DISCUTINDO A RECORRÊNCIA DO TEMA:– “A EXTINÇÃO DA DIÁSPORA JUDIA” – POR JAYME VITA ROSO

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Em maio de 2013, o filósofo argentino Santiago Kovadloff (1942) escreveu alentada obra sobre a questão e que, face ao reconhecimento do autor pela comunidade e pela intelectualidade não judaica, insinuou-me a fazer uma breve resenha da sua obra, de como colocou a questão e, também, sobretudo, os “pensadores da diáspora diante de Israel e da dispersão do povo judeu”.


283_especial_2_2 1. A questão proposta no temário destas linhas é tema recorrente ainda hoje em dia e objeto de inúmeras discussões em todos os eventos ou em que é levantada, chegando até o ponto de ser tida em consideração a agonia da diáspora.

Em maio de 2013, o filósofo argentino Santiago Kovadloff (1942) escreveu alentada obra sobre a questão e que, face ao reconhecimento do autor pela comunidade e pela intelectualidade não judaica, insinuou-me a fazer uma breve resenha da sua obra, de como colocou a questão e, também, sobretudo, os “pensadores da diáspora diante de Israel e da dispersão do povo judeu”.

2. A obra do professor Santiago “A Extinção da Diáspora Judia”[1]cuidou do assunto em apreciação com muita proficiência, dando-lhe contornos bem definidos, graças a sua profunda cultura e, sem dúvida, a sua meditação resultante do seu próprio ser que engloba o filosofo, o ensaísta, o poeta, o autor de contos infantis e o fato de ser tradutor de literatura da língua portuguesa para o espanhol.Excusez-moi dupeu…

283_especial_2_3E não posso deixar de celebrar a citação contida no preâmbulo do livro, que proveio de um texto do Emmanuel Levinas, do seu livro “DificilLibertad” (sem menção dos dados da obra): “Interrogar-se a respeito da identidade judia já étê-la perdido. Porém, e, todavia, num certo sentido, seguir agarrando-se a ela. De outro modo, qualquer um se dispensaria de perguntar. Entre estes já, todavia,desenha-se o limite, tirando-se como numa corda tensa, sobre a qual se maneja, não sem riscos, o judaísmo dos judeus ocidentais”.

3. A abordagem do livro, como diz o próprio autor, é de natureza filosófica, porque, tratando-se “de um gesto filosófico proeminente e o de reintroduzir o efeito da interrogação no corpo de uma certeza ou de uma resposta consolidada que o rege, que está vigente e que decide o formato da inteligibilidade dominante”, porque “a filosofia é um ato interrogativo. Põe na tela do juízo a legitimidade ou a suficiência do saber imperante” e “rompe a ilusão da sinonímia entre palavra e coisa. Quebranta sua presunção de equivalência. Com ele, a filosofia provoca uma colisão conceitual entre aparência e verdade”. E continua o autor “seus conteúdos – os dessa colisão – hoje dizem, em meu caso, a respeito de Israel e a diáspora. Uma diáspora que, a meu entender, já não existe. Um Israel que não se impõe como centro da vida judia desde o momento em que foi rechaçado como pátria própria pela maioria dos judeus. O político, o histórico e o sociológico aqui importam como elementos postos em consideração de uma leitura que aspira a ser filosófica” (p. 13 e 14). Realista e consciente, Santiago não coloca na sua obra o ponto de vista israelita, passando a entender que a diáspora “afetada por seu desaparecimento como destino – pensa de si mesma e desde si mesma a respeito de tudo que a liga ao judaísmo, incluído Israel” (idem, p.14).

4. Pela própria natureza do objeto desta singela resenha, é dispensável, sob censura, que abordemos a genealogia do conceito de diáspora, ou uma leitura histórica da diáspora, tão bem cuidada naliteratura judaica ou não, nas obras de Stephane de Foix, Leon Poliakov, JosyEisenberg, Cecil Roth, A.S.Halkin, ShlomoSand, Martin Buber e Yitzhak Bael.

5. Com muita acuidade, Santiago, em apenas quatro páginas, consegue sintetizar e configurar o seu entendimento do que é ser judeu e qual o papel de Israel diante da riqueza do judaísmo diásporico. E transcrevo: “O pensamento judeu não deve se confundir com a tradição judia. Esta, para perdurar, requer, de modo preeminente, memória, repetição, costumes, liturgia. Aquele não pode sobreviver sem espírito crítico, sem criatividade, sem inovação, sem um substrato conceitual constante, assentado na originalidade e na liberdade interpretativa do Legado. E, sem um compromisso ético e pratico profundo, com o meio social amplo, de onde o judaísmo de cada comunidade teve lugar. O judeu se evidencia também no seu exercício cívico, ainda quando um e outro – o cívico e o judeu – não sejam nem necessitem ser homologáveis fora de Israel. O pensamento criador se exercita na assunção do legado, mediante sua exploração analítica e sua reformulação crítica, à luz das circunstancias vividas por cada pensador em seu momento e no seu lugar próprio” (p. 44 e 45).

6. Bem por isso, Santiago, como doravante daremos pinceladas sobre os pensadores da diáspora diante de Israel, a dispersão que ele catalogou como importante.

6.1 Consideremos, desde logo, o genial Emmanuel Levinas e suas obras citadas por Santiago. O que ele entendeu a respeito do assunto em questão. Santiago tomou de Levinas seu pensamento expresso nas obras “Difícil Liberdade”, “Reflexões acerca da educação judia”, “A assimilação de nossos dias”, “Israel e o universalismo”, “Como é possível o judaísmo”, para concluir, quiçá de forma até imperfeita, mas honesta intelectualmente, desta maneira: “Com que sonha Levinas? As tábuas da lei precedem as experiências da transgressão que elas condenam ou se inspiram nelas para apená-las? Parece obvio dizer, porém, se a ética é algo incondicionado, opera como um a priori sem dúvida com a experiência. Existe um mais além, trans-histórico da política, capaz de orientar a sua pratica? Sim, necessariamente, afirma Levinas, no que faz a Israel. O messianismo, assegura, tem que ser tanto sua fonte nutricial como sua meta. Não se trata de um projeto imanente à história, senão transcendente a ela. A singularidade política que Levinas a reclama a Israel é metafísica, e este reclamo, constante, que não claudica, é o que o impede de advertir que a consolidação da democracia no novo Estado só pode produzir-se, caso renuncie ao messianismo. Em verdade, diante da necessidade de decidir-se entre messianismo e democracia, Levinas não parece duvidar, sua opção é pelo messiânico. Não considera que a ética deva aprender nada da história, mesmo em troca, mas que a história aprenda tudo da ética. De uma ética independente desde a sua gênese, que os homens a devem acatar”(p. 80 e 81).

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6.2 Com León Rozitchner, na redenção histórica do judaísmo.

León é um filósofo argentino nascido na Província de Buenos Aires em 1924. Teve seus cursos superiores concluídos com a graduação em 1952. Estudou com personagens importantes da inteligência francesa da época, tais como Maurice Merleau-Ponty[2],Lucien Goldmann[3] e Claude Levi-Strauss[4], que foram seus mestres. Retornou à Argentina, mas foi obrigado a se auto exilar na Venezuela em 1976. Voltou a seu país em 1986 e, a partir de então, foi docente na Universidade de Buenos Aires, cidade em que faleceu em 2011. De suas obras destacam-se “Freud y los limites del individualismo burguês” (1972), “Perón, entre la sangre y el tiempo’ (1985) e “La cosa y la cruz: cristianismo y capitalismo” (1997). A posição desse grande intelectual argentino pode ser sintetizada no pensamento que Santiago bem resumiu: “Também nesse caso, como no israelita, a condição nacional absorve e se dissolve no diásporo. Porém, enquanto que a identidade israelita sobrevive, o judeu, na identidade nacional, nenhum israelita, esse fato –o ser judeu – está chamado a desaparecer e prospera no projeto revolucionário.A esquerda – argentina neste caso – ofereceu ao judeu a possibilidade de transcender o cenário encenado naquilo que até agora viveu, mediante a solução da diáspora, ou seja, um judaísmo sem raiz nacional”.

Rozitchner diz que não há a possibilidade de afirmar a agonia da diáspora: “A diáspora, assegura, em 1967, goza de memorável saúde. Não foi afetada pela modernidade, tampouco pela secularização. Menos ainda, com a criação do estado israelita. Alheia às demandas da história e da religião, a diáspora exerce, imutável, sua milenar função hegemônica e reacionária. Trata-se, pois, de terminar com ela. Longe está de ter desaparecido. É preciso que desapareça de uma vez. E, com ela, a diáspora como tal, essa realidade a que a religião se encarrega de impor uma ordem e um sentido. Assim o exige a revolução socialista em marcha, somente conciliável, no que faz ao judaísmo com a esquerda nacional israelita”(p. 93), pois em favor do projeto o pensador argentino não se detém em propor que se sacrifique todo judeu que se opõe à revolução (p. 96).

283_especial_2_56.3  Nahum Goldmann; o incerto futuro do judeu (p. 97 a 116).

Lituano, nascido em 1895, mudou-se para a Alemanha em 1900. Graduou-se em direito e filosofia. Conseguiu superar a perseguição nazista e, depois da Segunda Guerra, trabalhou com David Ben-Gurion, em favor da criação do Estado Judeu sem deixar de enfatizar a necessidade de, diplomaticamente, conseguir-se um acordo com os árabes. Ao mesmo tempo que fundou e presidiu o Congresso Judeu Mundial, também dirigiu a Organização Sionista Mundial. Mesmo após a vitória de Israel em 1967, sempre propugnou pela restituição dos territórios ocupados aos árabes. Escreveu muitos artigos e livros, dos quais destacamos “O futuro de Israel” (1970) e “A Ideologia Sionista e a realidade de Israel” (1978). Nahum Goldmann faleceu na Suíça em 1982.

Esse personagem, além das obras mencionadas, também é autor do livro “Aonde vai Israel? ”, que foi muito discutido, apreciado, criticado e levado em consideração na década de 70, quando provocou o público ao publicar outra obra, com o título “O paradoxo judeu”[5].

A leitura que Goldmann fez da diáspora, com a criação do estado de Israel, pode ser resumida muito bem com a interpretação que lhe dá Santiago: a diáspora e o espírito judeu são consubstanciais, afirma o pensador. A diáspora não é um fato circunstancial. Não é definida a sua duração, por mais notável que seja, senão a sua vivacidade. Isso a implica como signo emblemático do judeu. A riquezaperpassa toda sua história, mesmo na adversidade. E essa riqueza, para Goldmann, não é outra coisa senão a riqueza da força subterrânea com que segue, operando o alento religioso em sua pujança cultural.

A diáspora, em termos de vitalidade, é um órgão essencialmente ativo do corpo judeu no todo. De nenhuma maneira o sionismo a superou. Por isso, o pensador mostra-se descrente ante a presunção de que a existência do estado hebreu possa vulnerar a fortaleza da diáspora.

Ele se transformou num crítico intransigente da política israelita. E nunca será demais repetir que, para Goldmann: “a condição judia se define como um posicionamento fundamentalmente cultural” pois, para ele, a existência do Estado é absolutamente necessária pois assim é enquanto “não se sustente o seu desenvolvimento na subestimação dos valores tradicionalmente distintos da alma judia” (p.109).

De outro lado, Santiago, discutindo o pensamento de Goldmann e discordando dele, pois entende que a diáspora está terminada, diz que “outra coisa a diáspora será, para o judeu, se se renova na geografia do que até ontem foi dispersão”. Concluindo, Israel não tem dúvidas com o passado judeu. Tem sim, com o futuro do judaísmo. Da mesma forma que o judaísmo, até a criação do estado, se chamou diásporo”(p. 116).

6.4 Robert Misrahi ou o messianismo sem Deus (p.117 a 138).

Esse filósofo (1926), professor emérito da Universidade de Paris, é considerado um dos maiores conhecedores da obra de Baruch Spinoza.

Sua vida foi permeada de intensa participação nos ambientes culturais franceses, inclusive participando da revista Les Temps Modernes, criada e dirigida por Jean Paul Sartre. Com Jean Daniel, participou durante muitos anos como articulista da revista Le Nouvel Observateur. Figuram entre seus livros, “A condição reflexiva do homem judeu” (1963), “Martin Buber, filosofo da relação” (1968), “O desejo e a reflexão na filosofia de Spinoza” (1972), “Marx e a questão judia” (1972), “Tratado da Felicidade I, II e III”(1981, 1984 e 1987) e “Existência e democracia” (1995).

Com Mizrahi, a questão do messianismo sem Deus, na aparente contradição em termos é, na verdade, uma proposta criada por esse filosofo. E Santiago esclarece: “sem Deus e sem estado. Apartado da ortodoxia, como do ideal nacionalista. Um judaísmo que se quer e se sabe polêmico. Consagrado à obtenção de novas perspectivas. Criador de novas concepções para velhos símbolos. Um judaísmo que se empenha em reconsiderar os conteúdos da tradição à luz das necessidades inéditas de quem se afirma como judeu sem inscrever-se na identidade israelita em nenhuma das formas que assume o teísmo. Um judaísmo para uma diáspora que não se reconhece residual por trás da criação do estado de Israel. Um judaísmo atento a seus conceitos diversos e às demandas que neles o formula a seu tempo. Um judaísmo para o qual a diáspora é diásporas, e o judaísmo, judaísmos. Um judaísmo, em suma, para o qual Israel, opaco como membro desse corpo plural, mas, como se presumida configuração paradigmática, nem menos tão hegemônica a que se devam ver-se subordinadas às demais concepções e práticas dos judeus. ”

Um pouco do seu pensamento: a) O judaísmo laico não é uma doutrina, nem um trabalho consumado nem pré-estabelecido. Na verdade, é um empreendimento que tomará a forma de quem o levará adiante, pois “resgatada a prisão religiosa que o manietou durante séculos, e da condenação do sionismo à outrance, que exige o seu desaparecimento, com a criação do Estado, a diáspora laico-messiânica deve afirmar-se, construindo sua própria modalidade. O novo estatuto da diáspora –esse que se propõe a perfilar o messianismo laico – deve fazer-se evidente mediante o seu destacar-se da sua aspiração específica. Por isso, Mizrahi o chama de “invenção” (p.119 e 120).

b) Diz Santiago que “a acusação que Mizrahi faz cair sobre o sionismo é perversa: não tolerou, assegura, que a diáspora tenha sobrevivido à criação do Estado de Israel. Renega o filósofo a equivalência entre Estado e Nação judia. Esse último conceito é antigo e venerado. Mizrahi o retoma” (p.125 e 126).

c) Avançando, Santiago acolhe e interpreta o pensamento de Mizrahi, porque detectou que a interpretação da tradição judia tem três características: racional, laica e histórica. E por isso, o mesmo Santiago rompe com o dogmatismo e foca Mizrahi, dizendo que “o judaísmo diásporo, remodelado pelo impulso laico-messiânico, aspira brindar sua versão de patrimônio comum, recolocando a seu alcance e redefinindo a leitura de seus conteúdos” (p.130).

Terminando, após discutir com bastante propriedade o pensamento de Mizrahi, focalizamos a lúcida interpretação fornecida por Santiago: “ao não demorar-se no sintomático e conjuntural, ao deslizar com extrema celeridade até o programático, Mizrahi subestima o fundamento do conflito e racionaliza com amplitude a solução. O paradoxo do seu pensamento é que, ao propor a necessidade de um novo ponto de partida, seu pensamento admite que algo prévio concluiu para os judeus da dispersão.Essa conclusão, porém, é enfatizada por ele ao não considerar a profundidade dos seus efeitos com o devido cuidado. Dá-se conta com clareza que essa questão se esvaneceu. Sem embargo, esse reconhecimento não indica que é unicamente do seu interior, de onde pode prover a íntima validade, a validade indiscutível de um caminho alternativo aos que deixaram de percorrê-lo. Do seu interior e não dos da Escola Politécnica de Paris, mas filosofia deensinamentos de um pensamento autêntico, porém, obtido pela necessidade de dar, sem demora, um passo a diante” (p. 138).

6.5 a) Estamos agora colocando em cena um escritor polêmico que tem causado embates na França. Trata-se de Alain Finkielkraut. Santiago dá uma panorâmica biográfica dele que merece ser traduzida. “Filho único de um judeu polonês deportado a Auschwitz, nasceu em Paris em 1949. Rapidamente se fez notar pelo espírito polêmico de seus ensaios, ademais da excelência de sua prosa. Professor de filosofia da Escola Politécnica de Paris, onde dá aulas de História das Ideias, pratica jornalismo preocupado com a barbárie do mundo moderno e não esconde o seu ceticismo diante do progresso. “A derrota do pensamento”, obra de 1987, é, nesse sentido, bastante significativa. Expressou, também, sua inquietude ante o surgimento de um novo antissemitismo, que, à diferença do tradicional, de extrema direita, seria progressista e de esquerda. Nessa linha de preocupações se situa: “Em nome do outro, Reflexões sobre o antissemitismo que vem” (2003). Também publicou, entre outros, “A humanidade perdida” (1996) e “A sabedoria do amor” (1984) ”.

b) Santiago, no capitulo 9, que aborda Finkielkraut (p. 139 a 159), apresenta a visão dele que considera a inconsistência do judeu contemporâneo.Propõe duas forças que se entrechocam na tentativa de caracterização do judeu diásporo: uma antissemita e a outra, sionista. Criativo, apresenta uma terceira característica: em sendo da diáspora, trata-se de “um judeu imaginário”. Santiago observa as três proposições de Finkielkraut, o qual sustenta o seu ponto de vista também em Derrida além do curioso livro de Schlomo Sand, “Como o judeu foi inventado”. Em todo esse trajeto, Finkielkraut compartilha sua criação de “o judeu imaginário” com Peter Sloterdijk.

Não por menos, teria que voltar também a Levinas e a Freud na concepção de “judeu imaginário”, que chama “quase insubstancial, apagado, borrado, sem identificação nenhuma com o sionismo, mas que se proclama judeu e se reivindica como tal”.É um paradoxo, mas não há como contestá-lo;no entanto, resistir a deixar de chamar-se como judeu e agarrar-se a esta palavra como um náufrago a uma boia, implica de algum modo, como quer Emanuel Levinas, íntima disposição a seguir sendo judeu. Se existe indigência neste gesto, também há uma decisão. A seu modo, este gesto é um signo de vida. Talvez um indício de vitalidade promissora colocada por parte de quem já não parece guardar, no seu conhecimento, uma única marca de judaísmo. Assim é como interpreta Finkielkraut essa realidade empobrecida. Esse judeu da dispersão, que ignora o hebraico, alheio por completo à cultura talmúdica, completamente indiferente à Torá e ao sionismo e para quem a história do seu povo é um repertório amorfo de acontecimentos perdidos na névoa dos séculos, esse judeu não está disposto a deixar de ser chamado de judeu”(p.141). Segundo Santiago, reproduzindo Finkielkraut, em “OJudeu Imaginário”(p. 177 e 184), “o povo judeu não sabe o que ele é, sabe unicamente que existe e que esta existência desconcertante altera a divisão instaurada pela razão moderna entre o público e o privado” e segue, concluindo, “para mim, o judaísmo já não é tanto a forma da identidade como a da transcendência. É algo que não defino, uma cultura que não posso alcançar, uma graça que não posso fazê-la minha”.

c) Por fim, Santiago, voltando à proposta de Finkielkraut, é enfático em dizer: à diferença do judeu imaginário, do judeu pós-diásporo: este já deu adeus a seu passado. Aceita a sua orfandade como um fato irreversível e concebe o perdido como algo irrecuperável. A tensão em que vive – separado entre o perdido e o que é – conforma essa bagagem como sendo judia. Retalhos de uma tradição milenar encontram nele um coração ao mesmo tempo solidário e distante. Cabe uma única pergunta: se não está na diáspora e não está em Israel, em que lugar ele está?

7. Jean Daniel e o adeus ao judaísmo. Essa expressão foi cunhada por Santiago para definir o pensamento de um dos maiores escritores franceses contemporâneos (p. 160 a 177).

a) Nasceu na Argélia em 1920. Jornalista e ensaísta, fez universidade na França, licenciando-se em Filosofia. Na Segunda Guerra Mundial, interveio em várias frentes e recebeu a Cruz de Guerra. Apoiou a independência da Argélia e a política de De Gaulle. Foi co-fundador do Le Nouvel Observateur, dirigindo-o por muito tempo. Ganhou a Legião de Honra da França. Nos seus livros, destacam-se “Deus é fanático?” (1996) e “A guerra e a paz – Israel e Palestina” (2003).

b) Em 2007, ao escrever “A Prisão Judia”, Jean Daniel colocou em questão o judaísmo como prisioneiro perpétuo da religião. Essa ideia de Jean Daniel inclui o próprio judaísmo, Israel e a diáspora. O desencanto de Daniel começa a manifestar-se sobretudo com o resultado da Guerra dos Seis Dias, com a qual esperava que o espírito laico liberaria o judaísmo do peso teológico.

Diz Santiago: tanto na concepção judia do conflito palestino-israelense como na do antissemitismo atual, o mito, em ambos casos, preponderou sobre a história. O transcendentalismo, como Daniel o chama, foi mais poderoso.Um profundo retrocesso na compreensão dos próprios conflitos e necessidades predomina em Israel e afeta a diáspora. Daniel insiste: o político, como ferramenta de leitura da realidade, sucumbiu ao religioso. Israel, por consequência disso, converteu-se em uma democracia messiânica. Não obstante, embora discordando daqueles que, sob o aspecto messiânico, veem Israel como uma potência colonialista e sonham não com sua mudança, mas com sua eliminação. Por quarenta anos, Israel é, para Jean Daniel, responsável pela catástrofe judeu-palestina. Crítica, em seus escritos, sobretudo nas páginas 21, 32, 33, 116 e 166 da obra citada, aquilo que chamou de “direitos teológicos” de conduta expansionista e repressora das reivindicações palestinas.

Embora o livro de Jean Daniel “A Prisão Judia” já tenha percorrido mais de duas décadas, ainda seu pensamento e suas ideias podem ser apreciadas e julgadas segundo a sua ótica do antissemitismo atual, um antissemitismo ontológico, característico do cristianismo e do nacional-socialismo e um antissemitismo político, concentrado apenas sobre Israel. Essa discussão teórica levou Jean Daniel a formular a hipótese de que, se fosse correta a fobia judaica, poderia levar a um veredicto válido, mas que ele discorda e se empenha em demolir um presumido antissemitismo metafísico(p. 162 a 168). Concluindo, Santiago, enfatiza que Daniel termina por afastar-se do judaísmo. Compreende o judaísmo por inteiro numa teocracia e, rejeitando-a, designar-se-á exclusivamente francês pois “sua nacionalidade lhe bastará para caracterizar as raízes de sua vida” (p. 175).

Muito interessante que Santiago encerre o exame das ideias de Jean Daniel, cobrando-lhe dois aportes que nunca foram feitos por Daniel, um acerca de um antissemitismo árabe flagrante na recusa ao recente Estado de Israel em 1948, e outro, relativo a atual recusa da sociedade israelita a um acordo com os palestinos ou o apego de um setor de Israel ao teocrático.

8. Em George Steiner e Yakov Rabkin há duas posições antitéticas. Steiner nasceu em Paris em 1929 e exerceu sua carreira a partir de uma formação técnica (econômica) uma vez que sua família, quando ainda jovem, se mudou de Paris para Nova York e dali em diante perpassou por universidades tradicionais (Yale, Genebra e outras) levando, mais tarde, a deslocar-se para estudos literários, donde escreveu títulos memoráveis tais como “Tolstoi ou Dostoievski” (1960), “No castelo de Barba Azul” (1971), “Presenças Reais” (1989). Bem mais jovem, Rabkin nasceu em Leningrado em 1945. Emigrou para o Canadá em 1973 e estudou com destacados rabinos da França e de Israel, contribuiu para criar o colégio de estudos judaicos de Moscou após a queda da URSS. “Figura tão provocante como polêmica, sua identificação com os judeus ultra ortodoxos, adversários de Israel, e a recusa da vida judia não ortodoxa, tem lhe valido tanto recusas como adesões” (Santiago, p. 180).

9. O epílogo provisório escrito por Santiago.

É absolutamente compreensível que, com o envolver histórico e também o confronto permanente e a tensão das diversas opiniões, sobre o tema em discussão, levassem Santiago a concluir o seu trabalho, tentando promover uma síntese dos pensadores ao mesmo tempo em que não se coloca fora da permanente dúvida judaica histórica. Escreve, em algum dos seus trechos mais destacados: “Quero dizer que esses pensadores investigadores, artistas e poetas sabem explorar, interrogar, enunciar e aplicar de maneiras novas ao que até agora se viu reduzido a pronunciamentos religiosos ou a pautas político-ideológicas. São autores judeus pós-diásporos precisamente por essa distância que assumiram das formulações doutrinárias tradicionais como das colocações sionistas. Nessa medida, estão levando a cabo uma remodelação e uma contextualização do judaísmo como tema e experiência pessoal e coletiva. Não pertencem à diáspora, em suma, porque seus valores judaicos já não coincidem com os existentes nela nem com ela quiseram significar(p. 224).Eu, nesta resenha, acrescento: se, para Lacan, o real é aquilo que resiste à simbolização, importa dizer que o homem pós-diásporo é quem, como judeu emblemático das convulsões de nosso tempo, deixa-se ver na impossibilidade de simbolização do que ele mesmo significa. Já não encontra amparo no religioso, não é seu o ideal israelita e a palavra judeu com aquilo que ela significa, que é, ao mesmo tempo, o que o torna irreconhecível na presença que opera fora do campo da identidade. Ainda assim, se mantém ligado a ela, a essa palavra que o ampara e o desampara ao mesmo tempo. Ela é que o situa fora do saber judeu formalmente compreendido para escrevê-lo no terreno pedregoso e imprevisível do que é confuso, das oscilações, da conjuntura e da convicção de ser judeu, longe de toda certeza e contra toda proposta apaziguadora. Com ele, com esse homem pós-diásporo, o judaísmo chega a ser algo que persiste e vacila ao mesmo tempo.

10. Obs.: o autor desta tentativa de síntese da obra de Santiago adverte que o trabalho de elaboração desse texto exigiu-lhe a tarefa espinhosa de resenhar o comentário crítico do autor acerca de notórios pensadores judeus em torno de um crucial questionamento: a extinção da diáspora judia. E, assim, pede humildemente aos leitores que formulem seus juízos sobre esse escrito com a benevolência que é característica do povo judeu.


[1]La extincion de la diáspora judia, Buenos Aires, Emece, 2013, 240 p., ISBN 978.950.04.3515.4

[2]Rochefort-sur-Mer, 14 de março de 1908 – Paris, 4 de maio de 1961

[3] Bucareste, 20 de julho de 1913 – Paris, 8 de outubro de 1970

[4] Bruxelas, 28 de novembro de 1908 – Paris, 30 de outubro de 2009

[5]NahumGoldmann, “Adondeva Israel? ”Timmermen Editores, Buenos Aires, 1976 e “La paradoja judia”, Losada, Buenos Aires, 1979


JAYME VITA ROSO – Graduado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, é especialista em leis antitruste e consultor jurídico de fama internacional, ecologista reconhecido e premiado, “Professor Honorário” da Universidade Inca Garcilaso de La Vega de Lima, Peru e autor de vários livros jurídicos. Saiba mais.

vitaroso@vitaroso.com.br

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