O Nascimento do ódio Mais Antigo do Mundo – Rabino Jonathan Sacks Z’L

Se Lavan é o eterno paradigma do ódio às minorias conspícuas, Yaacov é o paradigma eterno da capacidade humana de sobreviver, superar-se ao ódio dos outros. Yaacov se torna a voz da esperança na conversa da humanidade, a prova viva de que o ódio nunca ganha e alcança a vitória, mas a liberdade sim.

10 de Dezembro de 2016 (10 de Kislev de 5777)

“Vá e aprende o que Lavan (Labão), o arameu, quis fazer a nosso pai Yaacov. O faraó fez seu decreto apenas sobre os homens, enquanto Lavan procurou destruir a todos”.

Essa passagem da Hagadá de Pessach – evidentemente baseada na parashá desta semana – é extraordinariamente difícil de entender. Primeiro, é um comentário sobre a frase em Devarim, Arami oved avi. Como a maioria esmagadora dos comentaristas apontam, o significado dessa frase é “meu pai era um Arameu errante”, uma referência a Yaacov, que escapou de Aram [= Síria, uma referência a Haran onde Lavan viveu], ou a Avraham, que deixou Aram em consequência do chamado de D’us para viajar para a terra de Canaã. Isso não significa que “um arameu [= Labão] tentou destruir meu pai”.

Alguns comentaristas leram dessa forma, mas quase certamente eles só o fizeram por causa dessa passagem na Hagadá. Em segundo lugar, em parte alguma na parashá encontramos que Lavan realmente tentou destruir Yaacov. Ele o enganou, tentou explorá-lo e o perseguiu quando ele fugiu. Quando estava prestes a alcançar Yaacov, D’us lhe apareceu num sonho à noite e disse:

· “Tenha muito cuidado para não dizer nada, bom ou mal, a Yaacov” (Bereshit 31:22).

Quando Lavan se queixa do fato de que Yaacov estava tentando escapar, Yaacov responde: “Vinte anos trabalhei para você em sua propriedade – quatorze anos por suas duas filhas, e seis anos para parte de seus rebanhos. Você mudou meu salário dez vezes!” (31:41).

Tudo isso sugere que Lavan se comportou escandalosamente contra Yaacov, tratando-o como um trabalhador não remunerado, quase um escravo, mas não que ele tentou “destruí-lo” – para matá-lo como o Faraó tentou matar todos os filhos israelitas.

Terceiro: a Hagadá e o serviço do seder no qual surge o texto, é sobre como os egípcios escravizaram e praticaram genocídio lento contra os israelitas e como D’us os salvou da escravidão e da morte. Por que procurar diminuir toda essa narrativa dizendo que, na verdade, o decreto do Faraó não era tão ruim, já que o de Lavan foi pior? Isso parece não fazer sentido, nem em termos do tema central da Hagadá, nem em relação aos fatos reais registrados no texto bíblico. Como, então, devemos compreendê-lo?

Talvez a resposta seja essa. O comportamento de Lavan é o paradigma dos antissemitas através dos tempos. Não foi tanto ao que Lavan fez que a Hagadá está se referindo, mas ao que seu comportamento deu origem, século após século. Como assim?

Lavan começa fingindo-se de amigo. Ele oferece refúgio a Yaacov quando está fugindo de Esav, que jurou matá-lo. No entanto, verifica-se que seu comportamento é menos generoso e muito mais interesseiro e calculista. Yaacov trabalha para ele sete anos por Rachel. Então, na noite de núpcias, Lavan substitui Rachel por Lea, de modo que, para casar com Rachel, Yaacov foi obrigado por Lavan a trabalhar para ele, em pagamento, por mais sete anos.

Quando seu filho com Rachel, Yossef, nasceu, Yaacov tentou partir com sua família. Lavan protestou. Yaacov trabalhou mais seis anos, e então percebeu que a situação era insustentável. Os filhos de Lavan o acusaram de ter enriquecido às expensas de Lavan. Yaacov percebe que o próprio Lavan está se tornando hostil.

Rachel e Lea concordam, dizendo: “Ele nos trata como estranhas! Ele nos vendeu e gastou o dinheiro!” (31:14-15).

Yaacov percebe que não há nada que ele possa fazer ou dizer que persuadirá Lavan a deixá-los partir. Ele não tem escolha a não ser fugir. Lavan então o persegue e, se não fosse o aviso de D’us na noite anterior à sua chegada, não há dúvida de que ele teria forçado Jyaacov a voltar e viver o resto de sua vida como seu empregado sem remuneração. Conforme ele diz a Yaacov no dia seguinte: “As filhas são minhas filhas! Os filhos são meus filhos! Os rebanhos são meus rebanhos! Tudo o que você vê é meu!” (31:43).

Acontece que tudo o que ele aparentemente tinha dado a Yaacov, em sua própria mente, ele não tinha dado de fato. Lavan trata Yaacov como sua propriedade. Ele é uma não-pessoa. Em seus olhos, Yaacov não tem direitos, não há existência independente. Ele deu a Yaacov suas filhas em casamento, mas ainda afirma que elas e seus filhos pertencem a ele, não a Yaacov. Ele ainda insistiu que “os rebanhos são os meus rebanhos”.

O que desperta sua raiva é que Yaacov mantém sua dignidade e independência. Diante de uma existência impossível como escravo de seu sogro, Yaacov sempre encontra uma maneira de continuar. Sim, ele foi enganado por sua amada Rachel, mas ele trabalha para que ele possa se casar com ela também. Sim, ele foi forçado a trabalhar por nada, mas ele usa seu conhecimento superior na criação de animais para propor um acordo que lhe permitirá construir rebanhos próprios, os quais lhe permitiriam manter o que é agora uma grande família. Yaacov recusa-se a ser derrotado. Envolvido por todos os lados, ele encontra uma saída.

Essa é a grandeza de Yaacov. Seus métodos não são aqueles que ele teria escolhido em outras circunstâncias. Ele tem que superar um adversário extremamente esperto. Mas se recusa a ser derrotado, ou esmagado e desmoralizado. Em uma situação aparentemente impossível, Yaacov mantém sua dignidade, independência e liberdade. Ele não é escravo do homem. Lavan é, de fato, o primeiro antissemita. Depois de anos e anos os judeus procuraram refúgio daqueles que, como Esav, procuraram matá-los. As nações que lhes deram refúgio pareciam, a princípio, benfeitoras. Mas elas exigiram um preço. Elas viram nos judeus pessoas que as tornariam ricas. Onde quer que os judeus fossem, trouxeram prosperidade aos seus anfitriões. No entanto, eles se recusaram a ser meros bens móveis. Eles se recusaram a ser detidos. Eles tinham sua própria identidade e estilo de vida. Eles insistiram no direito humano básico de ser livre.

As sociedades de acolhimento então se voltaram contra eles. Alegaram que os judeus as estavam explorando, em vez do fato, que eram elas que na verdade estavam explorando os judeus. E quando os judeus conseguiram, as acusaram de roubo: “Os rebanhos são meus rebanhos! Tudo o que você vê é meu!” Elas esqueceram que os judeus haviam contribuído maciçamente para a prosperidade nacional. O fato dos judeus terem guardado respeito próprio, alguma independência, que eles também haviam prosperado, não as tornou apenas invejosas, mas irritadas. Foi quando se tornou perigoso ser judeu.

Lavan foi o primeiro a mostrar essa síndrome, mas não o último. Aconteceu novamente no Egito depois da morte de Yossef. Aconteceu sob os gregos e romanos, os impérios cristãos e muçulmanos da Idade Média, as nações europeias do século XIX e início do século XX e depois da Revolução Russa.

Em seu fascinante livro World on Fire, Amy Chua argumenta que o ódio étnico sempre será dirigido pela sociedade de acolhimento contra qualquer minoria conspícua e bem-sucedida. Todas as três condições devem estar presentes:

1. O grupo odiado deve ser uma minoria ou as pessoas terão medo de atacá-lo;

2. Deve ser bem sucedido ou as pessoas não vão invejá-lo, apenas sentir desprezo por ele;

3. Deve ser notável ou as pessoas não darão a mínima atenção.

Os judeus tendiam a se encaixar em todos os três. É por isso que eles foram odiados. E começou com Yaacov durante sua estadia com Lava. Ele era uma minoria, superada em número pela família de Lavan. Ele foi bem sucedido, e foi notável: você podia vê-lo olhando para seus rebanhos. O que os sábios estão dizendo na Hagadá agora se torna claro. O faraó era um inimigo único dos judeus, mas o espírito de Lavan persiste em existir, de uma forma ou de outra, época após época. A síndrome ainda existe hoje. Como observa Amy Chua, Israel no contexto do Oriente Médio é uma minoria conspícua e bem-sucedida. É um país pequeno, uma minoria; É bem sucedido e o é de maneira evidente. De alguma forma, um pequeno país com poucos recursos naturais, excede seus vizinhos. O resultado é inveja que se transforma em raiva , que se torna ódio. Onde começou? Com Lavan.

Dito isso, começamos a ver Yaacov sob uma nova luz. Ele representa as minorias e as pequenas nações em todos os lugares. Yaacov é a recusa de deixar grandes potências esmagar os poucos, os fracos, os refugiados. Yaacov recusa-se a definir-se como um escravo, propriedade de outra pessoa. Ele mantém sua dignidade e liberdade interior. Ele contribui para a prosperidade de outras pessoas, mas ele derrota todas as tentativas de ser explorado. Yaacov é a voz que diz: “Eu também sou humano. Eu também tenho direitos. Eu também sou livre.”

Se Lavan é o eterno paradigma do ódio às minorias conspícuas, Yaacov é o paradigma eterno da capacidade humana de sobreviver, superar-se ao ódio dos outros. Yaacov se torna a voz da esperança na conversa da humanidade, a prova viva de que o ódio nunca ganha e alcança a vitória, mas a liberdade sim.

Referência:
Texto original: “THE BIRTH OF THE WORLD’S OLDEST HATE” por Rabino Jonathan Sacks. Tradução Rachel Klinge Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema


Rabino Jonathan Sacks z”l

Rabino Lord Jonathan Sacks foi um líder religioso internacional, respeitado filósofo e intelectual. Autor de mais de 30 livros, Rabbi Sacks recebeu vários prêmios em reconhecimento ao seu trabalho. Ele foi destinatário de 18 doutorados honorários, foi condecorado por Sua Majestade a Rainha em 2005 e fez um Life Peer, tomando seu assento na Câmara dos Lordes em outubro de 2009.

Ele serviu como Rabino Chefe das Congregações Hebraicas Unidas da Common wealth de 1991 a 2013. Para ler mais escritos e ensinamentos de rabino Jonathan Sacks, visite o site: www.rabbisacks.org .

Fonte:

https://pt.chabad.org/library/article_cdo/aid/4939528/jewish/O-Nascimento-do-dio-Mais-Antigo-do Mundo.htm#utm_medium=email&utm_source=1616_revista_pt&utm_campaign=pt&utm_content=content

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