“O PATO DO AJUSTE FISCAL” – POR ALEXANDRE SCHWARTSMAN
Em outras palavras, mesmo que sejam cumpridas todas as promessas de “corte” de gastos anunciadas na sexta-feira, as despesas federais aumentariam em R$ 75 bilhões entre 2014 e 2015, ou, se preferirem, de 18,6% para 18,9% do PIB. Curioso corte que implica, de fato, elevação do gasto…
Na sexta passada (22 de maio) o governo federal anunciou corte de R$ 70 bilhões em suas despesas, sugerindo à primeira vista que, ao contrário do habitual, desta vez seria o setor público quem mais sofreria com a proposta do ajuste fiscal. No entanto, como quero mostrar, o “ajuste”, de novo, se fará à custa do contribuinte, sem redução de gastos. Trata-se, na verdade, de um truque recorrente e não posso esconder a frustração que me causa a aceitação pouco crítica desta mágica orçamentária.
Antes de revelar o truque, porém, precisamos saber de onde vem este número de R$ 70 bilhões e, para isto, peço um tanto de paciência (e mais quatro parágrafos) dos 18 fiéis.
Segundo a proposta orçamentária aprovada pelo Congresso, o governo federal esperava obter receitas totais de R$ 1,447 trilhão, dos quais R$ 224 bilhões seriam repassados a estados e municípios. As receitas líquidas de transferências atingiram, portanto, R$ 1,223 trilhão.
A despesa orçada para 2015, por sua vez, ficaria em R$ 1,168 trilhão, dos quais R$ 856 bilhões de gastos obrigatórios (pessoal, aposentadorias, vinculações, etc.) e R$ 312 bilhões de gastos discricionários. Com isto, o resultado do governo federal atingiria R$ 55 bilhões (0,9% do PIB).
O mau desempenho da arrecadação, contudo, fez o governo rever sua projeção de receitas para R$ 1,371 trilhão, R$ 76 bilhões a menos do que previa. A arrecadação mais baixa que a esperada também significa menos transferências a estados e municípios, de modo que a perda de receita líquida foi um pouco menor: R$ 65 bilhões.
Assim, para manter o resultado em R$ 55 bilhões, o governo federal precisaria também reduzir seus gastos em R$ 65 bilhões. Como, porém, as despesas obrigatórias foram revistas para cima (R$ 860 bilhões, R$ 5 bilhões a mais), a redução das despesas discricionárias, sobre as quais tem controle, ficou em R$ 70 bilhões, o número do primeiro parágrafo. Assim, o dispêndio federal cairia a R$ 1,103 trilhão, ou 18,9% do PIB.
Parece um esforço extraordinário, até que alguém se pergunte quanto foi gasto no ano passado. O número, disponível no sítio do Tesouro Nacional, revela que o governo federal gastou R$ 1,028 trilhão em 2014 (18,6% do PIB).
Em outras palavras, mesmo que sejam cumpridas todas as promessas de “corte” de gastos anunciadas na sexta-feira, as despesas federais aumentariam em R$ 75 bilhões entre 2014 e 2015, ou, se preferirem, de 18,6% para 18,9% do PIB. Curioso corte que implica, de fato, elevação do gasto.
Já a receita federal subiria de R$ 1,221 trilhão (22,1% do PIB) no ano passado para R$ 1,372 trilhão (23,5% do PIB) este ano. Em português, um alívio depois de tantos números, o ajuste fiscal se faz mais uma vez nas costas do contribuinte, chamado a cacifar R$ 151 bilhões (1,4% do PIB) a mais do que pagou no ano passado.
É mais um aumento de carga tributária, tornando o sistema ainda mais pesado e complexo, com consequências negativas óbvias para nossa capacidade de crescimento de longo prazo. E há ainda quem não entenda o motivo de nosso desempenho medíocre.
Quando o jogador de pôquer não consegue identificar o otário à mesa, o pato é ele. Ao observarmos por entre os jogos de luz e sombra do ajuste fiscal, descobrimos que os patos somos nós.
ALEXANDRE SCHWARTSMAN – DOUTOR EM ECONOMIA PELA UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA, BERKELEY, E EX-DIRETOR DE ASSUNTOS INTERNACIONAIS DO BANCO CENTRAL DO BRASIL É PROFESSOR DO INSPER E SÓCIO-DIRETOR DA SCHWARTSMAN & ASSOCIADOS
(http://maovisivel.blospot.com) – E-MAIL: alexandre.schwartsman@hotmail.com
NOTA – Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 27 de maio de 2015.