ISHMAEL E A PROVA EXISTENCIAL JUDAICA – RABINO RUBEN NAJMANOVICH
Devemos lutar pelo direito de sobreviver como judeus. Para querer lutar, devemos querer sobreviver. Para desejar sobreviver devemos acreditar em nossa unicidade até o ponto de fazer um sacrifício pessoal necessário para sobreviver. Mas muitos de nós somos tentados a dizer que não vale o preço.
“A reocupação da nossa terra não pode ser chamada de roubo por ninguém que apoie o direito à existência judaica como um povo separado e diferente”.
A história judaica é dramaticamente diferente a história de outros povos. Tem um aspecto de inevitabilidade. Enquanto a história de outras nações só pode ser escrita com o decorrer dos acontecimentos, de fato o significado da história mundial é o estudo do passado, a história judaica tem a distinção única de ter sido escrita pela Toráh antes de ter acontecido.
Assim como está estabelecido na Toráh, o período que atualmente estamos vivendo é conhecido como o de “as dores do parto”, associados com o nascimento do Messias. O choro do profeta não judeu Bilam, diz: “Quem pode sobreviver aos decretos negativos de D’us” (números 24:23), era uma referência específica a nossa era. Os judeus nunca experimentaram um século tão cheio de sofrimento, como foi o século XX.
O Zohar expunha (1:119) que esta era tão devastadora da história judaica está relacionada especificamente com a luta por Jerusalém com as nações guiadas pelos descendentes de Ishmael (os árabes).
Qual é a associação entre as dores do parto do Messias, a devastação e o relacionamento com os descendentes de Ishmael?
A chave está em compreender o motivo do Exílio.
O Exílio
O Rabino Dessler explica que o exílio deve ser visto como uma prova existencial cuja sobrevivência automaticamente corrige um buraco no sentido da identidade e consciência pessoal.
Se não tivesse esse erro no caráter, ou se fosse corrigida pelos mesmos judeus internamente, o exílio não teria sentido. Dessa forma, cada exílio está relacionado com uma transgressão.
Mas o objetivo do exílio é positivo e representa uma ferramenta corretiva muita poderosa. E, precisamente, pela relação entre exílio e caráter judeu que a Toráh pode escrever a história judia por antecipadamente.
Cada exílio exerce uma poderosa pressão para assimilar o povo judeu, e é aqui onde se encontra a prova.
Objetivamente, não tem justificativa para se perseguir os judeus. Fisicamente, são iguais às demais pessoas; e é, geralmente, o grupo social mais produtivo em relação à sua quantidade. Só devemos pensar no número desproporcional de ganhadores do Prêmio Nobel, autores, doutores, etc… posto que o judeu acha que seus problemas se originam no fato de que é percebido como alguém diferente, a assimilação é sempre a solução lógica para o problema do exílio.
Se o judeu de qualquer maneira se nega à tentação de assimilar-se, é só pelo fato de decidir que sua judeidade é fundamental para sua pessoa. Se a solução para o problema da perseguição é render-se voluntariamente a seu Judaísmo, esse é um preço muito elevado a pagar. A resistência à tentação de assimilar-se que se apresenta com o exílio reforça seu compromisso com o judaísmo.
Vamos tentar aplicar a teoria do exílio do Rabino Dessler à nossa era particular. Para fazê-lo, devemos nos familiarizar com Ishmael e compreender qual o tipo de tentação para com a assimilação está associada com o exílio que nos impõe.
Ishmael
Abraham e Sarah eram um casal sem filhos. Sarah tinha uma empregada egípcia chamada Hagar, quem passou a ser concubina de Abraham para que tivesse um bom filho para poder criar.
Quando Hagar concebeu, compreendeu isto como uma elevação de seu status e não estava mais disposta a ser a empregada de Sarah. Esta reafirmou sua autoridade sobre Hagar destratando-a. Então Hagar resolve fugir.
D’us mandou um anjo persuadir Hagar para que regressasse. O anjo lhe diz que terá um filho chamado Ishmael, que será um grande homem no mundo. Descrevendo sua grandeza o anjo diz:
“Será um homem selvagem. Sua mão estará contra todos, e a mão de todos estará contra ele. Igualmente, viverá sem ser molestado entre seus irmãos” (Gênesis 16:12).
Rashi explica que este conceito de “sua mão estará contra todos” é uma referência de roubo, Ishmael teria uma tendência a roubar. (Midrash Tanchuma* – Êxodo 1).
A associação de Ishmael com o roubo aparece outra vez: “D’us chegou desde o Sinai, tendo ficado em Seir, tendo aparecido ante eles no Monte de Paran” (Deuteronômio 33:2). Antes de ser entregue a Toráh ao povo judeu, D’us aproximou-se dos povos para oferecer- lhes a Toráh e esperou que alguém a aceitasse. Dentre esses povos estava o povo de Ishmael (cujo lar era o Monte de Paran referido no versículo). D’us lhe diz: Estão interessados em receber a Toráh? Eles perguntaram: ”E o que está escrito nela? D’us replicou: ”Entre outras coisas está escrito não roubar”. Eles replicaram: Mas esta é a benção que nossos antepassados nos deram, como está escrito: “Será um homem selvagem”. Sua mão estará contra todos, e a mão de todos estará contra ele”. Se a Toráh proíbe o roubo então, como podemos aceitá-la? (Yalkut Ytro** 286).
Como podemos entender tudo isto? Seguramente a lei de Ishmael proíbe o roubo como parte do Código Penal de toda nação civilizada. De fato, a lei religiosa muçulmana trata os ladrões com uma severidade excepcional. Então por que o mandamento de roubo foi o que impediu que Ishmael aceitasse receber a Toráh? Como pode ser o roubo ser uma fonte de “benção”?
Para responder estas perguntas, devemos entender o conceito de roubo num contexto mais amplo, não relacionado ao ato de roubar materialmente.
O significado da benevolência
Ishmael era o filho de Abraham. A maior virtude de Abraham foi à benevolência (Salmos 83:3).
Certo, existe a outra face desse ensinamento. Abraham diz que a essência desse bem que D’us da sem razão nenhuma é o fato de que ele nos oferece uma oportunidade. D’us outorga ao homem a oportunidade de obter o bem verdadeiro ao se aperfeiçoar espiritualmente por meio de seus esforços e assim chegar a elevar-se até o ponto de ganhar o direito de conectar-se com D’us.
Quando alguém internaliza a mensagem completa que Abraham deu ao mundo, se dá conta que a incrível bondade divina nos coloca ante um desafio: tomar vantagens da oportunidade que nos prove uma infinita bondade, de D’us para ganharmos a recompensa por meio de nossos merecimentos. O mundo pode ter sido fundado com pura benevolência, mas estava planejado para acabar em justiça.
Ishmael internalizou só a primeira metade da MENSAGEM DE ABRAHAM. Estava mais que pronto para receber a infinita bondade divina, mas não estava pronto para pegar o desafio que a acompanhava. Desde o ponto de vista de Ishmael, o homem habita um mundo onde D’us dá tudo sem a expectativa de receber nada. Num mundo assim, onde D’us dá tudo por pura benevolência, inclusive quando não seja ganha a relação entre o trabalho e a possessão simplesmente se rompe. Quando se outorga aos seres humanos tudo o que tem por benevolência, o roubo não é visto como um grande mau moral. Depois de tudo, como ninguém têm que ganhar nada, ninguém merece nada. A necessidade e não o direito se convertem no standard moral central. Os ladrões, geralmente, precisam mais que suas vítimas. Sua necessidade lhe prove esse “direito moral para roubar”.
O objetivo árabe
Em todas as guerras que Israel teve com Ishmael desde o restabelecimento do estado judeu, o medo de perder nunca foi um motivo de ansiedade pelo lado árabe. Os árabes nunca poderão ser seriamente derrotados, porque sempre terão a proteção da comunidade internacional, pois quando começassem a perder muito no campo de batalha, a comunidade internacional lhes ajudaria e pediria um cessar de fogo.
A guerra para as nações árabes sempre foi uma posição de ganhar ou ganhar. Se ganharem, tudo; e, se perderem, igual puderam enfraquecer a determinação e compromisso de Israel ficar com o território ao infligir mortes sem grande perigo para eles. Do ponto de vista árabe, provavelmente o objetivo maior dessas guerras foi mostrar ao povo judeu que ligar-se a Israel, sempre trará um preço alto de derramamento de sangue judeu.
Os árabes que estão envolvidos no terrorismo o fazem com impunidade pela mesma razão. Depois de tudo, nunca há medo de uma represália massiva. Sabem muito bem que os judeus não saem deliberadamente a matar pessoas inocentes. Podem continuar e tentar derramar sangue judeu, sem medo de uma ameaça de represálias contra sua população civil.
A habilidade de magoar aos outros sem a necessidade de considerar as consequências lógicas dos atos é a essência do roubo.
Cada ladrão aplica um standard de comportamento para com outros que nunca deixaria que aplicassem nele. Mas acredita que não será pego. Por tanto o comportamento do ladrão está baseado em dois axiomas:
a) Tem o direito moral de causar dano pela sua necessidade,
b) E, é suficientemente inteligente como para fugir da retribuição.
A política árabe para com Israel está baseada nos mesmos dois axiomas. Precisam da terra e sentem que moralmente estão justificados para realizar qualquer mal. Nunca vão ter que confrontar as consequências de infligir algum dano.
Esta é a benção que os árabes legaram de Ishmael. Eles tem êxito sem a necessidade de se esforçarem. Não requer muito esforço começar guerras sem se preocupar em perdê-las, ou usar o terrorismo contra indefesos e inocentes. Pela falta desse esforço, colhem a recompensa da aprovação mundial, inclusive estando respaldados em comportamentos detestáveis pelo mundo. Outros sujeitos que quiseram usar essas táticas não chegariam a nenhum lugar. Os descendentes de Ishmael tomam sol.
Inclusive a importância estratégica para o mundo surge do petróleo que está sob sua terra – não há nada que produzam pelo suor de sua testa ou a genialidade de suas ideias. Resumindo, o êxito dos descendentes de Ishmael não se deve a nenhum tipo de tipo de feito realizados por eles. Realmente, eles vivem num mundo de benevolência.
A prova existencial
Mas, qual é a prova existencial dos judeus que comprove esta situação, este exílio?
O primeiro comentário de Rashi em Gênesis dá a chave para a resposta:
RaShí diz: “Se a Toráh é um livro de leis devia ter começado com “este mês será para ti o primeiro dos meses” (Êxodo 12:2), pois esse é o primeiro mandamento que se da aos judeus como povo. Então, porque começou com o relato da criação? Para estabelecer a soberania divina sobre a terra. Ele declarou a seu povo o poder de Seu trabalho para dar-lhes a herança das nações. (Salmos 111:6). Se as nações acusam a Israel de vandalismo por se apoderar das sete nações cananitas, Israel lhes dirá: “O Universo inteiro pertence à D’us.”. Ele o criou e o concedeu a quem era adequado a Seus olhos. Foi Seu desejo dar-lhe para eles e foi Seu desejo tirar-lhe e entrega-lhe a nós”.
É algo por demais assombroso a profecia de Rashi. Escrevendo no período mais escuro da Idade Média, onde a ideia de uma soberania judaica sobre o Estado de Israel era um sonho impossível, viu o dilema ardente do povo judeu no século vinte e um.
Este é nosso problema: o fato de que o mundo nos toma como intrusos em nosso próprio país é algo esperado, enxergando o tratamento dispensado pelas nações no decorrer da história.
O direito de ser
O problema existencial que enfrentamos é precisamente este: temos o direito de estar aqui em Israel, ou somos ladrões que roubamos a terra de alguém e justificamos nosso roubo com base em nossa necessidade?
Sim, temos tal direito e é nossa terra, então devemos resolver nosso problema. Temos suficiente força militar e econômica para suprimir a oposição palestina sob nossa presença aqui. O que não temos é a crença interna na justiça de nossa causa.
Muitos de nós compramos a mensagem árabe que roubamos sua terra e não temos direito de ficar aqui. Carecendo da razão de ter o direito, estamos prontos para dar grandes partes de nosso pequeno território por nada em troca. Assim como não nos sentimos confortáveis sobre a posição de nossa terra nossa postura é muito defensiva. Só quando se trata do resgate de vidas judaicas é que requeremos da aplicação da força e inclusive em quantidades limitadas. A incerteza do direito moral de ficar em nossa própria terra é a verdadeira FONTE DE ANGÚSTIA e é um ponto focal desse exílio em particular.
A prova existencial do exílio que estamos vivendo está dirigida a todo povo judeu. Para enfrentar com êxito esta prova devemos ter a informação que demonstre nosso direito de estar aqui. Que informação existe que possa nos ajudar, a saber, que o povo judeu não roubou a terra de Israel dos árabes?
Não há dúvidas de que Israel foi a Terra natal no tempo da destruição do Segundo Templo. Não há dúvidas de que fomos tirados pela força. Flavio Josefo*** e outros historiadores romanos e gregos cujos escritos formam a base de tudo o que sabemos sobre o mundo antigo, testemunham a verdade destes fatos. Os usurpadores que se assentaram aqui o fizeram sob seu risco. Sempre dizemos que voltaríamos. Não somos ladrões.
Mas nosso direito de ficar em Israel não está baseado só em fatores locais. Vejamos a imagem mais ampla presenteada pela história judaica nesse contexto.
Por dois mil anos andamos pelo mundo e nenhuma nação estava disposta a nos dar mais que um lar temporal. Fomos repetidamente expulsos de quase todos os países “civilizados” onde estivemos. Fomos torturados, oprimidos e perseguidos. Quando o mundo parecia finalmente mudar em 1948 – quando obtivemos nossa emancipação – essa liberdade também provou ser muito curta. Em menos de cem anos fomos aniquilados mais uma vez. Àqueles que puderam fugir das mandíbulas dos assassinos foram – lhes negada a entrada em todas as nações “civilizadas do mundo”. Ninguém queria se responsabilizar com a inundação de refugiados judeus em grande quantidade.
Sem direito à vida?
Portanto, se não temos direito de viver em Israel, então os judeus não têm direito de viver em nenhum lugar como judeus. A história amplamente demonstra que não temos aonde ir.
Nosso direito a Israel é equivalente a nosso direito a sobreviver. A ocupação de nossa própria terra não pode ser chamada de roubo por qualquer um que apoie o direito judaico de existir como um grupo de pessoas separadas e diferentes. Sim, apesar de tudo, muitos judeus ainda duvidam de seu direito a Israel. Isso significa que têm dúvida de seu direito a uma existência como um grupo diferente. A única opção a um país judeu é desaparecer como judeus totalmente no redemoinho das demais nações.
Esta é a essência da prova existencial que enfrentarmos. Devemos lutar pelo direito de sobreviver como judeus. Para querer lutar, devemos querer sobreviver. Para desejar sobreviver devemos acreditar em nossa unicidade até o ponto de fazer um sacrifício pessoal necessário para sobreviver. Mas muitos de nós somos tentados a dizer que não vale o preço.
Para poder passar com êxito essa prova devemos enfrentá-la adequadamente sem falsas ilusões. Devemos saber que o poder contrário é Ishmael. Não é uma pessoa que se sentará conosco a dialogar sobre a paz que obterá com seu trabalho e ganhar seu direito a um país independente. Essa pessoa está esperando que Israel lhe seja outorgado pela comunidade internacional numa travessa de prata.
A força de Ishmael
Ishmael se enfrenta com a ameaça de atingir a mudança mais incrível na história da Humanidade. O ladrão está tentando persuadir a sua vítima de que está moralmente mal por não lhe dar voluntariamente os fundos que quer lhe roubar. Logrou fazer sentir a um número considerável de judeus que é um ato de roubo se apegar aquilo que realmente lhe pertence.
A força de Ishmael parte de sua habilidade de pensar bem sobre si mesmo diante dos poucos logros. O merecem, e D’us e as nações devem prover-lhes suas necessidades por pura benevolência. Não há fraqueza onde a dúvida interna não existe.
Quando Ishmael vê perto aos judeus se encontra ante uma nação que se encontra insegura de seu direito a existir. Enxerga a grande força militar israelense e a genialidade de sua tecnologia. Os logros só dão força às pessoas que têm orgulho do que são. Não são substitutos de um sentido de ser.
Ishmael não está impressionado dos logros judeus. Só a confiança própria lhes surpreende. A única forma de ganhar-lhes é esperando orgulhosos do que somos e segurando nosso principio básico a resistir ao roubo e proteger nossa propriedade ganha pelo nosso trabalho. Nós, o Povo Judeu não devemos nos desculpar com ninguém.
RUBEN NAJMANOVICH – Rabino, Professor da Ciência da Religião, Mestre em Ciências Sociais e humanidades menção educação. Saiba mais.
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