos em que a homenagem foi instituída, por conta de minha atividade acadêmica, de minha atividade pública e de minha atuação no campo das Relações Internacionais. Também foi considerada a minha atividade na Fapesp, que está voltada à internacionalização da cooperação internacional em matéria de pesquisa, além do que tenho feito no tocante às relações Brasil-Israel, em especial com a Universidade de Haifa.
Essa é uma instituição interessante, de grande qualidade, e voltada à pesquisa, o que é um dado muito importante para mim. Ela também é uma universidade que se caracteriza por seu empenho pelo pluralismo. Entre seus valores, está o reconhecimento da diversidade e da importância de absorver não só a população judaica, como também a islâmica e a cristã. Ela tem o objetivo de ser uma ‘blue print’ do que seriam os ideais de uma sociedade democrática que, sem desconsiderar o forte componente judaico, confere importância ao reconhecimento do outro no processo de construção da universidade.
Israel tem várias instituições acadêmicas e centros de pesquisa, todos muito interessantes, mas este componente próprio da Universidade de Haifa, em sua missão voltada à diversidade e ao pluralismo, é para mim um dado muito importante.
O que Brasil tem a ganhar no relacionamento com Israel?
No plano da política internacional, falamos sobre o “soft power”, o poder brando, de atração. A área onde o poder de atração é mais significativo em Israel é a do conhecimento – inovação, competência, pesquisa. É disso que Israel reconhecidamente dispõe no plano global. Acho que, nesse aspecto, o país tem com o Brasil um grande ponto de convergência, e é nisso que instituições como a Fapesp têm investido, com a criação de parcerias e acordos de cooperação. Criou-se uma situação “win-win”, em que todos são beneficiados e não há maiores margens de atrito.
Quais são os principais desafios de Israel e da Europa?
Há vários. O Oriente Médio é uma região de grande conflitualidade. A primavera árabe não se desdobrou como se imaginava. O problema da Síria se arrasta sem perspectiva de solução. Por outro lado, os norte-americanos atribuem hoje à região uma importância menor do que atribuíram no passado, porque passaram a contar com a independência energética em função do xisto de que anteriormente não dispunham. Isso os liberou um pouco da “hipoteca” do Oriente Médio.
Já a Europa está envolvida em uma situação muito delicada, que passa pelo desafio que representa a posição da Rússia, da Ucrânia e a desestabilização das regras tradicionais do sistema internacional trazido por essa configuração.
Naturalmente, Israel enfrentará, no prazo mais longo, uma situação adversa. Eu ouvi uma vez uma distinção que me parece muito importante: qual a diferença entre as posições política de esquerda e de direita em Israel? A esquerda acha que o tempo histórico não é favorável a Israel; a direita pensa o contrário. A minha leitura é de que o tempo não é favorável a Israel em um contexto mais amplo e, por isso, o processo de paz é muito desejável e significativo. Além disso, toda a problemática dos territórios e dos assentamentos ameaça a democracia do país.
Não desconheço nenhuma das muitas dificuldades existentes no processo de paz, mas ela deve ser um objetivo a ser perseguido. A manutenção do status quo é aparentemente confortável, mas muito perigosa.
Você acredita que um boicote internacional forçaria o governo israelense a se posicionar de forma diferente em relação ao processo de paz?
Boicotes são sempre muito complicados. Naturalmente, é um processo penoso e difícil. Imaginar um boicote em relação às universidades e institutos de pesquisa me incomoda muito, pois são eles os “stakeholders” do processo da paz – e, com um boicote, eles seriam atingidos. Essas sanções são direcionadas às pessoas e às instituições, são eles quem mais se ressentem. E isso não contribuiria de nenhuma forma para a sustentabilidade política interna, fator necessário ao processo de paz em Israel.
Como você analisaria a política brasileira com relação a Israel, tanto nos governos do PT como no governo de FHC?
O período em que fui ministro de Fernando Henrique foi muito construtivo em matéria de política externa e da visão do papel de Israel. Integrei a primeira delegação brasileira chefiada por um ministro das Relações Exteriores depois de muitos anos – eu era, então, embaixador do Brasil em Genebra. Foi um período de fácil convergência, porque, aqui, YItzhak Rabin era o primeiro-ministro e Shimon Peres, o ministro das Relações Exteriores. As afinidades entre os dois países eram boas e significativas. Claro que a posição brasileira, e a minha própria, foi sempre pela importância do processo da paz, a implementação dos acordos de Oslo e a solução de dois Estados.
Acho que o governo Lula, por conta do papel que o Partido dos Trabalhadores desempenhou em seu governo e continua desempenhando no governo Dilma, foi mais sensível a visões mais críticas de Israel. Mas essa é uma avaliação que passa pelo fato de que fui ministro de FHC, e estive na oposição da administração da política externa do PT. Esse é um aspecto da minha crítica, mas tenho outras, como por exemplo sobre a condução atual dos assuntos relacionados à América Latina.
Por que a esquerda se identifica com a causa palestina?
Por que, para a “esquerda de catecismo”, os Estados Unidos – aliados de Israel – encarnam o capitalismo, e por que os palestinos são vistos como o povo ofendido e humilhado. Mas há outro aspecto importante: em política externa, assim como interna, a percepção da realidade é parte dela. Ou seja, as expectativas integram a realidade. E a percepção externa de Israel é a de um país forte e vigoroso, não apenas no sentido militar e estratégico, mas também no econômico e em termos de autonomia. A ideia de que Israel se sinta fragilizado diante de seu contexto diplomático é menos perceptível para quem está fora da vida israelense.
Você acredita que a criação de dois Estados solucionaria definitivamente o conflito entre israelenses e palestinos?
Essa não é uma solução milagrosa, mas é a melhor solução possível. O escritor Amos Oz deu, recentemente, uma conferência interessante em São Paulo – e, claro, falou sobre o processo de paz. Ele disse: ‘Existem as tragédias gregas e as de Shakespeare, que são monumentais e acabam mal, com pessoas sendo destituídas ou sofrendo finais trágicos. E existem as de Tchecov, nas quais as pessoas saem infelizes, mas não destruídas’. É à maneira de Tchecov que ele gostaria de ver a finalização do processo de paz. Eu concordo.
Um dos livros de Henry Kissinger, grande figura da diplomacia, aborda o Concerto Europeu. Napoleão representava o novo princípio de legitimidade e, para ter segurança, ele precisava da segurança absoluta. E a segurança absoluta de Napoleão gerou a insegurança absoluta de todos os demais países, levando às guerras napoleônicas. O Concerto Europeu, escreveu Kissinger, foi uma solução em que o equilíbrio resultou na percepção de que todos tinham bastante segurança, mas não segurança absoluta. Havia sempre certo grau de insatisfação de todas as partes, e era ela que sustentava o equilíbrio das coisas. Aplicando a reflexão dele para a situação do Oriente Médio e para o conflito israelo-palestino, creio que nem um lado nem outro terão satisfação ou segurança absoluta. Cada um terá que lidar um grau de insatisfação que, desde que não seja insuportável, levará a um acordo.
Qual seria o conselho que, caso pudesse, você daria a Binyamin Netanyahu?
Não daria. Ele não é o tipo de pessoa que ouve o conselho de ninguém. A única atenção que dá em matéria de política externa é para a ação de Israel nos Estados Unidos e no Congresso norte-americano. Acho que a atenção que o governo dele dá ao que outros países têm a dizer não é, digamos, muito grande.
Fotos: Miriam Sanger
FONTE: www.conib.org.br