SOBRE TRAIÇÃO E TRAÍDOS – POR SHEILA MANN

242_especial_1_1Eu apoio a coexistência pacífica entre israelenses e palestinos e sinto muitas vezes que sou vista na minha comunidade como traidora pela maioria que não confia nos árabes em geral e nos palestinos em particular. Ao contrário, é preciso entender que, quem ama Israel de verdade e torce pela sua existência, é aquele que consegue enxergar a longo prazo e …


Gostaria muito de recomendar a todos a leitura do livro do Amos Oz “Judas” que eu acabei de ler, e quero compartilhar com vocês porque esse livro ecoou profundamente em mim.

Como é de se imaginar, a referência ao Judas do título, nos leva diretamente à palavra “Traidor”. É sobre o tema da traição que esse grande escritor israelense discorre nesse romance, trazendo duas histórias paralelas: uma sobre um jovem estudante israelense, Shmuel Ash, que está escrevendo uma tese sobre o tema “Jesus visto pelos judeus”, e tendo que procurar uma moradia em Jerusalém, acaba na casa de Atalia e o seu sogro Wald. A outra história é sobre o pai de Atalia, Shaltiel Abravanel um excêntrico militante sionista que acreditava que Israel não deveria ser uma nação independente, mas um território sob mandato internacional, onde árabes e judeus viveriam lado a lado. Tratado como traidor da causa sionista, ele foi expulso do movimento sionista e da liderança da Agência Judaica. Essas duas histórias se entrelaçam para tratar do tema da traição.

Através desse relato, Amos Oz nos confronta com duas questões: a primeira ligada diretamente ao antissemitismo (fortemente arraigado ainda nos dias atuais) decorrente da “suposta” traição de Judas Iscariotes, quando ele traz pelo viés da tese do Shmuel Ash, as questões : “Por que um homem rico (Judas era um homem de posses) venderia o seu mestre por 30 pratas? E se ele vendeu, por que se enforcaria na mesma noite? Por que alguém pagaria Judas para identificar Jesus, se Jesus nunca se escondeu?” Shmuel continua sua tese e seu questionamento: “Se Judas não tivesse “supostamente” traído Jesus e o entregado aos romanos, como seria o cristianismo moderno? Jesus nasceu judeu e não era sua intenção criar uma nova religião”.

A segunda questão que se coloca é a respeito da “suposta” traição do Shaltiel que era amigo dos árabes e era contra a criação do Estado de Israel. Ele que acreditava na convivência pacífica entre os dois povos foi expulso e taxado de traidor: reaparece o tema do Judas. Isso nos remete diretamente aos dias atuais onde persiste o conflito entre árabes/palestinos e judeus/israelenses. “Os palestinos não têm outro lugar. Os israelenses também não”. Os dois querem a mesma terra, e a terra é pequena. A paz só vai acontecer com compromisso entre as duas partes.

Ser judeu ou judia e defender a paz e o diálogo entre israelenses e palestinos, continua sendo considerado traição para com Israel, por parte dos israelenses e da maioria dos judeus da Diáspora; Isso porque se acredita que quem propõe o diálogo está pondo a própria sobrevivência de Israel em risco.

O que interessa ao Amos Oz não é a traição de quem trai em próprio proveito, mas aquele que é considerado traidor por seus pares por ter uma opinião diferente e conflitante com a da maioria. Quem ousa propor algo de uma visão mais ampla, e que está na contramão do pensamento hegemônico, desperta medo nos outros e é banido e ignorado. Por isso esse livro ecoou tanto em mim.

Eu apoio a coexistência pacífica entre israelenses e palestinos e sinto muitas vezes que sou vista na minha comunidade como traidora pela maioria que não confia nos árabes em geral e nos palestinos em particular. Ao contrário, é preciso entender que, quem ama Israel de verdade e torce pela sua existência, é aquele que consegue enxergar a longo prazo e ver que estamos caminhando rumo ao abismo.

Esse pequeno país foi fundado por judeus idealistas que escaparam das garras da morte, o Holocausto, e trouxeram o ideal humanista ocidental para começar algo novo e utópico, e por isso foram muito admirados no começo. O lema era: “Ah, agora nós judeus que sempre fomos perseguidos na Diáspora e sofremos inúmeros pogroms, vamos iniciar novos tempos”. A figura do judeu oprimido e curvado dá lugar no advento do Estado de Israel, à famosa imagem de um jovem bronzeado de camisa aberta mostrando um peito forte, mangas arregaçadas sobre braços musculosos. Essa é a imagem do novo judeu israelense, trabalhador, lutador, jovem, forte… Lindo esse ideal de liberdade e auto determinação. Mas e agora, ficamos inebriados com a nossa imagem? Será que nós mesmos não traímos os nossos lindos ideais? Onde está esse humanismo baseado nas nossas tradições e ética judaicas? Como nós nos deixamos arrastar a esse papel de opressor de um outro povo? Será que o oprimido sempre sonha em se libertar para ele próprio ocupar o lugar daquele que o oprimiu, num ato de vingança? Vamos ficar calados diante das barbaridades que estão acontecendo nos territórios ocupados? Vamos continuar empurrando os palestinos para fora das suas terras e humilhá-los, não deixando a eles outra alternativa senão se tornarem terroristas e bombas suicidas?

Como bem disse Yitzhak Frankenthal, que teve o seu filho assassinado pelo Hamas: “Eu não perdi o meu primogênito para o Hamas, mas para a falta de diálogo e comprometimento pela paz”. Ele escolheu o caminho do diálogo em vez do caminho da vingança e junto com um colega palestino fundou uma ONG em prol da aproximação com os palestinos “o inimigo”. Será que ele também é considerado traidor?

O caminho da conscientização é longo ainda, precisamos despertar, levantar esse véu que nos cega e enxergar um futuro melhor para nosso povo, baseado no diálogo e no respeito mútuo.


SHEILA MANN

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Sheila Mann é judia, formada em artes plásticas, nascida no Líbano e crescida em Israel. Ela é conhecedora das culturas árabe e judaica com fluência em ambas as línguas, o que a torna ainda mais próxima das duas comunidades. A artista chegou ao Brasil, com 18 anos, casada e grávida de gêmeas. A dura fase de adaptação a nova cultura e aos filhos logo foi superada com a decisão de voltar a estudar. Inscreveu-se no curso de literatura da Aliança Francesa, para não perder a fluência no idioma adquirido em sua escola primária no Líbano, e também resolveu estudar artes plásticas.

Sheila Mann criou o POT – Peace On The Table, projeto que propõe unir os povos através da culinária, projeto que hoje se tornou a sua grande razão de viver, e com essa proposta se tornou uma ativista pela paz, principalmente entre árabes e judeus.

No ano passado Sheila lançou um livro de memórias e culinária denominado “Culinária do Líbano a Israel”. Atualmente dá aulas de culinária libanesa na sua própria escola, em São Paulo, e palestras sobre o seu trabalho, tendo formado um grupo de mulheres judias e mulheres árabes que se reúnem para compartilhar experiências e fortalecer laços de amizade .

sheila@peaceonthetable.org