UM PASSEIO PELO OLHAR DE MARJORIE SONNENSCHEIN – POR RIC PERUCHI
Para a fotógrafa falecida no último dia 20 (de setembro), o artista é um fazedor que enxerga a poesia dos momentos cotidianos. Fotografou de Elis Regina e Hilda Hilst a Adoniran e Chico Xavier, e dizia que a beleza do retrato está na troca e na entrega.
Marjorie Sonnenschein, entrevistada por Ric Peruchi
Neta de judeus austríacos assassinados em Auschwitz, Marjorie Sonnenschein nasceu em Fortaleza, em 26 de maio de 1944, e radicou-se em São Paulo no final dos anos 50. Depois de passar pela ilustração, pela pintura e pelo cinema, fixou-se na arte fotográfica.
Suas composições visuais vão da sutil exploração das escalas de cinza até a imersão completa na cor, estabelecendo ou eliminando as fronteiras entre o figurativo e o abstrato. A partir das coisas, dos lugares e das pessoas, realizou uma meticulosa construção da beleza, com absoluta precisão nas linhas, nos enquadramentos, nas tonalidades e na captura da imanência de tudo aquilo que fixou com suas lentes.
Em 45 anos de carreira, sempre relutante em expor e comercializar seus trabalhos, inquieta por perseguir a perfeição, permaneceu como a mais “maldita” entre os grandes fotógrafos brasileiros, em poucas e raras exposições, apesar da vasta e relevante produção. Marjorie tem como legado uma obra que se caracteriza pelo diálogo intenso com as demais artes e a busca pelo essencial.
Formação e início
Iniciou-se no desenho, tendo estudado na Associação Paulista de Artes. Passou pela pintura, quando trabalhou com Lise Forell, Gershon Knispel e Harry Elsas. Dividiu ateliê com Gontran Guanaes Netto e Ionaldo Cavalcanti.
Sua primeira exposição individual foi em um Kibutz em Israel, onde viveu por alguns meses, em 1967, por incentivo de Paulo Ludmer. De volta ao Brasil, trabalhou na produtora de animação Lynxfilm, como assistente de Ruy Perotti e Daniel Messias.
Em seguida, integrou a equipe do diretor de arte Edmar Salles na revista Claudia da Editora Abril. Seu talento como ilustradora e fotógrafa foi descoberto por Ignácio de Loyola Brandão que a levou para a redação de várias publicações que editou, incluindo as revistas Planeta e Status.
Colaborou com O Estado de São Paulo, para o qual ilustrou as críticas teatrais de Sábato Magaldi, no Caderno 2, e outros textos para o Suplemento Literário, em desenhos de inspiração surrealista que assinava como Marjorie Baum, sobrenome de seu primeiro casamento. Na Associação Amigos do MAM, o lendário Bar do MAM, na Rua 7 de abril, sob curadoria de Francisco de Almeida Salles, exibiu seus desenhos e pinturas.
Cinema e livros
Ingressou na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), onde foi aluna de Paulo Emílio Salles Gomes, Roberto Santos e Rudá de Andrade. Dirigiu dois curtas-metragens. “Steinberg” (1971), uma parceria com Roman Stulbach e Marcelo Tassara, desenvolvido a partir da técnica do tabletop, leva à película os desenhos, textos e cartas do norte-americano Saul Steinberg. “O castelo do Morro dos Ingleses” (1973), produzido e dirigido inteiramente por ela, é uma adaptação livre do conto “A casa tomada” de Julio Cortázar. Os filmes integram o acervo da Cinemateca Brasileira.
Mas foi na fotografia que definiu sua trajetória. Clicou na Europa, nos Estados Unidos, no Canadá, em Israel e na América Latina, mas principalmente no Brasil, de Norte a Sul. Abriu caminhos na fotografia de paisagem e de arquitetura e se tornou, sobretudo, uma indiscutível mestra do portrait. Teve grande influência de Ansel Adams, Georgia O’Keefe e Mark Rothko, dominava igualmente a escala de cinzas e o abstracionismo cromático.
Sob suas lentes passaram grandes personalidades, como Pelé, Aldemir Martins, Betinho, José Celso Martinez Corrêa, Geórgia Gomide, Paulo Goulart, Nicette Bruno, Mazzaropi, Chico Xavier, Francisco Gaspar, Antônio Vaz Lemes e muitas outras. É de sua autoria a icônica imagem do reencontro entre Adoniran Barbosa e Elis Regina em 1978 na Padaria Real, ao lado da extinta TV Tupi. Mestre do retrato, registrou famosos e anônimos, sem distinção.
Foi companheira de Massao Ohno por 14 anos, com quem estabeleceu também parceria profissional na confecção de capas e fotos de autores em toda a última fase da produção do editor independente, com dezenas de trabalhos publicados, incluindo obras de grandes autores, como Hilda Hilst.
Clicou intensamente a cena cultural paulistana e construiu séries marcantes, que incluem “Os faróis da costa brasileira”, “Minha Janela” e “Blow up”. Nas últimas duas décadas, desenvolveu um trabalho pioneiro que denominou “Imagem-terapia”. Por meio da fotografia, devolvia autoestima a pessoas em situação de vulnerabilidade ao capturar e revelar a beleza que via em seus rostos e corpos.
Desde o início do novo milênio passou a explorar as possibilidades do digital como um novo instrumento e um retorno à pintura, em pouco tempo criando domínio e investigando novas linguagens. Sua produção digital ultrapassa 30 mil imagens. Apresentou sua última mostra, “Trajetória”, no Sobrado Dr. José Lourenço em sua cidade natal em 2013.
A fotógrafa, ilustradora e cineasta faleceu na sexta-feira, 20/9, aos 75 anos, em São Paulo. Lutava contra um câncer nos pulmões. Deixa os filhos Luciano, Micael, Maya e Matheus, a neta Daphne, a irmã Magnólia e um acervo de aproximadamente 100 mil imagens. Uma seleção de seus trabalhos foi adquirida para integrar o acervo permanente do Instituto Moreira Salles (IMS), um dos mais importantes dedicados à fotografia na América Latina.
Em rara entrevista, sua última, Marjorie Sonnenschein revela um olhar peculiar sobre a arte e o universo das imagens. Fala abertamente, de maneira íntima e sensível, de sua trajetória como criadora, de seus medos, intenções e descobertas ao longo de 45 anos de carreira.
O primeiro instrumento do artista é o olho?
Eu acho que esse acúmulo de olhares, de todas as coisas vistas, se reúne no momento em que vou realizar o trabalho. De alguma forma, uso essa experiência, a experiência de quem vive de olhar.
A mente edita o mundo. O olho é o copião. Quem edita mesmo é a mente. O copião capta tudo, mas a mente é que me leva a fixar no nozinho daquela garrafa ou no verde do seu olho que estou vendo agora.
Para que você fotografa?
Primeiro eu quero gostar. Se eu não gostar, não tem jeito. Ou seja, eu fotografo pra mim, pro meu prazer. É o meu prazer em ver e comparar aquela beleza que vi com o que consegui realizar.
Depois fico imaginando assim… Normalmente as pessoas vão pro trabalho, pra casa, vão de carro, não sei o que, e não têm a oportunidade de fixar. Até passam pelos momentos belos, ou momentos interessantes, mas passam e não veem. E o artista, ou esse fazedor, está disponível. Sua vida é ficar recortando tudo isso que passa. É um indivíduo que se predispõe a fazer esses cortes. Então, aquele que passa e que não tem tempo porque está indo para outra atividade vai ter a oportunidade de ver esses cortes ou de reconhecê-los. Eu desejo, portanto, com as minhas imagens, dar um prazer para o outro individuo.
É como se você quisesse que os outros vissem aquilo que só você vê?
Compartilho aquilo que vejo porque é muito incrível. É muito para ser só de um. É isso. Eu gosto que você veja aquilo que eu vejo. Embora não saiba se você vai gostar, se isso vai impressionar você como me impressionou.
É uma necessidade?
Às vezes, uma beleza é insuportável. Preciso pegar, botar num lugar e me livrar dela. A beleza é deslumbrante. Minha tentativa sempre é de reproduzir esse estado de contato com a beleza.
Quer dizer…
Não é só uma imagem.
Qual a primeira imagem da sua existência que permanece em sua memória?
Quando morava em Fortaleza havia um alpendre em volta da casa inteira, que era ao lado da praia. Em todo esse terraço, o chão era feito de losangos vermelhos. Um lado da construção era a entrada social e, no lado de trás, havia uma torneira de onde se puxava uma mangueira que alcançava toda a casa… e as bitucas de cigarro da minha mãe. Ali eu ficava desenhando sobre os losangos. Foi meu primeiro contato com o desenho. Eu devia ter oito anos.
A sua primeira relação com a arte foi o desenho, então?
Foi isso mesmo. Minha família se formou em Fortaleza, depois fomos para Natal, onde vivemos uns três anos. Cheguei aos 14 em São Paulo e fomos morar no Brooklin. Já que desde cedo eu gostava de desenhar, meu pai percebeu. Ele era austríaco e, claro, me colocou para estudar com um senhor alemão. E eu ia sempre. Tinha de desenhar ferramentas, chaves de fenda… [risos] Eram desenhos técnicos mesmo. Depois observava esculturas e figuras humanas…
Então passei por algo incrível. Fiz cursos de desenho de costura e também de desenho livre, com nu artístico e tudo o mais, na Associação Paulista de Belas Artes. Fizemos uma exposição numa galeria que havia embaixo do Viaduto do Chá. Foi minha primeira. Ganhei uma medalhinha. É… Minha história começou com os desenhos.
Quando a arte virou trabalho?
Teve uma primeira história… Quando vi os desenhos do Carybé fiquei louca por aquilo e comecei a desenhar inspirada por ele e fazia cartõezinhos. Eram jangadeiros e outros temas que tinham a ver com a minha infância no Nordeste. Um amigo do meu pai chegou a imprimir algumas coisas e a fazer cartões postais. Eu achava que minha história ia ser isso.
Mas depois é que começou mesmo. Um dia vi um anúncio no jornal para a Lynxfilm, que era uma produtora de animação. Buscavam um assistente de direção para desenhos animados. Respondi e fui contratada. Trabalhei com o Ruy Perotti, que dirigia os filmes, e também com o Daniel Messias, que era um grande ilustrador. Eu desenhava os movimentos. Foi meu primeiro trabalho.
Fiquei um tempo ali e vi outro anúncio, desta vez da revista Claudia, para ser assistente de direção de arte. Fiquei um ano lá, com o Edmar Salles. Fazia diagramação. Foi lá que eu conheci o Loyola (Ignácio de Loyola Brandão), que curtia muito o meu trabalho. Onde ele ia, me levava. Fomos para a Planeta e depois para a Status, sempre como ilustradora. Ainda como parte dessa fase, ilustrei as críticas teatrais do Sábato Magaldi no Estadão e outros textos para o Suplemento Literário.
Você chegou a pintar?
Muito. Comecei a pintar sozinha, como autodidata. Depois frequentei um ateliê coletivo, que pertencia a um italiano. Era ao lado da Escola Panamericana, perto de onde é hoje o Restaurante Piolim. Numa daquelas casas morava o Flávio Império com a mãe dele. Havia vários artistas importantes lá. Lembro do Gontran (Guanaes Netto) e do Ionaldo (Cavalcanti). Cada um tinha seu cavalete e trabalhava ali. E eu tinha o meu. Comecei olhando e ajudando. Foi então que a artista naif Lise Forell, com quem cheguei a trabalhar, me apresentou o Gershon Knispel. Foi uma paixão. Estudei ainda com o Harry Elsas.
O que existe dessa produção?
Sabe o que aconteceu? Destruí todas as minhas pinturas e a maioria dos desenhos, brigando com os companheiros. Quando eu enlouquecia e brigava com um companheiro, em vez de quebrar a casa, eu destruía minhas obras. Reneguei tudo, menos a fotografia.
Na fotografia só sobrevivem instantes e muitas imagens são jogadas fora. Você acha que a vida também é isso? São instantes que sobrevivem?
Não, acho que não. Na realidade, instante tem a ver com instantâneo, e instantâneo também é fotografia, não é? É um sinônimo de fotografia. Na fotografia, de uma certa forma, você fixa o instante, mas a vida, para mim, não é isso. A vida é um rolo de filme que passa e você fica.
A vida não é fotografia, a vida é cinema?
A vida é cinema. E eu sou louca por cinema. [risos]
E como nasceu esse paixão?
Resolvi fazer Filosofia, como ouvinte, na Maria Antônia. Lá tive uma professora de História da Arte, que era apaixonada por cinema. Não consigo lembrar seu nome. Ela era fantástica. Fiquei muito interessada e fui fazer a faculdade de cinema na USP.
Meus contemporâneos lá foram o (Carlos Augusto) Kalil, o Guilherme Lisboa, o Sérgio Bianchi e a Tânia Savietto, a quem eu era muito ligada. Andavam por lá também o Nuno Leal Maia, a Regina Duarte… Entre os mestres havia o Roberto Santos, que era apaixonado pelos alunos, encantado com os jovens que curtiam cinema. Foi muito intenso. Teve ainda o Paulo Emílio (Sales Gomes) e muitos outros.
A Escola tinha recebido uma doação de câmeras de filmar e começou a fornecer o equipamento para profissionais, que integravam os estudantes na equipe, para fazer a prática. Eu sempre me enfiava nas trupes. Via Rudá de Andrade e toda uma turma.
Há uma imagem minha que ilustra muito bem o que foi essa época. Estavam na mesma mesa, rodeados por nós alunos, Edgard Morin, Roberto Rossellini e Glauber Rocha.
Você chegou a realizar filmes?
Rodei um curta-metragem com o Roman Stulbach e o Marcelo Tassara a partir de desenhos, textos e cartas do Saul Steinberg. Era todo em tabletop. Ainda circula por aí em mostras. Dirigi sozinha outro curta baseado no conto “A casa tomada”, do Julio Cortázar. Chama-se “O castelo do Morro dos Ingleses” (1973). Os dois trabalhos integram o acervo da Cinemateca Brasileira.
Além disso, colaborei com a Tânia Savietto na produção de um documentário chamado “Comunidade Scapin” (1971). Depois fui para o longa com direção de arte e still. Trabalhei em “Jogo da vida e da morte” (1972), do Mario Kuperman, em “Longo caminho da morte” (1972), do Júlio Calasso, e em “O Predileto” (1975), do Roberto Palmari. Meu último trabalho para o cinema foram as fotos de cena e para o cartaz de “O amor está no ar” (1997), do Amylton de Almeida.
A fotografia, de fato, veio quando?
Me casei na tradição judaica e quase imediatamente depois fomos para Israel, que se preparava para a guerra, em 1967, com um grupo de voluntários do mundo inteiro. Fomos viver num Kibutz. Ali considero minha primeira exposição individual, com desenhos e pinturas. Foi no meu “barraco”. Quem me apoiou muito foi o Paulo Ludmer. Foi todo o mundo do Kibutz para olhar e aí foi aquela coisa.
Na volta de Israel, passando por Paris, comprei minha primeira câmera, uma Canon. Eu tinha interesse, gostava de fotografia. Mas era um olhar amplo para a arte. Pintura, desenho, fotografia… Eu sempre gostei de tudo. Naquele momento vi e gostei do instrumento. Mas só vim a fotografar mesmo quando entrei na ECA no início dos anos 70. Lá tinha um laboratório. Quando entrei e vi aquilo, adorei. Foi então que comecei a me interessar por fotografia pra valer. A paixão pelo cinema e a preguiça de pintar me levaram para a fotografia.
Falando em suas raízes judaicas, os seus avôs estiveram em Auschwitz…
Morreram em Auschwitz.
Sonnenschein?
É um sobrenome austríaco. Meu pai, Leopoldo, fugiu da Áustria com seu irmão durante a Segunda Guerra. Eles eram jovens. Meu tio foi para o Canadá e meu pai para a Argentina e de lá para o Brasil. Eles queriam que meus avós viessem, mas eles não acreditaram…
E sua mãe era brasileira?
Minha mãe, Francisca, era maranhense. Fez o primário junto com o Aldemir Martins. Mais tarde foi estudar em Fortaleza e lá conheceu meu pai. Deu certo. [risos]
E o resultado?
Magie e Marjorie. Minha irmã cantava e eu gostava de dançar.
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