POR QUE VALE TANTO MANTER A PALAVRA? – RABINO YTSCHAK ZWEIG

A maior obrigação de manter a palavra é sermos sinceros e fieis a nós mesmos. Não devemos deixar que nossos desejos físicos triviais e de pouco valor anulem a obrigação que devemos a nós mesmos de nos tornarmos pessoas melhores – moralmente, fisicamente e como alguém em quem os outros podem confiar.

Provavelmente, a esta altura, você já deve ter ouvido falar do temido COVID-19. Não, não da doença. Dos 19 quilos (mais ou menos) que a maioria das pessoas parece ter ganhado durante a atual pandemia de coronavírus. Se você não tem certeza do que estou falando, talvez seja hora de ‘analisar cuidadosamente’ por que, após 4 meses de isolamento, tantas pessoas estão preferindo usar apenas camisetas grandes e “calças elásticas”.

Um amigo me disse: “Tentei comer de forma mais saudável e assumi o compromisso de me exercitar, mas infelizmente descobri que era alérgico. Quando comecei, minha pele de repente ficou vermelha e meu coração começou a acelerar. Então fiquei suado e sem fôlego. Parece muito perigoso”.

Atingir qualquer objetivo, seja se exercitar ou perder peso, exige que aprendamos o significado de um comprometimento. Ao longo de nossas vidas, somos lembrados do aspecto crucial que o compromisso desempenha. Isso é verdade em todas as áreas, seja em relação a relacionamentos pessoais, parcerias profissionais ou na realização de projetos individuais – sabemos que nada pode ser realmente alcançado sem a pessoa se comprometer com uma meta.

Obviamente, o judaísmo oferece uma lição de vida relacionada a essa questão. Na leitura da Torá desta semana, encontramos:

Moisés falou aos chefes das tribos do povo judeu, dizendo: “Se uma pessoa jura ao Todo-Poderoso ou faz um juramento que impõe uma obrigação sobre si, ela não deve quebrar sua promessa; deve por em prática tudo o que passou por seus lábios (Números 30: 2-3)”.

O judaísmo tem uma abordagem muito séria em relação juramentos e promessas. De fato, um tratado inteiro do Talmud, Nedarim, lida com as leis dos juramentos. Se alguém promete fazer algo ou, inversamente, não fazê-lo, deve manter sua palavra.

Embora existam exemplos na Torá de indivíduos que fizeram juramentos, no período após a era dos Profetas esta prática foi desencorajada. O Talmud e o Shulchan Aruch (o Código de Leis judaico) explicitamente advertem as pessoas a não fazerem juramentos, e afirmam que alguém que o faz – mesmo que cumpra o juramento – é chamado de perverso e transgressor. Muitas pessoas têm a prática de dizer bli neder (“sem juramento”) sempre que prometem fazer algo, a fim de expressar que não estão fazendo um juramento.

Você já se perguntou por que o dia de Yom Kipur começa com Kol Nidrei? Esta oração de abertura no dia mais sagrado do ano – o Dia da Expiação – começa com um pedido a D’us pela absolvição de nossos juramentos e compromissos. Isso parece bastante estranho. O que há de tão essencial sobre as leis dos juramentos para se iniciar as orações no que é sem dúvida o dia mais inspirador do calendário judaico com este pedido?

O Talmud (Baba Batra 88a) explica que o versículo (Salmos 15) “Fale a verdade em seu coração” se refere ‘a alguém que realmente reverencia o Todo-Poderoso’. Curiosamente, o Talmud achou necessário dar um exemplo de alguém assim: Rav Safra. Rashi, o grande comentarista da Torá e do Talmud, explica como Rav Safra tornou-se o modelo dessa virtude:

Rav Safra estava no meio da oração do Shemá quando alguém se aproximou para comprar algo que ele estava vendendo. O comprador ofereceu uma quantia pelo item que queria comprar. Rav Safra, que ainda estava no meio da oração, ficou em silêncio. O comprador entendeu este silêncio como uma relutância em vender porque a soma não era alta o suficiente. Então continuou aumentando sua oferta até que chegou a uma quantia muito grande de dinheiro.

Depois que Rav Safra terminou suas orações, ele virou-se para o comprador e disse que iria vender pela oferta original que foi feita. O comprador, chocado por Rav Safra estar aceitando um preço muito mais baixo do que a sua oferta final, perguntou-lhe o porquê. Rav Safra explicou: “Depois de ouvir sua primeira oferta, eu já havia decidido em minha mente aceitar o valor original oferecido”.

A maioria das pessoas é criada valorizando o conceito de “manter a palavra”. Infelizmente, a sociedade moderna parece ter esquecido esse ideal; de fato, em algumas culturas, um contrato assinado é apenas uma base para abrir uma nova negociação.

Em geral, a noção de ser “uma pessoa de palavra” é vista como moralmente vinculativa porque, uma vez que você dá a palavra, alguém agora tem a ‘posse’ do seu desempenho esperado. Em outras palavras: com base em seus compromissos, elas tomam decisões e compromissos próprios.

No entanto, vemos no Talmud que há realmente uma razão muito mais profunda para manter a palavra. A história que Rashi cita aparentemente não tem nada a ver com manter a palavra. Afinal, Rav Safra ficou em silêncio o tempo todo, ele nunca se comprometeu com um preço. Por que então tinha que cumprir o preço que havia concordado em sua mente?

A resposta é que existe uma verdade muito mais elevada à qual todos estamos vinculados – somos obrigados a ser sinceros conosco mesmos. Não, não precisamos cumprir nossa palavra porque alguém confiou e tomou decisões baseado nela. Temos que cumprir nossa palavra porque a dissemos e temos a obrigação de torná-la realidade.

É por isso que o versículo diz: “Fale a verdade em seu coração”. Não tem nada a ver com nossos compromissos com outras pessoas. A base para mantermos nossa palavra é que devemos isso a nós mesmos. E é sobre juramentos e promessas que trata a Porção Semanal desta semana.

Diversas vezes sentimos que possuímos ‘direitos’ sobre nós mesmos. Mesmo se assumimos compromissos (pararei de fumar, vou perder peso etc.), muitas vezes não temos nenhum remorso, ou talvez apenas um sentimento fugaz de culpa, de quebrar as promessas para com nós mesmos.

Isto é um equívoco. Nós não somos donos de nós mesmos. Estamos neste mundo como um presente da bondade do Todo-Poderoso. Nossa responsabilidade para com nós mesmos está na obrigação para com Ele; é por isso que o Talmud chama os que se comportam como Rav Safra de ‘aqueles que realmente reverenciam o Todo-Poderoso’.

E é por isso que o assunto das promessas e juramentos é tão central no serviço do Yom Kipur. Iniciamos este dia dedicado à oração, reconhecendo que nossas palavras são uma maneira poderosa de nos comprometermos. Além disso, entendemos que, mesmo dentro dos compromissos que assumimos, temos também uma obrigação com o Criador. Somente ao internalizarmos a severidade da obrigação que vem ao darmos nossa palavra, poderemos comprometer-nos a cumpri-la. Essa é a essência do Yom Kipur, um dia que passamos comprometendo-nos a sermos pessoas melhores – e é por isso que começamos com Kol Nidrei.

A maior obrigação de manter a palavra é sermos sinceros e fieis a nós mesmos. Não devemos deixar que nossos desejos físicos triviais e de pouco valor anulem a obrigação que devemos a nós mesmos de nos tornarmos pessoas melhores – moralmente, fisicamente e como alguém em quem os outros podem confiar. Ao levarmos isso a sério, começaremos a cumprir nossa palavra, corresponder às expectativas dos demais e realizaremos coisas maravilhosas e impressionantes!


Pensamento: “O comprometimento gera as melhores amizades!” – Rabino Kalman Packouz Z”L

20
20