Anemia: tudo sobre ela – Dr. Nelson Hamerschlak

Anemia é um termo extremamente genérico e pode-se referir a uma série de doenças diferentes, com manifestações, causas e tratamentos diferentes. A causa mais comum de anemia em crianças é a deficiência de ferro que pode ser prevenida com a amamentação materna e com o uso de medidas simples junto aos hábitos alimentares.

Introdução
Para melhor entendermos o conceito de anemia, seus tipos, suas causas, manifestações e tratamento, alguns conceitos se fazem necessários.

O sangue é composto do plasma e células em suspensão. O plasma é formado por água na qual dissolve-se várias substâncias químicas que incluem: proteínas, hormônios, minerais, vitaminas e anticorpos, inclusive aqueles produzidos nas nossas vacinações.

As células são os glóbulos vermelhos, plaquetas e os glóbulos brancos que se dividem em neutrófilos, eosinófilos, basófilos, monócitos e linfócitos.

Os glóbulos vermelhos significam quase 50% do volume do sangue. Eles são preenchidos por uma proteína chamada hemoglobina com a função de captar oxigênio nos pulmões e levá-lo aos tecidos. As plaquetas são elementos pequenos (1/10 do tamanho dos glóbulos vermelhos) que auxiliam o organismo a controlar as hemorragias. Por exemplo, quando nos ferimos, as plaquetas formam uma espécie de rolha no local onde um determinado vaso sanguíneo foi rompido. Posteriormente uma espécie de cola (fibrina) garante a formação de um coágulo forte. As plaquetas podem ser comparadas aos tijolos de uma parede e os fatores de coagulação que formam a cola (fibrina), ao cimento.

Os glóbulos brancos estão envolvidos na defesa contra as infecções e na manutenção de nossa imunidade.

A medula óssea (tutano) é um tecido que parece uma esponja onde se dá o desenvolvimento das células sanguíneas. Ela ocupa a parte central dos ossos. Todos os ossos são ativos na fabricação do sangue quando nascemos. No entanto, a medida que o tempo passa a medula de alguns ossos deixa de funcionar.

Nos adultos jovens, os ossos das mãos, pés, braços e pernas não possuem medula ativa. As vértebras, bacia, ombros, costelas e externo mantém a fabricação.

O sangue passa através da medula óssea e atinge a circulação sanguínea (local onde coletamos os exames de sangue).

O processo de formação do sangue é chamado de hematopoiese. Um pequeno número de células chamadas células mães ou células tronco são as responsáveis pela fabricação do sangue na medula óssea. Podem se transformar nas diversas células do sangue através de um processo chamado diferenciação.

Conceito
A anemia pode ser definida como uma deficiência da oxigenação dos tecidos por diminuição da capacidade de transporte de oxigênio pelo sangue devido a uma redução na concentração da hemoglobina (proteína transportadora). Como o sangue circula por todo o organismo, as conseqüências da anemia podem manifestar-se com um conjunto amplo de sintomas e sinais incluindo palidez, cansaço, desânimo, sonolência, palpitações, dor de cabeça, perda do poder de concentração e irritabilidade.

Causas
Abaixo, as causas mais importantes de anemias em crianças:

Anemias Carenciais:

Anemia Ferropriva
A anemia ferropriva é a causa mais freqüente de anemia em crianças. O ferro é imprescindível na formação da hemoglobina, portanto a sua falta leva a uma diminuição do conteúdo de hemoglobina no glóbulo vermelho.

Geralmente, a falta de ferro ocorre por uma deficiência de ingesta, porém pode ocorrer por perda crônica de sangue ou por defeitos de absorção.

O aleitamento materno protege a criança pela passagem e absorção sistemática do ferro pela amamentação. O leite de vaca não contém ferro suficiente para prevenir a anemia. A dieta alimentar de uma criança com anemia ferropriva deve sempre que possível incluir carne ou suco de carne. O fígado, a carne de vaca, o peixe e o frango são ricos em ferro. Muitos vegetais como o espinafre possuem altas concentrações de ferro, porém o ferro de origem vegetal é de difícil absorção. Sucos de laranja e limão, por possuírem altas doses de vitamina C, facilitam a absorção do ferro.

Detectada a anemia, além da dieta alimentar pode-se usar panela de ferro ou mesmo utensílios com ferro para cozinhar os alimentos de forma geral. O ferro passa da panela para os alimentos. As crianças devem ser submetidas também a exames de fezes, pois alguns vermes como o ancilóstoma pode causar anemia.

O uso de vitaminas a base de ferro deve ser orientado pelo seu médico.

Deficiência de ácido fólico e de vitamina B12
A deficiência do ácido fólico e da vitamina B12 produzem o mesmo tipo de alterações na forma das células sanguíneas da medula óssea e do sangue. Os glóbulos vermelhos tornam-se grandes ou macrocíticos. O diagnóstico é feito pela observação microscópica destas células grandes ou através da dosagem específica do ácido fólico ou da vitamina B12. O tratamento é feito através da reposição destes elementos. A deficiência destes elementos como causa de anemia não é frequente em crianças.

Anemias Hemolíticas

Sob o nome de anemias hemolíticas estão agrupadas um número de doenças que tem como anormalidade comum a diminuição da vida média dos glóbulos vermelhos.

Anemia Falciforme e outras hemoglobinopatias: é uma alteração genética da hemoglobina que pode causar anemia. Em pessoas com resultados normais no exame de laboratório chamado eletroforese encontramos as hemoglobinas A1, A2 e F. Nas pessoas com hemoglobinopatias, podem aparecer diversos outros tipos, por exemplo, S, C, D, H, I. A quantidade de hemoglobina anormal define se um indivíduo pode ser somente portador do gene ou se apresenta anemia como doença.

A hemoglobinopatia mais comum é a anemia falciforme. O portador AS (indivíduo que apresenta a hemoglobina A e S) geralmente é assintomático. Pode apresentar sintomas quando existem fatores desencadeantes como: infecções graves, anestesia com baixa oxigenação, exercício físico muito intenso. Sua detecção em uma família é importante para efeito de aconselhamento genético. O paciente com a doença SS (presença das duas hemoglobinas S), apresenta já no primeiro ano de vida anemia, icterícia (mucosas amarelas), dores ósseas, articulares e abdominais. Alguns pacientes apresentam sangue na urina (hematúria). Entre outras hemoglobinopatias destacamos a SC, ST e CC.

Talassemia : A talassemia, anemia do Mediterrâneo ou ainda anemia de Cooley, predomina na região do Mar Mediterrâneo sendo os povos mais atingidos os italianos, gregos, espanhóis e portugueses.

A talassemia pode ser do tipo minor ou major. O talassêmico minor geralmente não apresenta qualquer sintomatologia a não ser em situações especiais como gravidez, deficiências nutricionais, pós operatórios ou infecções prolongadas. Mesmo assim, raramente necessitam tratamento. Recomenda-se apenas, de uma forma geral, o uso de vitaminas importantes na fabricação dos glóbulos vermelhos como o complexo B e o ácido fólico. Nas formas major é necessário o uso de transfusões periódicas e de medicamentos que evitem o acúmulo de ferro nos tecidos.

Esferocitose hereditária: é uma doença com grau de severidade variável podendo se manifestar na infância ou mesmo na fase adulta. Estima-se sua ocorrência em 1/10.000 indivíduos. A anemia se manifesta em crises, geralmente desencadeadas por infecções às vezes até triviais como uma gripe. Em pacientes com crises sucessivas e frequentes, a retirada do baço pode ser curativa.

Deficiências enzimáticas: A mais frequente das deficiências enzimáticas causadoras de anemia hemolítica é a da Glicose 6 Fosfato Desidrogenase (G6PD). Quase todos os deficientes desta enzima são assintomáticos sob condições normais. A crise de hemólise se dá por ingestão de medicamentos ( sulfas, barbitúricos e antimaláricos), de fava, assim como infecções de forma geral. Os pacientes devem ser orientados sobre como evitar estes fatores desencadeantes e a procurar o serviço médico quando necessário.

Anemia Hemolítica Auto – Imune: Nesta situação, a criança forma um anticorpo contra os seus próprios glóbulos vermelhos, destruindo-os. Este fato pode ocorrer devido à imaturidade do sistema imunológico na infância. Às vezes, uma infecção viral, um medicamento ou mesmo uma vacina pode estinular o organismo a se defender também de forma errada destruindo suas próprias células. Estes casos costumam ser benignos e se resolvem espontaneamente. Quando isto não ocorre, pode ser necessário o uso de corticoesteróides, atuando como imunossupressores.

Anemia Hemolítica Peri-Natal: Ocorre por incompatibilidade sanguínea materno-fetal. Pode ocorrer no sistema Rh, ABO ou mesmo em outros sistemas de grupos sanguíneos. Geralmente, o recém-nascido apresenta também icterícia. Dependendo da gravidade, fototerapia, transfusões e até a chamada exsanguíneotransfusão (troca de sangue), podem estar indicados como tratamento.

Anemias por deficiência ou defeitos de formação dos glóbulos vermelhos

Incluem-se aqui as formas de anemia provocadas por uma hematopoiese (produção e diferenciação das células do sangue insuficiente ou defeituosa). As deficiências de produção podem ser congênitas ou adquiridas. Anemia de Fanconi, Aplasia Pura de Série Vermelha ou mesmo a Anemia Aplástica são exemplos de doenças relacionadas à diminuição da quantidade de tecido hematopoiético.

A Mielodisplasia é uma doença que se caracteriza pela produção defeituosa e ineficiente de células pela medula óssea.

Todas estas situações mencionadas neste ítem são graves e de tratamento complexo.

Conclusão
Anemia é um termo extremamente genérico e pode-se referir a uma série de doenças diferentes, com manifestações, causas e tratamentos diferentes. A causa mais comum de anemia em crianças é a deficiência de ferro que pode ser prevenida com a amamentação materna e com o uso de medidas simples junto aos hábitos alimentares. No entanto, na presença de um quadro anêmico, a investigação deve ser bem realizada para o correto diagnóstico e tratamento.

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Dr. Nelson Hamerschlak

Professor Livre docente pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Professor Pleno da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein. Coordenador do programa de Hematologia e Transplantes de Medula Óssea do Hospital Israelita Albert Einstein . Ex-presidente da Sociedade Brasileira de Transplantes de Medula Óssea