NÃO BASTA VIVER? – PAULO ROSENBAUM

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Nossa cultura vai virando uma tradição dos sem-tradição. Mas o que parece uma pueril simplicidade vai se tornando improvável no universo intelectual.

Nossa natureza gregária e o medo fazem com que ainda precisemos pertencer aos grupos, às tribos, ou clubes ou classes

para fazer parecer que há qualquer sentido na vida e para a vida.

 

Diz-se que Montaigne respondeu a uma carta cheia de lamúrias e imprecações existenciais de um velho conhecido, e redarguiu com uma única frase que ofendeu o remetente à morte. O filósofo emendou, numa única frase, um ensinamento que deveria vir gravado nos ímãs de geladeira ou no google glass:

— E não te basta viver ?

Por que a leitura de algumas poesias e de muitos romances nos dá a sensação de incompletude? Aliás, o que é esta sensação que assola a maioria das pessoas e que muitos identificam com o vazio existencial? Há um nome? É possível defini-la através da elipse, da síntese, da condensação?

Também não se pode apontar os limites do tempo para explicar uma espécie de lacuna final nas obras clássicas. Pode ser que seja um simbolismo dos nossos ciclos de vida. Mas também é cogitável que sejam os limites das histórias que contamos uns para os outros.

Parece que não nos basta mais, ou nunca. Para ninguém. A vida, ela mesma, parece dessignificada, e isso explica em parte a banalização da violência e dos conflitos tribalistas presentes na raiz das barbáries do XX e do XXI. Da Síria ao Congo, da China ao Kosovo.

Nossa cultura vai virando uma tradição dos sem-tradição. Mas o que parece uma pueril simplicidade vai se tornando improvável no universo intelectual. Nossa natureza gregária e o medo fazem com que ainda precisemos pertencer aos grupos, às tribos, ou clubes ou classes para fazer parecer que há qualquer sentido na vida e para a vida. É como se estivéssemos obrigados a adotar perspectivas exógenas para restaurar nossa improvável completude.

Tudo está sendo feito e recriado todo tempo o tempo todo.

E como a vida também pode ser comparada a uma editoração, é o quanto falta para dar o acabamento que importa? Ou as páginas manuseadas e percorridas?

A sensação de que “não é bem por aí” fez longa trajetória até chegar aos nossos dias. Nossas obras são inacabadas como as páginas que, segundo Jorge Luis Borges, jamais chegarão à perfeição. Não se trata de uma estratégia de artista. É que o inacabado imita Deus em performance. Seguindo a tradição judaica — e este é o significado do ano novo — tudo está sendo feito e recriado todo tempo o tempo todo. O incessante não significa acúmulo mas renovação radical, despojamento absoluto. É como se precisássemos escapar do útero todas as manhãs. Daí a imperfeição intrínseca de toda obra, humana, natural, sobrenatural, incluindo as coisas de natureza indefiníveis.

Mesmo assim, por que nos bastaria viver como um mérito em si mesmo? Será que o otimismo e a alienação controlada merecem controle, discriminação? Esquerda e direita, ambas escravas do monotrilho, partilham do mesmo mau humor endógeno: estão escravizadas pela herança materialista. Mas eis um monitoramento que vai para bem além da política. Fomos tão intensamente colonizados por ideias e teorias abstratas tão variadas que já não conseguimos nos desvincular para adotar uma síntese pessoal das coisas. Estamos amarrados para criar. Por isso mesmo a teimosia é uma bênção.


PAULO ROSENBAUM – médico e escritor. Saiba mais.

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