CLARICE LISPECTOR: UMA VOZ BRASILEIRA COM UMA RAIZ JUDAICA – POR MENDY TAL
Esta é a semana em que devemos aprender um pouco mais sobre uma das maiores vozes da literatura latino-americana, Clarice Lispector, porque é o centenário de seu nascimento e também o seu yortzeit.
A famosa escritora nasceu no dia 10 de dezembro de 1920 e morreu no Rio de Janeiro em 9 de dezembro de 1977.
Clarice é uma das mais lidas, comentadas e estudadas escritoras da literatura em língua portuguesa. Curiosamente, era ucraniana de nascimento e judia, mas, sobretudo, brasileira – por sua escolha e vontade.
Nascida em Chechelnik, uma aldeia ucraniana à época pertencente à Rússia soviética, era bebê quando os Lispector, que fugiam da guerra e dos pogroms, chegaram ao Brasil, onde tinham parentes.
Seu pai era filho de religiosos e fortemente sionista. Especula-se que sua mãe tenha adquirido sífilis quando teria sido estuprada por um grupo de soldados em um dos pogroms.
Registrada como Chaya Pinkhasovna, a família trocou os nomes no Brasil e ela passou a ser Clarice Lispector.
Quando chegou ao Brasil, a família estabeleceu-se em Maceió e depois em Recife. Em 7 de janeiro de 1935, com 14 anos, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro, onde seu pai esperava dar prosseguimento aos avanços de seu negócio e conseguir bons maridos para suas filhas nos círculos judaicos cariocas.
A menina criada em iídiche tinha um sotaque peculiar. Embora falasse e lesse em francês, inglês e italiano, o português foi a língua em que escrevia, pensava, sonhava e amava.
Em 1939, ela ingressou no curso superior na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Entretanto, em 1940, aos dezenove anos, seu interesse por Direito havia diminuído ao passo que aumentara sua atenção à Literatura, sendo assim que ela publicou, em 25 de maio, seu primeiro conto conhecido, Triunfo, na revista Pan, no qual descreve os pensamentos de uma mulher abandonada por seu companheiro.
Lispector revolucionou o panorama literário brasileiro nos anos quarenta. Ser mulher influenciou, mas foi sobretudo porque isso estava unido a um estilo inovador.
“É uma autora selvagem, pouco polida, como se caísse no mundo com muita fome. Nela você percebe fome, sede, amor, paixão. É muito pouco intelectual”, explica um estudioso de sua obra.
Entre tantos enfoques possíveis para uma obra tão plurifacetada, há um aspecto que até hoje merece análise mais aprofundada, uma análise do que há de judaico na obra de Clarice Lispector.
Teóricos e críticos literários adotam posições conflitantes em torno dessa questão. Há os que promovem verdadeira arqueologia dos textos da autora para trazer à luz algo de judaísmo; há os que descartam qualquer tentativa nesse sentido, como advogando que a poética da autora nada deveria a tal tradição.
Entre esses dois extremos, há uma miríade de posições possíveis. Em uma entrevista, indagado sobre a pouca importância dada pela crítica brasileira à “judeidade” de Clarice e sobre a escolha feita pela autora de não incluir referências abertas à tradição judaica em sua obra, seu biógrafo americano, Benjamin Moser, observou:
“Embora já houvesse certos críticos que se interessaram pela ‘questão judaica’ na obra da Clarice, há um outro lado, muito forte, que insiste na sua “brasilidade”, como se fosse preciso escolher entre ser judia e ser brasileira. Porque ela justamente não é, nos seus escritos, explicitamente judia. Mas este lado também é muito judaico. Muitos dos grandes escritores judeus não falam explicitamente, ou só raras vezes, do judaísmo. Pensemos em Proust ou em Kafka”.
É evidente que as narrativas de Clarice Lispector não apresentam personagens judeus ou elementos da tradição judaica, seja ela considerada em sua vertente tradicional-popular ou religiosa.
Porém, algumas interfaces podem ser estabelecidas entre a literatura de Clarice e a herança cultural judaica.
Primeiramente, guardadas as diferenças entre filosofia e arte, encontramos diversos ecos do pensamento de Spinoza na obra de Clarice, como a equiparação de Deus à natureza, a imortalidade da alma e a inexistência de divisão bem traçada entre o Bem e o Mal.
Um segundo ponto de inspiração judaica na obra de Clarice é a invocação de passagens do Pentateuco e até mesmo de textos não-canônicos da Torá.
Há um terceiro aspecto a ser abordado quando se persegue uma leitura judaica da obra de Clarice. Trata-se da questão quase metafísica do poder das palavras e dos limites da linguagem.
Seu biógrafo, Moser, liga Lispector à robusta tradição do misticismo judaico ao sugerir que ela compartilha com essa linhagem um interesse por um conjunto peculiar de problemas em torno da linguagem e de Deus. O misticismo judaico atribui grande poder à linguagem. E no trabalho de Lispector, a linguagem assume poderes incríveis.
No que Moser chama de “uma rara declaração”, ela disse certa vez: “Eu sou judia, você sabe. Mas eu não acredito nesse absurdo sobre os judeus serem o povo escolhido de Deus”.
O último romance acabado de Lispector também apresenta uma das referências mais marcantes e sustentadas à tradição textual judaica. O personagem central do romance leva o nome de Macabéa, uma referência aos Macabeus, os líderes da rebelião judaica contra os ocupantes gregos da Judéia, cuja vitória é comemorada no feriado de Chanucá.
No total, a obra de Clarice Lispector recebeu mais de 200 traduções para mais de 10 idiomas, sendo mais de 179 traduções integrais de livros e 25 de contos publicados em periódicos. Seus livros mais traduzidos são principalmente romances: A Hora da Estrela; A Paixão segundo G. H.; Perto do Coração Selvagem; Laços de Família e Uma aprendizagem ou O livro dos Prazeres.
Depois de um câncer ovariano, Lispector morreu em 9 de dezembro de 1977, aos 57 anos.
Clarice foi enterrada no Cemitério Israelita do Caju, no Rio de Janeiro, de acordo com os rituais ortodoxos e em sua lápide aparece seu nome de nascença, Chaya, que significa vida em hebraico.
Mendy Tal
Cientista Político e Ativista Comunitário