Judaísmo diaspórico e judaísmo israelense – Por Bernardo Sorj

Gostaria de apresentar algumas reflexões, que não pretendem ser sistemáticas, sobre as transformações da identidade judaica no mundo contemporâneo. Me concentrarei no tema das relações entre judaísmo diaspórico e judaísmo israelense, para, na parte final, tecer alguns comentários rápidos sobre o judaísmo latino-americano em geral e o brasileiro em particular.

Como sabemos, nos tempos modernos, a identidade é produto da interação criativa dos indivíduos com seus contextos sociais. O judaísmo diaspórico tanto quanto o israelense inclui as mais variadas correntes religiosas e seculares. Apesar da diversidade, tratar estes universos até certo ponto como contrapostos se justifica pela existência de uma diferença fundamental entre ambos. A vivência do judaísmo diaspórico possui um substrato comum, ela reflete a condição de ser uma minoria, enquanto em Israel se trata de uma maioria que controla um estado nacional, que inclui o fato de ser parte de um país em estado permanente de guerra.

Judaísmo diaspórico e judaísmo israelense

Afirmar que o judaísmo diaspórico e o judaísmo israelense possuem caraterísticas diferentes é uma constatação empírica, mas também confirma o objetivo declarado da ideologia que criou o Estado de Israel, o sionismo. O sionismo visava “normalizar” o povo judeu, que seria sempre alvo de perseguições antissemitas enquanto fosse um grupo minoritário na diáspora, criando um “homem novo”. Enfatizarei inicialmente, de forma unilateral, as caraterísticas produzidas pelas condições sociais de ser uma minoria ou de ser o grupo dominante.

A formação do judaísmo moderno está associado ao processo de secularização que separou estado e religião e permitiu que os judeus se transformem em cidadãos plenos. Ao mesmo tempo continuaram vivendo em sociedades onde o processo de secularização não eliminou as tradições culturais associadas a religião dominante, que continuou presente tanto na sociabilidade cotidiana como na organização política (o calendário é o exemplo mais óbvio). Ao ser parte integral da sociedade e ao mesmo tempo uma minoria, um cidadão legalmente igual, mas que pode ser estigmatizado e excluído, produziu uma insegurança vital e uma suscetibilidade aguda sobre o futuro e os ventos da história –nacional e internacional. O resultado foi uma sensibilidade particular, associado à necessidade constante de decifrar o meio ambiente, frente a possibilidade ser tratado como um estranho.

Assim a condição judia diaspórica, nas sociedades modernas, produziu uma psicologia e uma sensibilidade particular que exige aprender a conviver com a dissonância cognitiva, ou seja, manter crenças próprias perante uma maioria com crenças religiosas diferentes. Dissonância cognitiva que limita o processo de disciplinamento da sociedade que Bourdieu denominou de habitus, pelo qual as pessoas interiorizam, e se resignam, às posições sociais que lhe foram assignadas. Não compartilhar as crenças da maioria favorece o questionamento dos códigos e as hierarquias dominantes, alimenta a dúvida, a curiosidade e a procura de novas respostas, atitudes afins com o espírito inovador da vida moderna. Caraterísticas que favoreceram o sucesso social e econômico, que passou a ser igualmente parte da identidade judia contemporânea, tanto na autoimagem como do olhar externo.

No caso do judaísmo israelense, parte da sensibilidade e valores trazidos da diáspora se diluiriam, passando a sobressair os sentimentos e valores impulsionados pelas condições de vida locais. Uma cultura que valoriza o pragmatismo e um certo anti-intelectualismo, e uma visão de mundo que coloca em primeiro lugar a força como estratégia de sobrevivência, acompanhada de uma dessensibilização em relação aos que consideram seus inimigos.

A política do primeiro governo de Israel de transferir vários poderes jurisdicionais à corrente rabínica ortodoxa, negando assim, de fato, o pluralismo do judaísmo como religião, também teve consequências fundamentais para o desenvolvimento do judaísmo em Israel. Ela opôs o secularismo a uma versão do judaísmo construída em oposição aos valores da modernidade, empobrecendo as possibilidades de diálogo entre o judaísmo secular e a rica tradição espiritual do judaísmo religioso moderno.

Nas últimas décadas, a ocupação dos territórios como resultado da guerra de 1967 produziu um movimento sísmico no interior da sociedade israelense. Ela levou ao fortalecimento de correntes ideológicas estranhas, pela própria natureza, ao judaísmo diaspórico: um nacionalismo xenofóbico e racista, e movimentos religiosos messiânicos dispostos a utilizar a violência para impor seus objetivos, acompanhado da expansão demográfica de grupos ultraortodoxos que não se identificam com o sionismo e o estado democrático, mas que se utilizam de sua força eleitoral para impor sua agenda teocrática na organização da sociedade e tirar vantagens orçamentárias para manterem seu estilo de vida.

A análise anterior, em grandes linhas, reflete oposições reais, mas desconhece que, se enfatizarmos somente a oposição, estaremos deixando de lado as transformações profundas que aconteceram tanto na diáspora como em Israel, e, em particular, aquelas que são produto da interação entre ambos.

Mutações do judaísmo diaspórico e israelense

As diásporas são realidades em permanente mutação, tanto pelas transformações sociais no conjunto da sociedade e do sistema internacional, como no interior das comunidades judias. A identidade judia moderna, e estamos nos referindo a um período histórico que se estende do século XVII até os tempos atuais (com cronologias diferentes em cada país e região), expressou os conflitos de uma transição que carregava dois desafios. De um lado um mundo que se abria como promessa de igualdade, mas que na prática mantinha em boa parte da população não judia os preconceitos do passado ou atualizados por novas ideologias racistas, e de outro lado, os laços subjetivos que cada judeu à sua maneira mantinha com a tradição, incluindo relações familiares e comunais.

A possibilidade de integração ativa na sociedade gerou um duplo movimento: a) a reconstrução da tradição judaica, reinterpretando-a de forma a permitir absorver os valores modernos de forma o menos contraditória possível com os novos valores hegemônicos, b) a modificação das subjetividades de forma a integrar a realidade de um mundo onde a divisão judeus/não judeus (cristalizada tanto nas normas religiosas como na experiência imposta pelo mundo exterior) se faziam cada vez menos presentes na convivência cotidiana.

Com a eliminação, pelo Holocausto, de grande parte do judaísmo da Europa central e oriental, os judeus nas Américas e em grande parte da Europa são descendentes de emigrações recentes, segunda, terceira e quarta geração. E cada geração se integrou cada vez mais na cultura nacional. Se os recém-chegados falavam Yidish (ou ladino) e seu meio social era majoritariamente judeu, os filhos e ainda mais seus descendentes deixaram de falar a língua de seus pais, se profissionalizaram e expandiram seus campos de atividades, onde a origem étnica perdeu sua relevância.

A própria palavra diáspora mal expressa o sentimento atual de boa parte dos judeus. Diáspora é um conceito muito distante da palavra pela qual durante quase dois milênios era chamada a situação de viver fora da terra de Israel, Galut. Galut é exílio, um castigo de Deus que algum dia acabará com a chegada do Messias. Diáspora é uma constatação neutra, a indicação de que o grupo se encontra disperso, sem conotação teológica nem teleológica.

Junto com a crescente integração social houve, naturalmente, uma diminuição da intensidade das caraterísticas anteriores que tipificavam a psique e o sentimento de estar no mundo da condição judia moderna. A igreja católica, que por milênios promoveu o antissemitismo, modificou sua relação com o judaísmo, e as sociedades avançaram no sentido de uma maior secularização e respeito pelos direitos humanos, apesar de ruídos no sentido contrário.

O sentimento de mundo e a sensibilidade associada a condição diaspórica, caraterísticas que obviamente os judeus nunca tiveram o monopólio, passaram a ser compartilhadas e valorizadas por amplos setores da sociedade. Com os processos de globalização, a capacidade de conviver com culturas diferentes passou a ser uma habilidade cada vez mais demandada, em particular para a elite globalizada, e os meios de comunicação bombardeiam constantemente com notícias sobre os mais diversos rincões do globo.

O antissemitismo certamente não desapareceu, mas na maioria dos países não ocupa um lugar relevante no cotidiano dos judeus, se bem o peso crescente de líderes e partidos de extrema direita em muitos países democráticos, que incluem grupos racistas e antissemitas, cause apreensão. Por sua vez, se expandiram as lutas de outros grupos sociais que se sentem vítimas da história, e que competem pelo reconhecimento e o respeito da diversidade.

Não que tenham desaparecido os sentimentos e a subjetividade associada a ser parte de uma minoria cognitiva, mas certamente foram amortizados.

Mas se a diáspora não é mais o que foi no passado, o Estado de Israel está longe da normalidade imaginada pelos idealizadores do Sionismo. A história, como sempre, se mostra mais complexa e ambígua que as ideologias.

O Estado de Israel, como qualquer outro estado nacional, não é igual aos outros. Ele foi construído na suposição da unidade do povo judeu. A chegada de emigrantes dos mais diversos países mostrou a enorme diversidade e heterogeneidade cultural dos judeus. A onda de emigrantes advinda dos países árabes, logo após a independência, e que dobrou a população do país, era culturalmente distante do judaísmo secular europeu que montou as bases do Estado, e que ocupava os cargos dirigentes, gerando ressentimentos que se traduziram em partidos políticos étnicos tradicionalistas. Processo paralelo se deu com a emigração da União Soviética que chegou a partir dos anos oitenta, de orientação secular e com uma orientação de direita.

O sionismo surgiu da diferenciação entre identidade nacional e identidade religiosa, que estiveram amalgamados por quase três milênios. O sionismo, um movimento fundamentalmente secular, decidiu não esperar a chegada do Messias, retirando o destino dos judeus das mãos de Deus.

A separação entre estado nacional e religião, contudo, nunca foi claramente resolvida, sobretudo a relação entre judaísmo e democracia. Pelo contrário, com a passagem do tempo ela ficou cada vez mais confusa. Inicialmente, porque o judaísmo religioso que foi a referência da liderança política dos líderes israelenses era o judaísmo rabínico tradicional e não as correntes reformistas e conservadoras embebidas dos valores da modernidade. Com a criação do Estado, parte das competências de direito civil e da definição de quem é judeu foram transferidas para as autoridades religiosas ultra-ortodoxas. Posteriormente, com a conquista dos territórios palestinos, a religião foi utilizada para justificar políticas de colonização em nome de um passado bíblico e, sobretudo, alimentou um nacionalismo religioso messiânico, que convergiu com o nacionalismo extremo secular sionista.

As relações conflitivas entre os princípios de um estado democrático secular e as tradições religiosas pregressas não é alheia a maioria dos países democráticos. No caso de Israel, a relação ficou mais conflitiva pela escolha, no momento de criação do estado, como único representante e interlocutor legítimo da religião judaica, os judeus ultraortodoxos. Escolha, essa, que aguçou o potencial destrutivo da presença de narrativas e interesses religiosos na vida política.

Em Israel a visão da diáspora como uma longa noite de perseguições, que devia ser esquecida, promovido pela ideologia sionista, conviveu sempre com o sentimento cotidiano dos israelenses de que a vida na diáspora era cheia de oportunidades e conforto. Não podemos esquecer que o movimento migratório para Israel, nos grandes números, foi de países com padrões de vida mais baixo ou com perseguições políticas. Os idealistas foram minoritários. E hoje se calcula que em torno de um milhão de cidadãos israelenses, boa parte deles judeus, vivem hoje fora de Israel, sendo um quarto deles nativos.

Encontros e desencontros entre a diáspora e o Estado de Israel

A particular sensibilidade da condição diaspórica foi mudada pela existência do Estado de Israel. Os judeus finalmente possuem um Estado próprio ao qual podem se mudar se assim o desejarem, sem ter que esperar a chegada do Messias. Na diáspora, sobretudo, a existência de Israel produziu um sentimento de empoderamento associado a capacidade militar do país e de orgulho com suas realizações no campo científico e tecnológico. Ele teve um efeito difícil de exagerar na psique de um povo que viveu durante dois milênios sem capacidade de se defender da violência da maioria. Paradoxalmente, se a existência do Estado de Israel produziu um empoderamento psicológico se transformou também, dado os desafios geopolíticos do país, em fonte renovada da angustia existencial. O país que gerou um sentimento de segurança, ao mesmo tempo, não eliminou, pelo contrário, as inseguranças e medos enraizados na psique coletiva.

O Estado de Israel passou a ser parte da identidade do judeu diaspórico, isto é, sua existência é uma referência que mobiliza os mais diversos sentimentos, mas nunca a indiferença, e, quase sempre, de preocupação com seu destino.

Um dos efeitos secundários sobre a identidade diaspórica produzidos em parte pelo Estado de Israel foi a perda, por parte de setores da comunidade judaica, do que podemos chamar a sabedoria histórica incorporada à condição de um grupo minoritário. Em particular, setores de maior sucesso econômico que temperavam seus interesses de classe com uma maior sensibilidade social e cultural perante as causas de setores subalternos passaram a apoiar agendas de extrema direita. Nesta nova constelação, setores das comunidades judaicas se alinham com líderes antidemocráticos na política nacional e apoiam as posições de governos de direita de Israel, distantes dos valores e dos interesses de longo prazo da vida na diáspora.

Paradoxalmente, o sentimento de insegurança existencial que era associado a condição diaspórica, se manteve até com maior intensidade em Israel, pelo risco representado por um meio ambiente hostil, incluindo países e organizações que declaram a vontade de destruição da “Entidade Sionista”. Igualmente paradoxal, parte do antissemitismo vivido hoje na diáspora se origina em grupos islâmicos ligado ao conflito no Oriente Médio.

O vórtice que une Israel e a diáspora é o Holocausto. A destruição do Segundo Templo foi interpretada pelos rabinos como dando início ao Galut e que terminaria com a chegada do Messias. O drama humano muito maior que foi o Holocausto não levou a nenhuma mudança maior nas narrativas das diversas correntes religiosas. Elas ficaram entre o silêncio e o reconhecimento que estamos em face do indecifrável, quando não em explicações indecentes, feitas por alguns poucos rabinos ultraortodoxos, como sendo um castigo divino. Para a maioria dos judeus a resposta dada pela história foi de ordem secular.

Para boa parte dos judeus da diáspora, a lição do Holocausto foi que somente o respeito dos direitos humanos e a democracia asseguram um ambiente em que podem prosperar e onde não serão perseguidos. No Estado de Israel, o Holocausto foi associado com os riscos de destruição do país por seus vizinhos e a necessidade de possuírem forças armadas que assegurem sua sobrevivência. Israel, que deveria ser um lugar onde os judeus estariam a salvo das perseguições, dada a disposição de países do mundo muçulmano e de grupos palestinos de destruí-lo, criou um elo que uniu a maioria dos judeus do mundo em torno do apoio e da defesa do país.

O risco existencial de Israel criou um vínculo profundo na diáspora, mas também, inversamente levou a que Israel dependa de seu apoio. A visão de Ben-Gurion no início dos anos cinquenta se mostrou equivocada, assim como a de muitos israelenses, como, por exemplo, o escritor A. B. Yehoshua. Ben-Gurion afirmou que com a criação do estado de Israel o sionismo deixaria de existir e que os judeus deviam fazer alia ou se assimilar. Acontece que a diáspora não só continuou a existir como –em particular a comunidade nos Estados Unidos–, passou a ser um apoio importante da política externa israelense. A. B. Yehoshua, por sua vez, sempre expressou seu desprezo pela diáspora, afirmando que somente em Israel podia existir uma vida verdadeiramente judia. Afirmação curiosa vindo de um judeu secular e humanista, considerando que somente na diáspora todas as correntes do judaísmo convivem e florescem sem discriminação entre elas, e o judaísmo não é utilizado por correntes políticas para justificar posturas nacionalistas xenofóbicas e racistas.

A defesa dos direitos humanos na diáspora e o uso da força militar em Israel, são duas faces da mesma experiência histórica, que em situações como as relacionadas a questão palestina, produz rasgos e divisões no interior das comunidades judias.

O Estado de Israel se auto delegou a representação do povo judeu, e boa parte das instituições judaicas da diáspora foram transformadas em instrumentos de defesa do Estado de Israel perante a opinião pública, levando ao apoio e justificação de toda e qualquer política do governo de Israel e a perda de autonomia política.

Seja em temas gerais como a defesa dos direitos humanos, de uma visão pluralista do judaísmo, da avaliação de episódios de antissemitismo (que os governos israelenses muitas vezes sobrestimaram para promover a emigração), o reconhecimento da diversidade de correntes religiosas dentro do judaísmo ou a procura de uma solução pacífica para o conflito com os palestinos, a relação entre os governos de Israel e as diásporas contém tensões geralmente não explicitadas.

As lições extraídas do Holocausto, de defesa dos direitos humanos, são colocadas em suspenso frente a eventuais transgressões das forças armadas israelenses na medida em que elas protegem o país de ataques inimigos. A ocupação dos territórios palestinos após a guerra de 1967, e posteriormente a política de colonização, são ignoradas ou tratadas com declarações inócuas sobre a expectativa de uma futura solução do conflito.

Na medida em que o Estado de Israel transforma a ocupação em permanente, por mais que se distinga entre atitudes de governos e a existência do próprio Estado (distinção, essa, que se sustenta em certo excesso de boa vontade, mas também no perigo real representado por aqueles que negam o direito a existência de Israel), a tensão pode aumentar os conflitos e rupturas no interior das comunidades judias na diáspora.

Governos de Israel, como o atual com seu ataque as instituições democráticas, com ministros que não se envergonham de expressar em público opiniões racistas e xenofóbicas, e que se aproximam de grupos de extrema direita europeia, dificilmente poderão seguir sendo tratados com condescendência.

Judaísmo no Brasil

Para finalizar, gostaria de me referir rapidamente a algumas caraterísticas que o judaísmo latino-americano e o judaísmo brasileiro. O judaísmo em nossa região é um judaísmo periférico, isto é, com pouca autonomia cultural, associado a uma baixa, e decrescente, densidade demográfica.

O judaísmo sempre teve um ou vários centros hegemônicos que influenciaram as diásporas periféricas, sendo historicamente o mais importante o situado na Babilônia, e na atualidade nos Estados Unidos e em Israel, em torno dos quais, a partir da segunda metade do século passado, as instituições judaicas latino-americanas passaram a orbitar. De forma simplificada, diria que do judaísmo americano recebemos a influência religiosa –do movimento conservador, do reformista e dos Lubavitch. Este último modificou o panorama do judaísmo ortodoxo tradicional, trazendo técnicas de proselitismo inovadoras, e se transformou na principal referência do judaísmo religioso ortodoxo. As correntes reformistas e conservadoras, que inicialmente se encontravam na margem da comunidade, associadas as comunidades vindas da Alemanha, passaram a concentrar o maior número de afiliados.

De Israel veio a influência política nas instituições representativas da comunidade, que passaram a ter na sua defesa uma de suas principais missões, e penetrou nas escolas judaicas através da utilização do hebraico como matéria obrigatória e em geral a utilização de símbolos, narrativas e o ensino do hebraico.

Na América Latina, a baixa densidade demográfica se expressa em uma maior dependência, seja de ordem política como psicossocial, dos centros hegemônicos, em particular de Israel, e uma produção cultural de limitada produção. Situação, esta, potencializada tanto pelo afastamento de parte dos setores seculares das instituições da comunidade quanto pela tendência de parte dos indivíduos com maiores recursos econômicos de concentrar seus apoios em grupos religiosos ortodoxos ou em Israel.

As transformações sociais, econômicas e políticas da região afetaram igualmente as caraterísticas das comunidades judias, uma área muito pobre em pesquisas empíricas. Gostaria de assinalar somente um tema, o a expansão no Brasil, mas também em outros países latino-americanos, de correntes evangélicas. O tema tem sido analisado desde a perspectiva da atual conjuntura política, em particular da utilização de grupos de extrema direita de símbolos judaicos, e, em particular da bandeira do Estado de Israel. Sem desmerecer a importância do fenômeno, acredito que existe uma outra dimensão da relação entre cultos evangélicos e judaísmo que é a de um olhar diferente do judaísmo. Em que medida este olhar pode ser dissociado dos atuais usos políticos é uma pergunta em aberto.


Nos tempos modernos os judeus transitaram um longo caminho. Quando o grande filosofo Moisés Mendelssohn entrou em Berlin pelo portão onde passava o gado, pagando o mesmo imposto que uma cabeça de animal, no fim do século XVIII, até as sociedades atuais, em que somos cidadãos plenos, há um longo percurso marcado pelo abismo do Holocausto.

As sociedades se transformaram e, com elas, a condição judia. Seguimos enfrentando desafios particulares como uma comunidade, mas somos sobretudo, cidadãos do país em que vivemos e parte da humanidade que enfrenta enormes desafios, desde o futuro das democracias e a crise ambiental, aos usos da inteligência artificial e conflitos bélicos.

A nova realidade requer a capacidade de olhar para o futuro, sem ficarmos paralisados em visões que olham o presente através das imagens que nos transmite o espelho retrovisor. O que não implica que devemos idealizar a complexidade da condição judaica, nem nos iludir pensando que conceitos como identidades hifenizadas ou múltiplas se referem a dimensões de nossa subjetividade e da vida social que convivem de forma harmoniosa. Nunca é o caso. Seja na vida interior ou na convivência social, enfrentamos constantemente conflitos entre o particular e o universal, e os choques entre as demandas de diversos valores, interesses e afetos. O primeiro passo, como cientistas sociais e como indivíduos, é explicitar os conflitos do presente e os herdados do passado, de forma que sejamos capazes de lidar com as exigências contraditórias de uma identidade judaica que, como toda identidade coletiva numa sociedade democrática, exige a valorização da liberdade, a autonomia e o reconhecimento, inclusive, da dimensão trágica da existência humana e dos caminhos da história.

Nota: O texto sobre Judaísmo diaspórico e judaísmo israelense foi apresentado por Bernardo Sorj na conferência inaugural do I Congresso Internacional de Pesquisadores de Estudos Judaicos realizado em São Paulo no dia 6 de novembro de 2023.


BERNARDO SORJ

Bernardo Sorj, cursou o B.A. e M.A. em História e Sociologia na Universidade de Haifa, Israel, e obteve o título de Ph.D. em Sociologia na Universidade de Manchester, Inglaterra. Foi professor de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais, do Instituto de Relações Internacionais da PUC/RJ e professor titular de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi professor visitante em diversas universidades e centros de pesquisa na Europa, Israel e nos Estados Unidos. Autor de 30 livros publicados em várias lingas e mais de 100 artigos acadêmico. Atualmente é diretor do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais e de Plataforma Democrática.

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