Eu, a refém – Por Paulo Rosenbaum 

(uma reflexão sobre o cessar-fogo em Gaza)

“Quem salva uma vida, salva o mundo”- Talmud

‘Depois de 15 meses encontrei um papel e um pedaço de carvão. E para meu espanto hoje a guarda e os 5 carcereiros que ficavam conosco desde o início fizeram vista grossa. Dentro deste túnel não sinto mais nada. Isso é, eu aprendi a não sentir nada. Imagino o que falam de mim e dos meus irmãos e irmãs presas neste subsolo do mundo. Mesmo que eu fosse um exímia narradora — seria inútil tentar explicar o que é que vivemos desde que fomos arrancados de casa no dia 07 de outubro. Venho de uma família que teve que fugir da limpeza étnica que os iraquianos fizeram com os judeus. Meu árabe não é grande coisa, mas consigo capturar o essencial. O que ouço são rumores, talvez eu e outras reféns sejamos liberadas nos próximos dias. Me pergunto se serão todos, alguns, poucos? Chamam de cessar-fogo. Só se for para eles, eu me sinto incinerada. Será justo deixar os demais aqui enquanto eu volto?

Já nos mudaram de lugar centenas de vezes, já me protegi dos abusos e agressões, já implorei por comida, rastejei por um gole d’água e já lambi restos do chão. Ninguém da cruz vermelha, nenhuma organização feminista. Gente da Unwra nem pensar. Entram toneladas em ajuda humanitária e os malignos se apossam de tudo e vendem para o população. Nós, não recebemos nem as migalhas. Sabe, você se acostuma a não ser nada. Você se acostuma a ser esquecida. Como era mesmo o lema: “ninguém será deixado para trás”. Conta outra.

Sou o que sobrou de toda essa insanidade. Não que alguém ligue, mas não confio em mais ninguém. Durante as noites, quando não somos torturadas – tenho uma ferida na perna que não cicatriza nunca – tenho vontade de gritar. Ontem, o adolescente civil que é filho de um dos casais que nos mantem acorrentadas veio várias vezes nos olhar, e nos seus olhos enxerguei o abismo. O abismo do ódio. Um ódio intransponível Ele, que já me queimou várias vezes o pescoço com um cigarro aceso, hoje entrou na caverna novamente. Achei estranho, vai ver, pensei, será o desfecho, ele veio aplicar o golpe final. Sabem que até já perdi o medo? Tive algum alivio e desejei que ele viesse com a faca para fazer o serviço. Claro que não posso gritar, e uma vez quando falei mais alto levei uma coronhada que me arrancou dois dentes da frente.

Chamam de cessar fogo. Paz é que não é. Nem será. Eu vi o jornal deles e eles sabem que assim será com ou sem o novo presidente americano. Que ingenuidade do mundo achar que a questão era por disputa de terra ou Israel. É evidente que eles não admitem que os judeus vivam! Ponto.

Eles são o que são, nem sei se ainda podemos chamá-los de humanos. O que será que fizemos além de existir para receber isso de volta? Nos acusam de tudo. Dizem que somos maus. Agora vieram com a balela woke: somos colonizadores! Céus, estamos aqui desde o inicio dos tempos. Mas quem se importa com a verdade? Eles montaram uma máquina de desinformação e com uma maozinha da mídia internacional espalharam a calúnia de um genocídio imaginário. E é mentira que o mundo se calou: parte do mundo ovacionou aqueles que nos massacraram. Se eu perdoo? Aprendi que o perdão é irracional, e hoje acordei com zero vontade de perdoar.

Eles se incomodam de ser chamados de terroristas, mas os bebes decapitados e as mães queimadas vivas não mentem: eles são o próprio terror. Hoje cedo ouvi um deles falar que deveriam nos matar a todas, mas o chefe retorquiu: “elas são valiosos”. Um deles disse e os outros repetiram aquelas palavras de ordem achando que reverenciam o divino. Para mim soa como um mantra horrendo, uma clara invocação do mal. Eles nos ameaçam e juram que o odio deles será eterno. Eu não ligo porque sei que nosso povo não nos abandonaria. Bem entendido “nosso povo” não tem nada a ver com os politicos que nos trouxeram até esta situação deplorável. E sabem, não me interessa mais saber quem errou, nem onde estava a falha. Eu agora me pergunto sobre o nosso valor. Somos valiosos para quem? Se eu for libertada, juro, vou mergulhar num outro tipo de existência.

Eles cantam vitória! Estranho, porque aposto que eles perderam muitos militantes, mas eles ficam excitados com a morte. Se conseguir sair daqui nunca mais respirarei da mesma forma. E mesmo quando eu puder esticar as pernas e rodeada de pessoas que amo, não deixarei de lembrar o que nos fez chegar aqui. Dizem que o acordo é péssimo para o nosso povo, acredito. Deve ser horrível, lamentável, hediondo. Talvez seja o pior acordo de todos os tempos, péssimo m, mas ele se tornou inevitável. Não digo isso por mim, nem pelas mulheres cativas, mas porque a Nação precisa desesperadamente restituir uma simbologia perdida: ninguém será desprezado. Nós somos a garantia moral de uma civilização.

E hoje compreendo porque finalmente a máxima do sábio Hillel: a nossa Torah se resume em não fazer ao outro o que você nao deseja para si mesmo.

Um acordo onde o agressor exige tudo e tem todas as prerrogativas?

Nao sou uma religiosa e aqui rezei como nunca. Sou apenas uma judia inquieta e curiosa. Se quiserem me chamar de ortodoxa podem, se quiserem falar que sou laica ok também. Eu cheguei aqui com 19 e agora estou quase chegando aos 21, me pergunto se já vivi o suficiente. So digo o seguinte, cada dia aqui vale por 100 anos. Então concluo que tenho a densidade de Matusalém e apesar de ter perdido 20 kilos, sinto como se tivesse o peso de uma baleia gravida.

Um dia me olhei num pedaço de espelho e percebi algo chocante: essa não sou mais eu. A maior parte de mim mesma evaporou.

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Eles estão agitados e cantando vitória! Ninguém precisa nos amar, bastaria viver e nos tolerar, e, ao contrario das outras pessoas que estavam algemadas comigo não fiquei chocada com isso, os judeus nunca deveriam se espantar com nada.

Fiquei chocada com aqueles que se recusaram a se colocar no nosso lugar. E enquanto estou escrevendo estas palavras sei que uma parte do mundo torce por eles. E eles sabem o que fazem. E uma paz que não mergulhe na raíz, que não estude como a intolerância está impregnada nesta parte do mundo, que não pesquise outras soluções – ainda acho que elas existem –não merece ser chamada de shalom.

Chamam de cessar fogo porque sabem que nada está sendo resolvido. Será apenas um silencio provisório seguido de novas rodadas de hostilidades. Como negociar com blefes infinitos? Eu não sei as clausulas envolvidas, mas pesquei que será uma troca 1000 assassinos entre eles 100 condenados a prisão perpétua por alguns poucos de nós. 33 para ser exata. Muitos destes só cadáveres. Por que? Tentaram me explicar a aritmética dos tais acordos, confesso que não me entra na cabeça.

O que vi e vivi aqui não pode ser comparado com nada conhecido. E eles tem orgulho do que são. Ninguém precisa nos amar, bastaria viver, e, ao contrario de outras pessoas que estavam algemadas comigo, não fiquei chocada com isso, um judeu não deve se espantar com nada. Por mais que tentemos demonstrar nossas virtudes, o mundo costuma nos interpretar mal.

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Parece que vão nos preparar para a troca. Tenho esperança agora, mas sei que ela não será duradoura. Enquanto eu lembrar dos olhos daquele adolescente todas as minhas forças ficarão em estado de animação suspensa. Meu Pais encontra-se tão dividido como eu, e não vejo nenhum tipo de cola para nos aglutinar de volta.

Estou trêmula. Tudo pode fazer água. Eles não têm palavra.

Neste minuto acabamos de entrar no carro de alguma dessas organizações humanitárias mundiais fantasmas que até agora não tinha dado as caras por aqui. Dizem que vão nos deixar na fronteira. Eu me sinto a fronteira. Eu sou a fronteira.

O carro enfim para.

O País todo está parado. O País envelheceu muito. O País ganhou as batalhas. O País perdeu muito. O País exige mudanças drásticas. O Pais precisa renascer. O País sabe que a luta é infinda.

Vejo os rostos incrédulos e suplicantes das famílias que nos esperam. Voltei a sentir. Depois de 15 meses sinto o ar novamente entrando em mim. Eu choro e me pergunto: o que será de nós? De todos nós.

Por hoje, pelo menos só por hoje, todas aquelas milhões de vozes litigantes silenciaram.

O País chora e ri ao mesmo tempo, como os histéricos.

Pode ser que a cola esteja funcionando.

Deus queira que sim”.


Paulo Rosenbaum

Médico e escritor, mestre em medicina preventiva, doutor em ciências (USP) e pós doutor em Medicina Preventiva (FMUSP) , autor de Outro Código da Medicina, Medicina do Sujeito, Novíssima Medicina, Entre Arte e Ciência, as bases hermenêuticas da homeopatia. Na literatura publicou os romances “A Verdade Lançada ao Solo” (Ed. Record, 2010), “Céu Subterrâneo” (Perspectiva, 2016), “A Pele que nos Divide” (Poesia – Quixote-Do, 2018). Desde 2013 edita e publica o Blog “Conto de Notícia” no Jornal O Estado de São Paulo.

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