A JUDIA ARACY DE ALMEIDA – POR HENRIQUE VELTMAN

345_especial_3_1Evangélica por influência paterna, converteu-se ao judaísmo e o rabino Henrique Lemle cuidou disso, na ARI.


Conheci pessoalmente Aracy de Almeida nos idos dos anos 1950, quando integrei o grupo Curumins da Tupi. Ela era muito amiga de Silvia Autuori, que comandava os programas do grupo, encarnando a Tia Chiquinha.

Aracy sempre tinha uma palavrinha para nós, meninos que sonhávamos com o rádio, o jornal, a televisão.

Pois então, essa Aracy de Almeida era vidrada na Torá, no Testamento Hebraico. Evangélica por influência paterna, converteu-se ao judaísmo e o rabino Henrique Lemle cuidou disso, na ARI. Essa contradição místico-religiosa de Aracy se somava ainda ao culto quase religioso a Noel Rosa, de quem era a melhor intérprete.

Hermínio Bello de Carvalho situou esse conflito num pequeno espetáculo intitulado ‘A Paixão Noel Segundo Aracy de Almeida’, apresentado há alguns anos no Teatro Teresa Rachel, no Rio de Janeiro.

Num depoimento sobre Aracy, o Hermínio fala do “Sermão do Profeta”, um recital de Elizeth Cardoso com trechos do vulgarmente chamado de Antigo Testamento, selecionados por Aracy. Diz o Hermínio: “Se não virei um especialista em Moisés, nem decorei os salmos de David e sequer as profecias de Isaías, pelo menos sobraram-me alguns provérbios de Salomão”.

Encantado

A casa de Aracy, no subúrbio do Encantado, era casa no mais vasto sentido: ampla, com jardins ao fundo, janelas permanentemente abertas, ensolarada. E quadros de Di Cavalcanti, Clovis Graciano, Antonio Bandeira, Walter Wendhausen, Heitor dos Prazeres, Luis Canabrava, Aldemir Martins. Uma bela coleção de opalinas, além de faianças, relógio de ouro, gramofone, vasos valiosos, badulaques espalhados pela casa – e um busto seu, esculpido por Bruno Giorgi, sobre o étagère. Tapetes persas, lustres da Bohemia, biscuits raríssimos – e a algaravia feita pelos seus animais de estimação, companheiros ciumentos e inseparáveis.

Ou seja, nada a ver com a imagem de Aracy nos programas de auditório da televisão, ela era uma verdadeira dama!

A voz do morto

Caetano Veloso, em Sobre as letras, comenta que “A voz do morto” lhe foi “ditada por Aracy de Almeida”. Conta o baiano: “Ela estava em São Paulo para fazer a Bienal do Samba (…) e estava muito irritada com a ideologia em torno daquilo. Ela veio falar comigo: ‘Pô, me tratar como Glória nacional pensando que vão me salvar? (…) Quero que você faça um samba, porque você é que é o verdadeiro Noel, porque você é violento, você é novo!”.

Aracy de Almeida ditou o samba, Caetano fez a música, ela adorou, Aracy estava de “saco cheio desse negócio de Noel Rosa”, de ter que “arrastar esse morto pelo resto da vida”) e gravou – Bienal do samba (1968).

O sentido (o significado) da canção de Caetano Veloso está tensionado no título: “A voz do morto” é uma paródia de “A voz do morro”. O objeto, em ambas, é o samba: glória nacional.

O sujeito de “A voz do morto” denuncia que eles (a patrulha ideológica) querem salvar o samba. Ou seja, mantê-lo a salvo das funestas influências. Coitados, eles esquecem que preservar cegamente uma cultura, ou simplesmente desprezá-la em um museu, é uma perversão, em um país tão diverso quanto o Brasil.

A mistura de elementos (ouro, prata, filó de nylon) indicia a justaposição e a bricolagem de versos (significantes), extraídos de canções de Noel Rosa (e de sambas canônicos), que ouvimos proliferados ao longo de “A voz do morto”. Mas também apontam a hibridação daquilo que é o samba brasileiro: ouro e filó de nylon: tudo junto e misturado agora.

“Deus está morto” – acusou Nietzsche, apontando a perda de Deus no turbilhão de zelos das religiões. Bem como lançando aos indivíduos a responsabilidade sobre suas vidas. “A voz do morto” (da defunta voz ou da voz defunta?) vem (do além) mostrar sua força insofismável.

A voz da canção (a voz do samba: morto pelo excesso de zelo) nega esta proteção que lhe sufoca. Essa voz é alegre. Ela sabe do poder da mestiçagem parabólica ambulante do Brasil. Os signos filigranados ao longo da letra tentam condensar a pluralidade de ritmos que resultam em samba. O rock não fica de fora: “Eu sou terrível” é recolhido dos versos da Jovem Guarda (“opositora” daqueles que queriam salvaguardar as glórias nacionais).

Este gesto de ir contra a “patrulha ideológica” impõe à voz do morto a condição de marginalizado. Porém, no Brasil, o samba (a alegria) é o deus que não discrimina, ao contrário, agrega, na festa da afirmação da existência, todos os seus “seguidores”: o folião (o indivíduo errante, pelo mundo). Ao invés de prender, este deus, solta a gente.

“Na Glória!” – exaltação também recolhida de Noel – coroa este samba que tem Jesus de Nazaré e os tambores do candomblé: apontando o Brasil como vértice da “paz do mundo”, como o sábio Jorge Mautner defende.

A voz do morto
(Caetano Veloso)

Estamos aqui no tablado
feito de ouro e prata
e filó de nylon

Eles querem salvar as glórias nacionais
As glórias nacionais, coitados

Ninguém me salva
ninguém me engana
Eu sou alegre
Eu sou contente
Eu sou cigana
Eu sou terrível
Eu sou o samba

A voz do morto
Os pés do torto
O cais do porto
A vez do louco
A paz do mundo
Na Glória!

Eu canto com o mundo que roda
Eu e o Paulinho da Viola
Viva o Paulinho da Viola!
Eu canto com o mundo que roda
Mesmo do lado de fora
Mesmo que eu cante agora

Ninguém me atende
Ninguém me chama
Mas ninguém me prende
Ninguém me engana

Eu sou valente
Eu sou o samba
A voz do morto
Atrás do muro
A vez de tudo
A paz do mundo
Na Glória!


HENRIQUE VELTMAN é jornalista.

hbv@uol.com.br

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