PESSACH – A TRAVESSIA DE MOISÉS IV (IMINÊNCIA DA LIBERTAÇÃO) – POR PAULO ROSENBAUM
(DIÁLOGO ENTRE MOISÉS E JOSUÉ)
— Mestre ainda falta muito? Um arfante Josué indaga enquanto está descendo a montanha para organizar o levantamento do acampamento e prosseguir em direção à Eretz Israel, a Terra Prometida, depois que o povo estacionou no deserto.
— Quarenta, Moisés responde.
— Quarenta dias?
— Não!
— Meses?
— It’s a long way, anos, filho, quarenta anos, filho.
— O Senhor está de brincadeira?
Moisés não para, apenas acelera o passo e respira mais fundo.
–E as ameaças que enfrentaremos? Já passamos pelas pragas, faraós, economistas de plantão, partidos que torcem pelo pior, oposições não republicanas, política crua, líderes sem noção, oportunistas, gente insatisfeita.
— Quanta gente satisfeita? O que nos mantém vivos é o direito de reclamar, vamos andando, não vamos dar mole para a falta de sorte.
— Não, não, o lema é o que você sempre sempre propôs: Mazal Tov e a alegria, mesmo nas dificuldades. Mas é que o SAC não aguenta mais gente na porta da barraca. O que digo para eles oh Grande Líder?
“se eles apenas soubessem, tudo o que eu mais queria era não ter que ser líder de coisa nenhuma”
–Diga só que temos todo o tempo do mundo. Veja a proporção, num Multiverso de 15.3 bilhões de anos, o que são quarenta anos?
— O Senhor é adepto do Big-Bang? Agora também está nessa de relativizar geral?
–Cada dia um tipo de humor. Minha emunah (fé) pode estar intacta, mas temos o direito e o dever de interpelar o Criador. No dia de hoje, por exemplo, sou um filósofo das incertezas e um convicto crente no imponderável.
— É que eles estão se sentindo confinados…
–Confinados estávamos antes, “escravos nós fomos no Egito”, tá lembrado? Foi agorinha.
— Mas é que eles não sabem com o que devem se ocupar, o que o Sr. aconselha mestre?
— Só o Altíssimo para te responder filho. Que tal se ocuparem das próprias famílias, cuidar da horta, ordenhar o rebanho, pegar firme um bom pergaminho? Aconselhável não ficar lendo manchetes sensacionalistas. Sem negócio, a onda é cultivar o ócio, todo mundo não vivia reclamando do trabalho, hora extra, da síndrome de burning out?
— Pois é (constrangimento) mas é que as esposas também estão reclamando, muita gente nas tendas, as crianças sem aulas, tá todo mundo entocado.
— Olha bem amigo, lembra? Sempre em frente, temos um deserto inteiro para atravessar. Calma que vai passar. Moisés olha com pena para seu interlocutor.
— Certo!
— Você está vislumbrando líderes alternativos para conduzir o povo?
“Senhor, ele ainda nem faz ideia de que o abacaxi vai ser dele?” Moisés pensa.
— Sem ofensa, são uns piores que os outros. E Mestre, ninguém está questionando sua autoridade
— Que pena, sou um daqueles que gosta de ser colocado em xeque, não vejo a hora de passar esse bastão quente (Moisés ameaça jogar o cajado na areia)
–Não me entenda mal, mas é muita pressão nos chefes dos acampamentos, o pessoal da infra, os tribunais, os governadores, Eles estão perdendo a cabeça, ameaçando prender, fazer rodízio, agora falam em rastrear todo mundo. Até o comandante geral está perdidaço.
–Eu sabia. Eles nunca vão entender? Que a repressão nunca foi pedagógica, será que não leram Arendt? Quando some a autoridade aparece o autoritarismo? Moisés olha para cima. Bem que o Altíssimo me avisou que era um povo difícil.
— Tem gente dizendo que preferia a ditadura do Ramsés.
–Eles querem a volta do regime antigo? Sei, escravidão garantida ou seu dinheiro de volta.
(estrondos violentos no alto da Montanha)
— E tem mais, também querem votar uma petição para se desculpar com o Faraó. A mídia está publicando manchetes que sem escravos o mercado vai balançar e que agora seria diferente, blá blá blá, propaganda deles lá, sabe?
–Olha filho, se não tivesse saído da sua boca eu não acreditaria.
–É que….
— Vai, fala logo, desembucha
— Sou seu servo fiel e
— Não quero nenhum servo fiel. Se há algo que aprendi nessa curtíssima liderança é que não há fidelização séria de cliente ambicioso. Nunca tive desejo de consumo — fora a biga gigante de 30 cavalos — mas se tivesse um seria pedir gente com imaginação para enfrentar junto essa situação. Estou decidido, vamos remontar os conselhos de anciões.
— Senhor, perdão pela franqueza, mas essa velharada de novo?
–Idosos, idade avançada, senescencia, última estação, sênio, estação das neves, segunda infância, canície, gerocomio, vedro, dioso, tarouco, cadivo, anoso, chame como quiser. Lembra-se qual era a diferença entre as assembleias gregas e judaicas?
–Sinceramente? Não.
–Nas gregas, os velhos sentavam cada vez mais longe da mesa diretora, enquanto nas judaicas ficavam cada vez mais próximos.
–Certo mestre, mas eles já deram sua contribuição, não precisamos de sangue fresco?
–Prefiro sangue pisado, curtido sabe?
–Não peguei Mestre.
–Deixa para lá. Precisamos do pessoal que que têm experiência, que testemunhou as gestões que quase fizeram falir o Império, foi a estratégia deles que afinal nos mostrou uma saída daquele abismo, ou você acha que fiz tudo isso sozinho?
— Mas é que a moçada tá dizendo que eles já tiveram o tempo deles, e que agora eles devem ficar quietinhos, já fizeram sua parte, não fazem tanta diferença.
(trovões e raios fulminantes, algumas pedras voaram longe e tendas de novos partidos foram destroçadas)
–Entendi, mestre já entendi. E que tal propor um governo de união nacional? Josué responde assustado.
— Com ou sem autocrítica? Moisés ri.
— Ai complica Mestre, sabe como é, o núcleo duro está fechado com a ideologia. Sabe, questão de princípios, eles não podem nem irão demonstrar arrependimento, sem vão confessar a culpa.
— Nem mesmo aqueles condenados que foram soltos?
— Temo que não.
–Ah não, sem autocrítica não dá!
–Entendi.
— Acho que vou ter com o Criador de novo. Parece que nenhum de vocês entendeu o sentido da coisa. Se os novatos, não souberam entender o valor da história, o que e quando aprenderão? Vão reproduzir amanhãs de erros antigos. Essa travessia, onde cada um esta com sua família era exatamente um espaço perfeito para meditar, sob medida, era o tempo certo para mudar isso, capiche?
(vento forte seguido de um coro de vozes graves lembrando Paul Johnson e Louis Armstrong cantando “Let my people go”)
–Mas mestre, lá está uma confusão da breca, monte de gente falando ao mesmo tempo, coisas contraditórias, cada um tem uma opinião. Sabe, essas lives da net?
–Ainda bem, melhor assim, na verdade, antes só aqueles tipos “tá em todas” falavam. Agora temos uma espécie de uber generalizado para competir com a mídia ordinária, não é mesmo?
–É isso, mas a coisa está muito polarizada entre direita-esquerda que hoje o politicamente correto manda chamar da “coisa binária”.
–Zero de apreço pelo politicamente correto. Isso aí é mordaça disfarçada. Será que eles já ouviram falar de caminho do meio?
–Nunquinha Mestre
–Se não ouviram vão ouvir lá no futuro, um médico genial chamado Rambam vai ensinar a técnica. E pare de me chamar de Mestre.
–Certo, Moisés tem razão.
–Não filho!! Evita a expressão. Essa frase agora está pegando muito mal.
–Moisés, o senhor está correto.
— Vamos deixar a formalidade de lado, ok?
— Certíssimo Mestre.
— Céus
(trovões com ruídos celestiais e sob um dia limpo, tempestade súbita)
— Perdão, Onipotente, era só um desabafo, Moisés abaixa a cabeça para desculpar-se.
— E Chefia, tem mais uma questão.
— Qual ? Moisés atalha com um suspiro e balançando a cabeça.
— Tão falando agora que querem acabar com a austeridade fiscal.
–Pelo amor dos céus, de novo essa lenga-lenga, eles não viram no que deu? Essa gente acha que terror é pedagógico?
— Acho que sim, mas cá entre nós assustar as pessoas pode dar certo, né? O povinho só entende ordens na base do susto e da ameaça.
–Oh Lord, e o que mais ? Tem alguma boa notícia?
— Tem a China.
— O que tem a China?
–China, o medicamento, não o País.
–Não vamos tocar nesse assunto agora.
— Perfeitamente chefe.
— Só um ponto, para tomar esta droga aí, a China (Chinchona officinallis, a origem e matéria prima da hidrocloroquinina) está consultando o staff médico como eu orientei, certo? Ou pelo menos usando os conselhos do Hahnemann de usar doses ultra diluídas?
— Não, Mestre, ai é que está. Com medo do pandemônio estão tomando por auto-prescrição, na base da garrafada. A cúpula do planalto já tá toda nessa onda da China.
“A peste termina, a ignorância nunca”
–Pelas barbas de Abrão, Isaac e Jacob, Essa era a boa notícia?
— Não Rav, a boa notícia é que já estamos chegando.
— Sério?
— Olhe adiante as colinas, consegues enxergar a Terra Prometida? Estamos bem próximos, Cannaã está aqui, nossa quarentena está perto do fim e nem vimos o tempo passar.
–Impressionante, 40 anos em 40 minutos.
Moisés abraça Josué e entoam juntos a música Jerusalém Shel Zahav (Jerusalém de Ouro).
Moisés estende o cajado para Josué que o apanha, enquanto ele sai rapidamente e cantarolando a nona de Beethoven, imaginando-se livre.
Em seu caminho de volta ao Monte Sinai, e vendo a perplexidade do discípulo, à distância Moisés provoca acenando um tchau:
–Vai que é tua, Josué.
Paulo Rosenbaum – Médico e escritor, mestre em medicina preventiva, doutor em ciências (USP) e pós doutor em Medicina Preventiva (FMUSP) , autor de Outro Código da Medicina, Medicina do Sujeito, Novíssima Medicina, Entre Arte e Ciência, as bases hermenêuticas da homeopatia. Na literatura publicou os romances “A Verdade Lançada ao Solo” (Ed. Record, 2010), “Céu Subterrâneo” (Perspectiva, 2016), “A Pele que nos Divide” (Poesia – Quixote-Do, 2018). Desde 2013 edita e publica o Blog “Conto de Notícia” no Jornal O Estado de São Paulo.