DA TOLERÂNCIA E DA DECÊNCIA – PAULO ROSENBAUM

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A desconfiança que ecoa não é portanto, e de uma vez por todas, contra a ideia do “mais médicos”. A resistência se refere especificamente ao “uso da saúde como instrumento caça-votos” e as ousadias inconsequentes.


 

Lista de cubanos é divulgada antes do resultado de avaliação de curso

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Quem insiste em ir contra os consensos. Alguns? Poucos? Os inconformados? Mas, e se muitos desses consensos estiveram costurados às custas de um alimento venenoso? E se for nutriente premeditadamente adicionado para sustentar a confusão e as suspeições. Preparado com astúcia, está temperado com a invencível capacidade mitômana de quem só pensa em ganhar. E, graças a ela, tornou-se possível vender um produto obscuro, como se ele fosse o fruto da maturidade administrativa.

O governo poderia adotar uma estratégia mais civilizada, crível e consensual para expor, debater e depois oferecer o programa “mais médicos” à sociedade. E por que não o fez? Fácil explicar: grande jogada de marketing. Além do ganho secundário, que têm gerado, disseminado e potencializado o produto, junto com seu  trunfo político. Pelo menos momentâneo.

Faz faz algum tempo que a estratégia sinistra têm sido atiçar a cisão, aguçar a litigância e a rixa entre grupos sociais. Ao constranger médicos e entidades médicas e, indiscriminadamente, joga-las contra a opinião pública a administração federal já nem se preocupa em esconder seu verve ardiloso. Nada de moralismo: nem os cubanos são humanistas natos nem os nacionais são seus antagonistas.

A estratégia, óbvia: demonizar os médicos brasileiros como se fossem todos xenófobos, racistas, orgulhosos e insensíveis. Como se estivessem alinhados num boicote sistemático para subverter o grandioso plano saneador do Estado. Para os autocratas de Brasília é a burguesia leniente do avental branco que se recusou atender ao chamado de emergência do estado de calamidade da saúde pública. Vê-se que não foi difícil fazer com que muitos articulistas mordessem a isca. Inúmeros se posicionaram com a arma mais débil e covarde num debate: a generalização.

Se pelo menos as pessoas pudessem enxergar menos as árvores e mais a floresta, identificariam os dedos da manipulação, e a aposta na calúnia. Dados empíricos evidenciam: a maioria significativa dos médicos não é elitista, e não ganha fortunas no sudeste maravilha. Expressiva parte deles são obrigados a se subdividir em muitas atividades – apenas 1% dos médicos da cidade de são Paulo sobrevivem somente de seus consultórios — não porque são ávida dolars, mas é que ao contrário das várias categorias de servidores públicos nunca tiveram uma carreira definida e regulamentada pelo Estado brasileiro. Grande contingente de médicos não só não tem aflição em atender o povo, pelo contrário, entendem que o SUS e a atenção primária é que devem ser prioridades na saúde pública.

Vale dizer, havia alternativas às resoluções expressas. Medidas que já estiveram colocadas – de alcance transpartidario e plurigovernamental – e talvez por isso mesmo jamais colocadas em prática. Exemplos evidentes da reiterada negligência do poder. O governo, de forma pouco republicana, insistiu porém em ignora-las, desarticula-las, esvazia-las. Ou então coopta-las, claro, à serviço do partido.

Ao encobrir décadas de ineficiência administrativa, o regime monopartidário que aparelhou o poder, resolveu fatiar para depois ir engolindo  outros poderes para impor, mais uma vez, sua vontade contra evidentes impossibilidades técnicas e operacionais. Tudo o que vale é bola na urna.

Infelizmente todas as objeções e críticas ao programa “mais médicos” foram ouvidas como lamento corporativo. É fato que não ajudou muito os ridículos episódios de discriminação de médicos contra médicos que desembarcaram de outros países a fim de dar sua contribuição para melhorar nossos indicadores de saúde. A culpa por serem usados e, eventualmente explorados, não é deles.

O problema da formação médica é complexo, extenso e profundo demais para ser resolvido através de decretos e medidas de ocasião. E, jamais, prescindindo da academia e das associações de ensino médico que, há décadas, se debruçam para estudar e debater o tema. A desconfiança que ecoa não é portanto, e de uma vez por todas, contra a ideia do “mais médicos”. A resistência se refere especificamente ao “uso da saúde como instrumento caça-votos” e as ousadias inconsequentes. E ainda que seja muito difícil defini-la em termos absolutos, trata-se, nesse caso, de uma claríssima afronta à ética. Tema explorado por Hipócrates em seu texto “Sobre a decência” que, por sua impressionante contemporaneidade, mereceria ser aspergido sobre todos nós.


PAULO ROSENBAUM – Médico e escritor, assina a coluna semanal “Coisas da Política”, no JB – Jornal do Brasil. Saiba mais.

rosenb@netpoint.com.br

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