A MUTAÇÃO DA LINGUAGEM NAS GUERRAS INACABADAS – PAULO ROSENBAUM
Vivemos um daqueles momentos históricos graves, onde é proibitivo invocar gradações, escamoteamentos, ou soluções intermediárias. De qualquer forma, a volta ao status quo anterior do mundo está descartada. Para nosso infortúnio o que está sendo apresentado no menu reduziu-se à duas opções: a autocracia dos populistas totalitários e o direito da humanidade à liberdade.
Minha avó, de saudosa memória, nasceu na cidade de Chernwitzi e ainda criança teve que fugir da região que pertencia à Ucrânia. Fugiram do dia para noite, deixando tudo para trás quando os cossacos — também conhecidos como russos brancos — assassinaram seu pai, meu bisavô, dentro de casa, com um tiro na cabeça, Eram agentes antissemitas do czarismo realizando mais um pogrom (massacres sistemáticos contra populações judaicas).
Cem anos depois, Wladimir justificou sua nada secreta sanha expansionista recorrendo à expressão “desnazificar” a Ucrânia. Ora, diante de tão nobre ideal, a denúncia merece análise. Ela nos obriga a examinar o contexto contemporâneo do uso do termo “nazista”. Ele tem sido bastardizado, distorcido, banalizado, mal utilizado, e , como se não bastasse, usado de forma pervertida. O termo nazista foi semanticamente adulterado, linguisticamente vilipendiado, e sob estas mutações o termo ressurge agora como uma expressão polissêmica, com significados tão expandidos que compromete sua inteligibilidade. Na estratégica boca de Putin significa uma coisa. Na boca dos vociferadores neonazistas, outra. Naqueles que se dizem influenciadores nativos que recentemente pediram a legalização de agremiações de corte eugênico, uma terceira acepção.
E essa mutação de significados nos vocabulários tem sido expandida para boa parte dos slogans acriticamente propagados pelas mídias. Usa-se com elástica indulgência expressões como “genocídio” e “fascista” “comunista” entre outras. Por que e em qual sentido? Muitas vezes os glossários vem sendo empregados sem o rigor necessário, sem consenso. Vale dizer, são gerados por comitês autorreferentes, nas cúpulas políticas, universidades ou redações, e, em sua maioria, são contrários ao entendimento da opinião pública.
Tome-se como exemplo o atual “presidente” russo – 30 anos no poder e sem sinais de que será destronado ou sofrerá uma oposição viável. Tem sido eleito através de eleições livres e limpas? Como isso tornou-se possível? A fórmula pode ser encontrada no best-seller “Manual Autocrático do Neo-Czarismo Esclarecido” (livro esgotado na América Latina): concentração de poder, contornar o rodízio de governo com a camuflagem de postes, sob dificuldades invocar permanentes ameaças à ordem democrática, enunciar inimigos artificiais, manter o centralismo partidário disfarçado de diversidade política e regulamentar eleições nas quais os eleitores e instituições independentes não conseguem auditar. Tudo isso sob o beneplácito das centrais únicas de jornalismo. No caso da Rússia, espontânea ou compulsoriamente, contar com a imprensa raramente crítica, e domestica-la para que se comporte de forma particularmente dócil com o poder.
Nas manobras executadas durante as guerras inacabadas a mobilização da linguagem sempre foi usada para exaltar determinados mantras. Eles magnetizam as estruturas passionais da audiência. E a fragmentação das nomenclaturas cria emaranhados para dificultar a identificação das verdadeiras tendências políticas.
O caos linguístico construído visa ludibriar a opinião pública, antes que esta possa ser devidamente esclarecida sobre a real índole e orientação política dos candidatos. Alguns políticos são exímios mestres nessa tática de camuflagem, outros, nem chegarão a perceber que ela se encontra disponível.
Tudo isso se reflete no controle do discurso e no uso da linguagem como manipulação. Domínio que transcende a mera retórica e que costuma invadir púlpitos nos pleitos e nas campanhas de guerra. Trata-se de uma instrumentalização que exorta as massas sedentas por aderir à causas que, não raramente, são contrárias aos seus próprios interesses.
Várias análises políticas coincidem em um ponto: as instituições estão sob risco. E nos últimos dias, enquanto o Conselho de Segurança das Nações Unidas esteve reunido — contando com a abstenção da China e Índia, a resolução condenando a Rússia foi vetada pela Rússia — mísseis e bombas continuavam atingindo a população civil da Ucrânia. Calcula-se que será a pior crise de refugiados desde o fim da segunda guerra mundial. Simultaneamente o “presidente” venezuelano, o “presidente” aiatolá iraniano e um partido brasileiro lançaram manifestos de repúdio à injustificável agressão ucraniana contra os blindados russos.
Tiranos e totalitarismo tem seus defensores, por isso é preciso reconhece-los com antecipação, esmiuçá-los com precisão, expô-los com coragem. O paradigma indiciário nos ajuda a saber como costumam agir: ameaçam regular a mídia, amordaçar a liberdade de expressão, suprimir a polifonia de vozes, e, finalmente, impor sua hegemonia e seus caprichos contra as vontades individuais dos súditos. Não raramente, disfarçados de porta-vozes da salvação nacional, arautos da unificação heróis da pátria, e ufanistas da gema.
Neste ponto, ainda não sabemos como o imprognosticável futuro nos surpreenderá, mas não é apenas a reputação do mundo ocidental que está em jogo, mas toda estrutura cultural que organizou a civilização no pós guerra. Assimilamos passivos a erudição fútil “from Plato to Nato” ludibriados com a tese do fim da história. Recomenda-se acionar a memória sempre que os experts opinarem.
Vivemos um daqueles momentos históricos graves, onde é proibitivo invocar gradações, escamoteamentos, ou soluções intermediárias. De qualquer forma, a volta ao status quo anterior do mundo está descartada. Para nosso infortúnio o que está sendo apresentado no menu reduziu-se à duas opções: a autocracia dos populistas totalitários e o direito da humanidade à liberdade.
Se o ocidente não escolher a última, e agir de acordo oferecendo apoio incondicional ao bravo povo ucraniano, colheremos bem mais do que a fome e anomia.
Colheremos Gulags.
Nota: matéria publicada no Estadão
https://brasil.estadao.com.br/blogs/conto-de-noticia/a-mutacao-da-linguagem-nas-guerras-inacabadas/
Médico e escritor, mestre em medicina preventiva, doutor em ciências (USP) e pós doutor em Medicina Preventiva (FMUSP) , autor de Outro Código da Medicina, Medicina do Sujeito, Novíssima Medicina, Entre Arte e Ciência, as bases hermenêuticas da homeopatia. Na literatura publicou os romances “A Verdade Lançada ao Solo” (Ed. Record, 2010), “Céu Subterrâneo” (Perspectiva, 2016), “A Pele que nos Divide” (Poesia – Quixote-Do, 2018). Desde 2013 edita e publica o Blog “Conto de Notícia” no Jornal O Estado de São Paulo.