A MEMÓRIA TECIDA DE SILÊNCIOS E FANTASMAS

Vencedor do 2º Prêmio Benvirá, ‘Deserto’ foi lançado dia 21 de maio

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Divulgação

Professor de literatura hebraica e judaica na USP, Luis S. Krausz tinha 16 anos quando integrou uma excursão da Organização Sionista Unificada para Israel. Era o final dos anos 1970 e a ideia de que o povo judeu devia voltar à terra de seus antepassados e viver de seu cultivo ainda vigorava. Passou dois meses numa escola agrícola ao lado de outros adolescentes e teve duas semanas de folga antes de voltar ao Brasil. Mas a regra era clara: não podia ir para a Europa, ou seja, desviar-se do caminho.

Essa história voltou à memória de Krausz, hoje com 52 anos, depois que ele publicou, em 2011, Desterro – Memórias em Ruínas (Tordesilhas), seu primeiro romance, escrito após a morte do pai e da avó paterna. O livro resgata as memórias que herdou deles. “Foi um mergulho nas minhas origens familiares, nas coisas que são passadas para os descendentes não por meio de palavras, mas de forma silenciosa e involuntária. Senti que com essas mortes as histórias também tinham desaparecido e escrever foi uma tentativa de fixar esses fantasmas”, diz o autor, que depois acabou mergulhando nas próprias lembranças para escrever Deserto, um breve e delicado registro ficcional dessa viagem feita aos 16 à terra de seus antepassados, à casa de seus parentes e à Londres de seu sonhos.

O livro ficou na gaveta por alguns meses até que Krausz ouviu sobre o Prêmio Benvirá de Literatura. Inscreveu a obra, concorreu com outros 1.500 autores e venceu – como prêmio, ganhou R$ 30 mil e a edição do título, que será lançado na terça-feira, às 19 h, na Livraria Saraiva do Shopping Higienópolis (Av. Higienópolis, 618).

Deserto tem duração de duas semanas, tempo em que o garoto vai de casa em casa conhecendo seus parentes distantes. Dorme em bibliotecas, sai para caminhar pela vizinhança, senta-se à mesa com desconhecidos de fisionomia semelhante à da sua avó, ouve música clássica e narra com detalhes as comidas que experimentou, as sensações e impressões que esses encontros despertaram nele. Numa das passagens, conta sobre uma noite de leituras organizada pelo tio-avô, da qual participou o dramaturgo Max Zweig, primo de Stefan Zweig. O livro Davidia, autografado, é guardado por Krausz como uma lembrança daquele evento.

Deserto é, segundo seu autor, um retorno ao mundo dos judeus austríacos assimilados, que se sentiam em casa na Áustria e foram tomados de surpresa pela ascensão do nazismo, que fugiram mas passaram a vida vinculados à sua cultura, língua de origem e aos costumes e gostos. E passaram a vida buscando esse lugar no mundo – mas que pelo menos tiveram essa chance. “Essa ambivalência está presente nos personagens e em mim. De um lado esse se sentir em casa onde se está e de outro ter a dúvida: será que esse é mesmo o meu lugar?” A Metamorfose, de Kafka, foi o livro que acompanhou o jovem Krausz na sua jornada.

“O propósito da viagem era convencer os jovens judeus de que a vida na Diáspora era um equívoco. E o que me interessou foi exatamente o contrário, foi o universo dos judeus assimilados, da Diáspora, um grupo que acho fascinante.”

Essa excursão foi o ponto de partida da obra, mas o autor garante que nem tudo é real. “O trabalho artístico não está em transcrever memórias, mas em despertar essas memórias e construir em torno delas. Interferir e recompor essa trama”, comenta. As percepções impressas em Deserto são as que ele tem do que podem ter sido aqueles momentos vividos 35 anos atrás. “Não tenho nenhuma pretensão de entregar ao leitor um relato verdadeiro, mas um relato plausível.”

Trechos de Deserto

“O apartamento era pequeno, numa daquelas ruazinhas tomadas por predinhos de três andares, todos idênticos, construídos às pressas nos anos 1950 e 1960 para acolher as levas de refugiados que haviam passado anos em campos de trânsito, na Europa. Antes de subirmos as escadas, meu tio-avô me levou para conhecer o abrigo antibomba no subsolo do prédio, cuja entrada era marcada com um letreiro hebraico, com letras berrantes que diziam: miklat.* Em idíche, que eu entendia mais ou menos apenas por causa da proximidade com o alemão ele deu a entender que já havia passado algumas temporadas ali.”

* Miklat: em hebraico, “abrigo antibombas”

“Minha compreensão do que eles diziam era imperfeita tanto quanto era imperfeita a minha compreensão das palavras hebraicas que eram pronunciadas nas rezas de Rosh hashaná e de Yom kipur que se organizavam na casa de meus avós, e assim como lá, à mesa do chá, eu me esforçava para manter o silêncio e, compenetrado, tentar apreender o significado do que se dizia à minha volta (…)”

 

Fonte: (http://estadao.br.msn.com/cultura/a-mem%c3%b3ria-tecida-de-sil%c3%aancios-e-fantasmas-1)

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