SINAGOGAS DO MUNDO: PAREDESI EM COCHIN, ÍNDIA – FELIPE DAIELLO
Construção ao lado do palácio real de Conchin, na Índia, apresenta estranha torreta, onde preguiçoso relógio tenta marcar as horas.
Mergulhada na Jew Town, escondida numa viela, agora bloqueada, perto do antigo cemitério onde nomes bíblicos procuram sair do anonimato da pedra, tentativa cada vez mais difícil pelo apagar dos anos, surge Paredesi.
Ela convida tanto o crente, como o turista ou mesmo o curioso de passagem para conhecer a sua história.
Aos poucos, em silêncio, começo a ouvir murmúrios. Presto atenção, tento entender as palavras; para que dicionário devo levar a minha atenção, em que língua ela tenta a comunicação.
— Sê paciente, estranho que vens de longe. Muitos passam, apressados, olhadas rápidas, nada descobrem, apenas guardam detalhes — a medida que caminho no silêncio, na temperatura elevada para manhã, indicação da aproximação das monções, das chuvas intensas, do renovar da vida no sul da Índia, procuro compreender a aflição de séculos — Paredesi tem muito a falar.
— Após a segunda destruição do Templo de Jerusalém, em 70 a. C. pelas legiões romanas de Tito, muitos refugiados em diáspora, escaparam para a Índia, a Odhu da Bíblia, de onde chegavam os pavões, o marfim, a madeira de Teca e as especiarias. No tempo do Rei Salomão havia intenso comércio entre os dois países. Em Cranganore, a Shingly dos hebreus, desde 72 a. C. , já havia pequena comunidade, local de refúgio para os que fugiam à fúria de Roma — ela estava ansiosa, tinha pressa, precisava encontrar ouvidos para dores do passado.
— Desde então, começa a formação de comunidade que seguia a Estrela de David. Anos difíceis, lutas constantes, trabalho intenso na preservação de costumes e da fé mosaica. Com o tempo, um dos patriarcas foi agraciado com o poder de Sultão. Começa em 394 d. C. algo inédito, um reinado judaico fora das terras de Jerusalém — sentado, descansando, mas bem atento, eu estava cada vez mais interessado em confissões que não paravam de brotar.
– Os anciões ensinavam o Torah, as regras na obediência. Àquele que tudo vê tudo sabe, mas proíbe a associação da sua imagem a qualquer representação humana; bem ao contrário dos templos hindús. Os negócios da irmandade alcançavam o Ceilão, Málaga, a Conchichina e mesmo Macau — eu precisava de atenção para acompanhar palavras e frases difíceis de escutar e entender.
— Novas famílias chegavam em 490 d. C. , agora vindas da Pérsia, onde eram novamente perseguidas. Eram descendentes dos primeiros judeus levados por Nabucodonosor para a Babilônia, após a conquista da Cidade Eterna e da primeira destruição do Templo. Como prisioneiros, haviam desfilados, humilhados à frente das tropa vencedoras pelos portais do Templo de Isthar – continuava, agora num ritmo mais rápido, tinha medo que eu fugisse.
– Mais tarde, grupos de espanhóis, após a queda de Granada em 1492 e do Edito das Expulsões do Cardeal Cisneros, começam a chegar ao sul da Índia – ela continuava ansiosa, as frases vinham em cascata.
– Necessário acolher os novos refugiados, a coletividade crescia e prosperava. Mas 1524, nossa Shingly foi destruídos pelos mouros e depois portugueses recém chegados e seguindo os passos de Vasco da Gama, completaram a tarefa. A Inquisição com sua intolerância estava presente na Índia. – agora eu percebia tristeza e mesmo lágrimas abafadas, intercaladas aos murmúrios.
Pelo que eu entendi sobreviventes, incluindo o rabino, com sua esposa às costas, nadando, conseguiram alcançar Sultanato amigo, em Conchin. Para trás ficaram apenas as lembranças e as raízes plantadas na Odhu da Bíblia. Recordações.
Em Cochin, a atual Kochi dos indianos, foi concedido terreno e a permissão para a construção de nova sinagoga. A pequena colônia hebraica ali existente colaborou bastante, tendo a família Castiel obtido a licença para início da construção ao lado do Palácio Mattancherry. Em 1568, Paredesi podia abrigar os seus fieis nas novas instalações. Começava outra epopeia.
— Os tempos eram bons, de prosperidade, mas em 1662, os portugueses vindos de Goa, com sua terrível Inquisição queimaram e pilharam a cidade. Jew Town foi arrasada, minhas feridas foram sérias, mas não mortais. A reconstituição, mais uma vez seria necessária — apesar da tristeza ela tinha orgulho no que afirmava.
— Os holandeses ao conquistarem Cochin em 1664, mais tolerantes, permitiram a liberdade de religião e ajudaram na restauração e na recuperação dos danos. Novo canal de comércio é restabelecido, é possível intermediar negociações com o mercado de Amsterdam. Em 1668 eu renasci das cinzas — agora bem claros os termos, havia mais vida nas palavras e emoções.
Quase hora de partir, sozinho, na penumbra da tarde, eu entendia os problemas advindos com o tempo. A adaptação à Índia, a conversão dos nativos, a mistura das raças, de costumes, de sangue, acorrentavam os fiéis à Índia.
A coloração da pele era mais escura, mesmo negra. Os judeus vindos da Europa consideram os locais como africanos. Surgem discussões, conflitos.
— Sim! Houve divergências entre os meus crentes. Tudo chegava aos meus ouvidos; mesmo em dias diferentes do Sabath. Precisei conciliar, apaziguar os exaltados. Não eram todos obedientes ao Deus único. — estava exaltada.
— Reformas necessárias, adaptações e manutenções alteraram um pouco o meu aspecto. O piso azulado por onde andas foi oferta de Ezekiel Rahabi, próspero negociante que os trouxe de Cantão em 1777. Não são lindos nos desenhos e nas cores? Convidam às orações — agora ela sorria.
Eu ouvia com atenção os segredos daquela velha senhora. Os lustres, os dourados do púlpito realçavam os encantos da minha amiga.
A chegada dos orgulhosos ingleses, os novos senhores, permitiu com o tempo mais prosperidade para a comunidade. Algumas famílias foram para Londres, outras para o Extremo Oriente. Conhecedores das rotas, das línguas locais, dos costumes, dos atos e dos fatos dos Marajás, dos Sultões e dos Mandarins, eram essenciais ao comércio, agora em escala mundial. O povo do livro encontrava momento adequado para a sua expansão, livre das perseguições, apesar dos antigos preconceitos e da inveja do seu sucesso econômico.
Com a independência da Índia em 1947, com as lutas internas, com a criação do Estado de Israel em 1948, a maioria dos membros da coletividade emigrou; levaram pensamentos e costumes diferentes, mesmo conflitantes, para a nova nação.
Nos tempos atuais, apenas turistas chegam a Cochin. Curiosos a maioria. Dedicam pouco tempo à visita. Correm para as lojas de antiguidades e para os mercados das pimentas, dos perfumes e para o artesanato local.
Na saída, recordando o que ouvira, o que estava visível nas paredes, nos detalhes, como saudação ela ainda tinha algo para a despedida.
— Sim! Como pessoa velha, quase abandonada, pois ficaram poucos para cuidar da minha aparência, das minhas recordações e até das minhas belezas, eu peço a tua atenção, algo pequeno, antes de partires — eu não conseguia escapar, perplexo e emocionado. Ouvia:
“Se puderes escrever, divulga os meus desejos, as minhas necessidades. Não quero que o tempo corroa e apague as minhas lembranças e os meus ensinamentos.”