QUATRO DIMENSÕES DA JORNADA – POR RABINO JONATHAN SACKS Z”L

Ser judeu é estar disposto a ouvir a voz firme, baixa da eternidade nos pedindo para viajar, mover-nos, seguir em frente, continuando a jornada de Avraham rumo àquele destino desconhecido no longínquo horizonte da esperança.


Nas primeiras palavras que D’us envia ao portador de um novo pacto, já há pistas sobre a natureza do heroísmo que ele iria incorporar. A ordem múltipla “Lech lecha – siga em frente” contem as sementes da suprema vocação de Avraham.

Rashi, seguindo uma antiga tradição exegética, traduz a frase como “Jornada para si mesmo.” Segundo ele, D’us está dizendo “Viaje para seu próprio benefício e bem. Ali Eu tornarei você uma grande nação; aqui você não terá o mérito de ter filhos.”

Às vezes temos de abrir mão do nosso passado para adquirir um futuro. Em Suas primeiras palavras a Avraham, D’us já estava intimando que aquilo que parece como um sacrifício, a longo prazo, não é. Avraham estava a ponto de se despedir das coisas que significam muito para nós – pais, local de nascimento e lar da família, os locais aos quais pertencemos. Ele iria fazer uma jornada do familiar para o não familiar, um salto para o desconhecido. Poder dar aquele salto envolve confiança – no caso de Avraham, confiar não num poder visível, mas na voz do D’us invisível. Ao final, porém Avraham iria descobrir que tinha atingido algo que de outras forma não poderia. Ele daria nascimento a uma nova nação cuja grandeza consiste exatamente na capacidade de viver por aquela voz e criar algo novo na história da humanidade. “Vá por si mesmo” – acredite naquilo em que você pode se tornar.

Outra interpretação, mais midráshica, diz que a frase significa “Vá consigo mesmo” – ou seja, ao viajar de um lugar a outro você vai ampliar sua influência, não sobre um país, mas sobre muitos:

Quando o Eterno disse a Avraham: “Deixa tua terra, teu local de nascimento e a casa de teu pai…” o que Avraham parecia? Uma jarra de perfume com uma tampa apertada colocada num canto para que sua fragrância não pudesse sair. Assim que foi movida daquele lugar e aberta, sua fragrância começou a se espalhar. Assim o Eterno disse: “Avraham, muitas boas ações estão em ti. Viaja de um lugar a outro, para que a grandeza de teu nome se espalhe em Meu mundo”.

Avraham foi ordenado a deixar seu local para atestar a existência de um D’us não limitado por lugar – Criador e Soberano do universo inteiro. Avraham e Sara seriam como perfume, deixando um traço de sua presença onde quer que fossem. Implícita neste midrash está a ideia de que o destino dos primeiros judeus já prenunciava aquele de seus descendentes que seriam espalhados pelo mundo para divulgar conhecimento de D’us através do mundo. Não muito usualmente, o exílio é visto aqui não como castigo, mas como um corolário de fé necessário que vê a D’us em toda parte. Lech Lecha significa “Vá consigo mesmo” – com suas crenças, seu estilo de vida, sua fé.

Uma terceira interpretação, dessa vez mais mística, diz que a frase significa “Vá para dentro de si mesmo.” A jornada judaica, disse Rabi David de Lelov, é uma jornada à raiz da alma. Nas palavras de R. Zushya de Hanipol, “Quando eu chegar ao céu, eles não irão me perguntar, por que você não foi Moshê? Eles irão me perguntar, Zushya, por que você não foi Zushya?” Avraham estava sendo perdido para deixar para trás todas as coisas que nos tornam outra pessoa – pois é somente ao fazer uma jornada longa e solitária que descobrimos quem realmente somos. “Vá para si mesmo”.

Existe, no entanto, uma quarta interpretação: “Vá por si mesmo”. Somente uma pessoa disposta a ficar sozinha, singular e única, pode adorar o D’us que é sozinho, singular e único. Somente aquele capaz de deixar para trás as fontes naturais de identidade – lar, família, cultura e sociedade – pode encontrar a D’us que está acima e além da natureza. Uma jornada para o desconhecido é uma das maiores expressões possíveis de liberdade. D’us quis que Avraham e seus filhos fossem um exemplo vivo de como é servir a D’us de liberdade, em liberdade, em prol da liberdade.

Lech Lecha significa: Deixe para trás tudo aquilo que torna os seres humanos previsíveis, não livres, delimitados. Deixe para trás asa forças sociais, as pressões familiares, as circunstâncias de seu nascimento.

Os filhos de Avraham foram chamados para ser o povo que desafiava as leis da natureza porque se recusaram a definir-se como os produtos da natureza. Isso não é dizer que as forças econômicas, biológicas ou psicológicas não têm um papel a desempenhar no comportamento humano. Elas têm. Mas com suficiente imaginação, determinação, disciplina e coragem podemos subir acima delas. Avraham o fez. Portanto, na maioria das vezes, seus filhos fizeram.

Aqueles que vivem dentro das leis da história estão sujeitos às leis da história. Tudo que é natural, disse Maimônides, está sujeito à desintegração e declínio. Foi isso que aconteceu com praticamente toda civilização que apareceu no palco do mundo. Avraham, porém, iria se tornar o pai de um AM olam, um povo eterno, que não iria decair nem declinar, um povo disposto a ficar fora das leis da natureza. O que para outras nações são inatos – pais, lar, família – no Judaísmo são assuntos de comando religioso. É preciso se esforçar por eles. Envolvem uma jornada. Não são dados na saída, nem podem ser considerados como um direito. Avraham iria deixar para trás as coisas que formam a maioria do povo e as pessoas que elas são, e lançar os alicerces para um país, um lar judaico e uma estrutura familiar, responsável não por forças econômicas, anseios biológicos e conflitos psicológicos, mas para a palavra e a vontade de D’us.

Lech Lecha nesse sentido significa estar preparado para fazer uma jornada com frequência solitária: “Vá por si mesmo”. Ser um filho de Avraham é ter a coragem de ser diferente, desafiar os ídolos da época, quaisquer que sejam os ídolos e qualquer que seja a época. Numa era de politeísmo, significa ver o universo como o produto de uma só vontade criativa – e portanto não sem sentido, mas coerente e significativa. Numa era de escravidão significava recusar-se a aceitar o status quo em nome de D’us, mas sim desafiá-lo em nome de D’us. Quando a força era adorada, isso significava construir uma sociedade que cuidava dos oprimidos, das viúvas, dos órfãos e estrangeiros. Durante séculos nos quais a massa da humanidade esteve mergulhada na ignorância, significava honrar a educação como a chave à dignidade humana e criar escolas para prover instrução universal.

Quando a guerra era o teste da humanidade, significava lutar pela paz. Na era de individualismo radical como hoje, significa saber que não somos aquilo que temos mas aquilo que compartilhamos; não aquilo que compramos mas aquilo que damos; que há algo mais elevado que apetite e desejo – ou seja, a chamada que vem até nós, como foi até Avraham, de fora de nós mesmos chamando-nos para fazer uma contribuição ao mundo.

“Os judeus”, escreveu Andrew Marr, “realmente têm sido diferentes; eles enriqueceram o mundo e o desafiaram”.

É aquela coragem para viajar sozinho se necessário, ser diferente, nadar contra a corrente, falar numa era de relativismo sobre os absolutos da dignidade humana sob a soberania de D’us, que nasceu nas palavras Lech Lecha.

Ser judeu é estar disposto a ouvir a voz firme, baixa da eternidade nos pedindo para viajar, mover-nos, seguir em frente, continuando a jornada de Avraham rumo àquele destino desconhecido no longínquo horizonte da esperança.

Rabino Jonathan Sacks z”l – É ex rabino-chefe da Inglaterra e da Comunidade Britânica. Para ler mais artigos e ensinamentos do lorde e rabino Jonathan Sacks, ou para participar de sua lista de e-mails, visite www.rabbisacks.org. Mais de Jonathan Sacks | RSS

Fonte: https://pt.chabad.org/library/article_cdo/aid/4535797/jewish/Quatro-Dimenses-da-Jornada.htm

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