PAPO DE COZINHA COM BRENO LERNER

144_SABORES_1

Pierre Poivre, o libertador das especiarias – A incrível história deste verdadeiro Indiana Jones do século XVIII, a quem a culinária ocidental muito deve e pouco sabe. O caso aqui é de predestinação mesmo, destino traçado pelo nome, ou melhor, pelo sobrenome.

O jovem Pierre ingressa, aos 9 anos, nos Irmãos Missionários de Saint Joseph, na colina de Croix-Rousse , uma ordem cuja vocação era a evangelização dos povos ditos pagãos. Aos 20 anos vamos encontrá-lo como noviço, sendo treinado para o trabalho missionário no Seminário das Missions Étrangers. Aos 21 , embarca para sua primeira missão com destino á China. Na longuíssima viagem trava contato com o terror da época, o escorbuto ( a falta de vitaminas no organismo, principalmente a vitamina C) que chegava a dizimar 2/3 da tripulação de um navio.

Mal chega a Guangzhou (Cantão), é feito prisioneiro junto com todos os missionários e poucos tripulantes que sobraram da viagem. Utiliza o tempo na prisão par aprender o chinês e acaba virando o interlocutor dos prisioneiros junto às autoridades que o libertam. Viaja a Macau, a Conchinchina (Cambodja) e Fai Fo (Vietnã), tentando realizar sua obra missionária mas, logo ele e seus superiores descobrem que seu maior interesse está nas plantas e alimentos e não nas pessoas e sua conversão.

Um de seus primeiros escritos fala das maravilhas do Arroz de Montanha, uma espécie historicamente plantada no Oriente e que demandava muito menos irrigação que o arroz do brejo. Quantas pessoas de nossas colônias não poderiam ser alimentadas desta forma dizia o jovem Pierre.

Mas seu verdadeiro fascínio era pelas especiarias. Por que não cultivá-las em nossas próprias colônias?

A resposta era óbvia. Porque holandeses e portugueses, detentores do monopólio da pimenta, da canela e da noz moscada, guardavam-nas como seu maior tesouro. O roubo de uma semente ou uma muda era punido com a morte. A tentativa de plantar qualquer espécie era imediatamente suprimida por invasão militar, fosse onde fosse. Que o digam os judeus Cochins , da costa Malabar na Índia, que quase foram dizimados totalmente pelos portugueses por tentar comercializar a pimenta do reino.

A sementes exportadas eram mergulhadas ou em água fervente ou em cal, para perder seu poder de germinar . Como a cal é um poderoso inseticida e bactericida , a noz moscada até hoje recebe este tratamento.

Bem, seja como for, os superiores de Pierre, decepcionados com seu trabalho, enviam-no de volta a Paris, excluído da Congregação.

A exemplo de Lineus, Joussieu e Darwin, a humanidade perdeu um religioso e ganhou um botânico naturalista. . .

Em maio de 1754, sai em expedição oficial da Cia das índias, para as Ilhas Molucas. A história se repete, escorbuto, ataques de piratas, rebelião à bordo por falta de alimentos e para culminar, são impedidos de aportar nas Molucas e acabam indo para no Timor.

Ali a sorte sorri a Pierre que de lá sai com 3.000 sementes de noz moscada , presente da mulher do potentado local ( sempre as mulheres, lembram da história de Melo Palheta e nosso café).

Em 1758, com 40 anos volta para a França, um tanto desiludido e instala-se em sua cidade natal. É eleito para a Academia de Ciências e ganha título de nobreza e 20.000 libras de prata do rei Luis XV por serviços prestados à pátria.

Com a falência da Cia das Índias em 1766, suas terras revertem para o rei que convida Pierre para ser o intendente das Ilhas Maurício. No ano seguinte lá segue nosso herói, agora com sua esposa , Françoise Robin, em direção às suas amadas Ilhas. Tão logo chega, aparelha as naus Vigilant e Étoile du Matin para uma expedição as Molucas, à caça de especiarias.

À custa de tiros, batalhas, suborno e negociações, a expedição volta repleta de mudas e o poder luso-holandês é definitivamente quebrado em 1772, quando os navios Ile de France e Nécessaire voltam de sua expedições com milhares de mudas de moscateiro, pimenta, cravo e canela. Por prudência as mudas são plantadas localmente, mas também nas Ilhas Reunião, Seychelles a nas Guianas.

Em 1778, uma linda cerimônia, seguida de almoço ” para todos os habitantes da ilha”, segundo relato da época, marcou a colheita da primeira noz moscada francesa, que foi levada, em mãos, pelo governador ao rei Luis XVI.

Durante o tempo que lá passou, Poivre criou o jardim das Toranjas, Jardin des Pamplemousses, uma verdadeira obra prima, que existe até hoje e é considerado dos mais belos do mundo e principal atração da ilha.

Espécimes do mundo inteiro foram colhidas e para lá levadas, sem esquecer de nossa mandioca e um lago com a amazônica Vitória-Régia. E a relação com o Brasil não para por aí.

Em 1808, uma fragata comandada pelo navegador português Luiz de Abreu Vieira e Silva naufragou nas costa de Goa. Alguns sobreviventes foram salvos pelos ingleses e levados para a África do Sul, de onde embarcaram para o Brasil. Novamente a história se repete e são atacados pela frota francesa que os leva prisioneiros nas Ilhas Maurício.

O bravo capitão Vieira e Silva não só consegue fugir como também roubar do lindo jardim 4 moscadeiras, 4 abacateiros,2 pés de lichia, 10 mudas de grape fruit ( toranja), 3 caneleiras e sementes de sagu ( não é o que comemos, aquele é feito de mandioca), acácia,fruta-pão e areca ( que ficou entre nós conhecida como Palmeira Imperial, por ter sido plantadas por D João VI).

Sabemos dos números exatos porque a exagerada burocracia portuguesa a tudo registrava, o que nos leva a refletir que herdamos muito deles.

Bem, filosofia barata à parte, o destemido capitão chega ao Rio e doa suas preciosas mudas ao rei Dom João VI, que com elas iniciou o Real Horto, depois chamado de Real Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

Voltemos pois ao nosso herói, que em 1772 volta a Lyon com mulher e filhas e após uma vida honrada, aventurosa e profícua, morre aos 66 anos, em 1786. Em suas memórias póstumas, ditadas por sua mulher ao amigo e confidente Pierre Samuel-Dupont, ele é descrito como um cientista aventureiro com grande respeito à natureza e amor à humanidade, tendo inclusive, no seu período de intendente, editado as primeiras leis sobre conservação da natureza que se conhece e, principalmente, abolido a escravidão nas ilhas.

Quando cada um dos leitores for saborear um bom doce com cravo e canela, um belo cozido com noz moscada , ou ainda um belo assado com louro, endro e mostarda , lembrem de agradecer ao bom e velho Pierre Poivre, nosso herói desta edição.


BRENO LERNER – Superintendente da Editora Melhoramentos, tem vários livros sobre culinária publicados. Saiba mais.

20
20