O CASO DO DOUTOR TCHEKHOV – POR MERALDO ZISMAN

345_especial_4_1O grande contista e teatrólogo russo oferece, nos trabalhos literários, uma visão acurada de como era a vida médica na Rússia, no fim do século XIX.


(Anton Pavlovitch Tchekhov. 1860-1904)

· “A vida é pesada de se carregar. Muitos entre nós a consideram silenciosa e desesperada. Entretanto, devemos confessar que ela se torna dia a dia mais luminosa, mais fácil, e tudo faz crer que não está longe o tempo: ela se iluminará inteiramente”.

• “Daqui a duzentos ou trezentos anos, ou mesmo mil anos – não se trata de exatidão – haverá uma vida nova. Nova e feliz. Não tomaremos parte nessa vida, é verdade…, mas é para ela que trabalhamos e, se bem que soframos, nós a criamos. E nisso está o objetivo de nossa existência aqui”.

• “Quando lemos um romance, tudo nos parece tão fácil, tão claro, mas basta que nós mesmos amemos, para vermos que ninguém sabe nada e que cada um deve decidir por si”. (Da peça “As Três Irmãs”).

Um médico, um gênio na apreciação e definição do gênero humano de sua terra natal. Um antropólogo inato. Um teatrólogo de estirpe. Na arte do conto, conseguiu fazer a atmosfera preponderar sobre o enredo. O seu estilo é seco e conciso. Fê-lo um capacitado de criar e armar toda uma situação em menos de uma página, sendo, por este dom, denominado um diretor teatral sem enredo, assemelhando-se com os seus donos. Sabia como refletir o ambiente onde desenrolava suas criações, seja em “Tio Vânia”, “As Gaivotas”, ou na sua amada peça de teatro “O jardim das Cerejeiras”.

Dizem ser o conto o modelo literário que visa uma maior intensidade de efeito. Ele o fez com maestria.

No século XX, este gênero tomou duas vertentes: a francesa, exponenciada por Guy de Maupassant e, a russa, com a figura do médico Tchekhov. E, sem tirar o mérito de outros autores, o contista moderno mais proclamado, Ernest Hemingway, no seu caminhar de escrita a uma contida dependência à tensão e à violência. Da figura máxima do conto clássico brasileiro, cabe homenagear Machado de Assis, com “O Alienista”, publicado como livro em 1862.

A evolução deste gênero literário processa-se do livre contador de estórias das feiras, até atingir a forma de princípio, meio e fim do século passado, sem prejuízo da sua beleza. E, nisto, o Dr. Tchekhov temperava seus curtos relatos e peças teatrais com objetividade e com a compreensão da fragilidade do homem, expressas magistralmente no seu “Camponeses” (mujique), “A Ravina”, “O Duelo” – contos feitos para florescer dentro de sua peça “No Jardim das Cerejeiras”.

Perguntaram a Tchecov como ele poderia conciliar a medicina com a literatura:

– A medicina é minha esposa e a literatura minha amante… e quando eu sei que tenho duas profissões sou homem mais confiante. Prosseguia: Isto me dá muito mais confiança em meu trabalho, justamente por ser escritor e médico, homem com duas profissões.

O grande contista e teatrólogo russo oferece, nos trabalhos literários, uma visão acurada de como era a vida médica na Rússia, no fim do século XIX. Obrigado a ficar, ainda adolescente, como tutor dos filhos do principal credor do seu pai, em sua cidade natal, Tagangrog – cidade perto do mar de Azov, onde seu pai fora próspero comerciante e faliu – o jovem lá ficou, como uma espécie de refém das dívidas paternas e apesar do trabalho árduo na loja que pertencera ao seu pai, arranjava tempo para ensinar aos filhos de seu senhorio, dando aulas particulares aos rapazes e moças do local para ganhar um pouco de dinheiro extra, clandestinamente, e, enviá-lo para sua mãe, que vivia em Mo scou. Ganhou uma bolsa de estudos para cursar medicina em Moscou e, com o parco provento desta bolsa, ajudava na despesa familiar.

Tinha 19 anos quando começou o seu curso médico, em setembro de 1879. Concluiu-o em março de 1884. Trabalhou com GRIGORI ZAHCARIN, o grande professor de medicina que muito o influenciou. Como professor de medicina, ajudou a desenvolver no jovem Anton o gosto pela observação cuidadosa dos fatos e da importância de anamnese bem-feita, concisa e precisa. Arte que lhe forneceu treinamento para ser um contista desse calibre. Gostava de penetrar na alma da pessoa, de seu paciente e dele temos os primeiros casos descritos de melancolia ou depressão, como é hoje denominada. A depressão é tema central de muitos de seus contos, como é o caso de “Ivanov”.

Foi encarregado de trabalhar na Sibéria como médico do Estado, principalmente nas ilhas Sacalinas, onde fundou várias escolas. De volta, transferido para Moscou, comprou uma casa nas suas cercanias e começou a clinicar.

Encarregaria-se do emprego de médico funcionário, cuidando de mais de 26 vilarejos, várias escolas e de um monastério, além de desenvolver a clínica particular. Apesar de todos esses encargos de profissional de medicina, conseguiu produzir 27 contos magistrais, num período de tanta trabalheira como médico. Ninguém sabe como arranjava tempo.

Teve a primeira hemoptise (um irmão seu já morrera de tuberculose, de quem, provavelmente, contraiu a moléstia) e escondeu o fato da família. Como todo médico, não se cuidada. O segundo episódio hemóptico, não pôde escondê-lo, pois fora flagrado pela família. Transferiu-se para Yalta em busca de melhor clima, como se acreditava na época.

Em Yalta, balneário aonde os portadores de tuberculose iam em busca de cura, continuou desenvolvendo um intenso trabalho médico, com os pacientes terminais. Voltou para Moscou, pela última vez, para assistir a estreia de sua peça – “O Jardim das Cerejeiras”, em 17 de janeiro de 1904, e veio a falecer nesta cidade, em 15 de julho deste mesmo ano, com a idade de 44 anos.

A sua genialidade em escrever pequenas e viscerais estórias do seu tempo, de seus pacientes e do momento vívido; a maneira como as descreveu ainda não foi superada na narrativa pouco extensa e, unívoca em sua unidade dramática, concentrando-se a ação num único ponto de interesse. Foi um gênio na arte do conto. Mas nunca deixou de ser médico.

Quatro anos antes de morrer, Tchecov escrevia ao professor de neuropatologia da Universidade Moscou, Gregory Rosslimo: “Meus estudos médicos têm profunda influência sobre meus escritos. Eles ensinam-me a arte da observação e enriquecem meu conhecimento. A verdade contida nesta minha afirmativa somente poderá ser entendida por quem é médico. A intimidade com as ciências naturais, com o método cientifico, fez-me muito cuidadoso nas minhas crenças. Restringe-me o argumento cientifico, até onde isso possa ser alcançado. Quando isto não é possível de provar, prefiro nada escrever”.

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A ação do escritor é fazer com que o leitor se disponha compreendê-lo.

Ir muito além do enigma do texto e desfrutar do prazer estético da palavra escrita.

Em resumo, o escritor deve ter o dom de imprimir ao seu texto a capacidade de “reverie” de quem o lê.


DR. MERALDO ZISMAN – Médico, psicoterapeuta, é natural de Recife – Pernambuco. Saiba mais.

meraldozisman@uol.com.br

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