SERIAM OS 10 MANDAMENTOS DE MOISÉS A ORIGEM DA DEMOCRACIA? – Por Jayme Vita Roso

Parte 1

Louis Knaster” zl

Jacques Hasson” zl

1. A professora Debora Tonelli, para os Annali di studi religiosi (anais de estudos religiosos) da Fundação Bruno Kesslers, escreveu Le tavole di Mosè: I dieci comandamenti e l’origine della democrazia (As tábuas de Moisés: os dez mandamentos e a origem da democracia. Bolonha: EDB Sguardi, 2014).

Na época que veio à luz, colecionado como dito, Sguardi já possuía ter dezenas de textos em que aparecem Gianfranco Ravasi (Darwin e o Papa), como Habermas, Paganini, Arendt, Acquaviva, Hans Maier, Christoph Theobald e Philippe Charrou (A teologia de Bach).

2. Qual o propósito deste livro de Toneli?

Da Introdução, o texto esclarece, em síntese, o brilhantismo da autora:

A escolha de tratar um texto bíblico no âmbito filosófico-político precisa ser esclarecida devido ao preconceito, bastante difundido, que identifica na Bíblia um texto exclusivamente religioso. Pelo contrário, quem escreve está firmemente convencido de que ela, como todos os textos que contam e transmitem a cultura de um povo, estimula a compreensão e as interpretações em diferentes níveis – religioso, antropológico, literário, político, histórico, mítico – sem que nenhum exclua os outros. A necessidade de recuperar o texto bíblico como texto político baseia-se, portanto, em três considerações fundamentais: a primeira consiste em reconhecer nele uma das principais fontes da cultura jurídica ocidental. A moderna ciência jurídica, de fato, se desenvolveu a partir do direito romano e do direito canônico, que, por sua vez, remetia diretamente ao texto bíblico. Conceitos como “igualdade”, “dignidade humana”, “justiça”, fazem parte da herança bíblica. A segunda consideração consiste em reequilibrar as relações entre reflexão moderna e tradição antiga, que muitas vezes é identificada unicamente com a filosofia grega e o direito romano. Nessa perspectiva, a recuperação do texto bíblico se configura como uma estratégia para oferecer um quadro mais completo do panorama original do pensamento ocidental. Daí decorre uma terceira consideração, que consiste no enriquecimento dos recursos aos quais a moderna reflexão política pode recorrer para aprofundar sua compreensão da isonomia como prelúdio à democracia. (2014, p. 5-6)

3. A democracia não veio de repente como modelo de governo. Teria surgido, então, como modelo no livro do Êxodo?

No livro do Êxodo, o Decálogo aparece logo após a estipulação do pacto (berit) entre Deus e o povo (Êxodo 19,1-8) e antes das minuciosas leis relacionadas ao altar. Após séculos de escravidão e a fuga do Egito, no momento em que o povo de Israel está finalmente livre e não precisa mais temer nada, YHWH o chama para fazer uma aliança e definir seus respectivos papéis: a aliança é proposta pelo Deus libertador ao povo apenas depois que este já obteve a coisa mais importante: a liberdade. A berit não tem função coercitiva: Israel poderia até mesmo recusar. Mas, em vez disso, ela deve regular as relações entre seus contratantes. De acordo com o desenvolvimento da trama narrativa, a proclamação dos critérios dessa aliança é inserida após a aceitação do pacto por parte de Israel: não estamos diante de um tratado político abstrato, mas sim, de acordo com a linguagem da época, de sua “encenação”, do relato de uma experiência de libertação e de seu resultado político. Êxodo 20,2-17, conhecido como os “dez mandamentos”, expressa, na verdade, um número indeterminado de palavras, que fazem um resumo do que aconteceu antes: “Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão: não terás outros deuses diante de mim”. O texto hebraico enfatiza uma dimensão histórico-narrativa em vez de uma coercitiva: a afirmação da soberania de YHWH sobre o povo não é uma imposição, mas ocorre com base em uma experiência de libertação já realizada, “Eu sou o teu Deus porque te libertei”, onde esse “teu” é um singular coletivo que se refere à totalidade do povo, porque cada um de seus membros foi libertado. A igualdade entre os membros do povo é estabelecida pela relação com Deus, e essa relação é o único critério pelo qual o indivíduo é avaliado. (2014, p. 11-12).

4. Teria muito a colocar em defesa da autora, porque comporta lei e igualdade, foge o modelo grego e porventura moderno:

No âmbito legislativo, algumas características tornam Israel um caso à parte em relação à prática da época: a primeira, à qual já fizemos referência, é a relação direta entre YHWH e toda a totalidade do povo; a segunda, já mencionada, é a estipulação da berit sem intermediários; a terceira é representada pelo fato de que o propósito da Lei não é exaltar um líder, nem Deus, mas sim a relação entre o Deus libertador e seu povo. Essas três características destacam três aspectos diferentes da relação peculiar entre YHWH e Israel, que convergem para uma mesma conclusão: todos são iguais perante ele, ou seja, igualmente responsáveis e beneficiários do pacto. O “tu” com o qual YHWH se dirige a Israel é coletivo, mas não anula o indivíduo na comunidade. A Lei ocupa nela um papel central, porque é o único termo médio entre Deus e Israel, o único instrumento para preservar a liberdade e o único critério para verificar a fidelidade do povo ao seu Deus. A pertença ao povo de Deus não é determinada apenas pelos laços de sangue e descendência, nem apenas pela experiência da escravidão e da libertação; o aspecto decisivo é, antes de tudo, a aceitação consciente do pacto e dos princípios que o ratificam. Em outras palavras, é a ação responsável do homem que é determinante para a preservação da liberdade, pois o retorno ao Egito ainda é uma triste possibilidade. A liberdade não é conquistada de uma vez por todas.

A condição de igualdade estabelecida na berit é explicitada com maior clareza nos Dez Mandamentos, nos versículos 8-11, relativos à santificação do sábado: neles é estabelecido o descanso para todas as criaturas, homens e mulheres, escravos e livres, estrangeiros, crianças e animais. Sem qualquer distinção, todos são chamados a santificar o sábado segundo o único critério admitido por YHWH: todos são suas criaturas. Na versão do Deuteronômio, a motivação é diferente e consiste na libertação da escravidão: porque todos devem santificar o sábado. O descanso distingue o trabalho do escravo do trabalho do homem livre. Ao estabelecer o descanso também para o escravo, é como se ele não fosse mais totalmente escravo, porque, em um caso, sua dignidade como criatura é reconhecida, e no outro, sua liberdade é reconhecida. A igualdade diante de Deus impede que as desigualdades humanas se tornem absolutas, reduzindo, ou seja, o escravo apenas à sua condição de escravidão e fazendo esquecer que ele também é uma criatura. O descanso do sábado lembra que a essência do homem é a liberdade, não a contingência: a nova divisão teológica do tempo ajuda o homem a transcender o mundo e a se reunir com sua origem, não apenas temporal, mas ontológica. Liberdade e relação (com Deus e entre os membros do povo, nos espaços religioso e político) são os nós pelos quais o homem dá forma à contingência e, por isso mesmo, o dom da primeira implica também o dos debarîm, dos critérios para conservá-lo. Falamos de critério e não de norma porque se trata de princípios orientadores, princípios que incentivam o homem a agir de forma responsável, não a obedecer cegamente, e o induzem a garantir que os outros homens façam o mesmo: o homem se define como livre quando possui plena autonomia em suas decisões e, uma vez livre, Israel é responsável por suas ações. A vigilância do próximo, que não deve ser interpretada como controle, mas sim como cuidado, constituía um forte dissuasor para as transgressões: mais do que as sanções, era a vergonha que se queria evitar. Uma ação contrária ao caminho indicado pelo princípio não causava apenas um desequilíbrio social, mas se identificava com a recusa ao som da liberdade e de Deus.

Posto neste plano, além das convenções humanas, diante de Deus onde não há soberanos nem súditos e todos desempenham um papel importante para a sobrevivência do povo: a grande descoberta é que o bem de todos coincide com, ou ao menos favorece, o bem e a liberdade de cada um. A publicidade da Lei – proclamada oralmente por Deus e não escrita para aqueles poucos que seriam capazes de lê-la – e a participação de todo o povo tornam cada indivíduo responsável: a Lei não é imposta, mas proposta por Deus e torna-se vinculativa apenas porque cada membro do povo a aceitou. Isso significa que os mandamentos não têm qualquer função coercitiva, pelo contrário, obrigam o eu agente a questionar o significado de suas próprias ações não em relação a um evento único, mas na mais ampla dimensão de sua vida, inserida em uma comunidade. Ninguém pode se eximir de considerar tudo isso, se pretende pertencer ao povo, ninguém tem direito à “imunidade” e para garantir a observância dos Dez Mandamentos não são as sanções, que não se mostram mais eficazes para o crime, mas sim o apelo à responsabilidade individual.

Embora proclamada de cima para baixo, o indivíduo reconhece-se nesta Lei, porque ela conta a sua história. Toda a questão deriva da autoapresentação do Deus libertador (v. 2): isso significa que o que se segue não pode ser julgado como “certo” ou “errado”, mas sim aceito como algo que já faz parte da história de salvação que está sendo lembrada. A aceitação dos mandamentos como “Lei vinculante” ocorre com base no reconhecimento de que o v. 2 interpreta corretamente a história de Israel como história de salvação: Israel aceita os mandamentos não porque os julga “certos”, mas porque os reconhece como verdadeiros. O critério motivacional não é o julgamento ético, mas sim a veracidade histórica. A Lei, de fato, para funcionar, deve tocar o indivíduo em seu âmago: no caso de Israel, essa intimidade se baseia na lembrança da ação libertadora de YHWH e se traduz na fé nele; na era moderna, por outro lado – onde o primado é da razão e não da religião -, isso se expressa com a ética e seus valores. A intenção é a mesma, mas muda o instrumento para satisfazê-la. Ambos os caminhos têm um forte viés político: a ética busca conciliar o indivíduo e a comunidade; os Dez Mandamentos proclamam uma lei que não é apenas “divina”, mas vem daquele Deus libertador, YHWH, que Israel pode chamar pelo nome. Na possibilidade de ser nomeado e invocado, Deus estabelece com Israel uma relação privilegiada e corre o risco de que se abuse de seu nome: antes de ser súdito, Israel é interlocutor de seu Deus. Paradoxalmente, YHWH, embora seja Deus, não se assemelha a um faraó, nem a um soberano absoluto, embora deva ser absoluta a fidelidade do homem: a parte absoluta da relação, da escolha e da responsabilidade decorre da liberdade, que torna possível o relacionamento privilegiado entre Deus e Israel.

A história avança, as leis podem mudar, mas o que permanece é a relação que as anima, verdadeiro propósito de ambas. É nesta relação que nasce o conceito de “igualdade” diante de Deus e diante da Lei – e, portanto, também diante de seus representantes -, que alimenta, mesmo que com diferentes conotações, os modernos códigos jurídicos e que se coloca em clara oposição não apenas com a prática do antigo Oriente Médio, mas também com a experiência, alternativa à bíblica, da pólis grega. O próprio Habermas reconhece que: “o universalismo igualitário – do qual derivam as ideias de liberdade e convivência solidária, conduta de vida autônoma e emancipação, consciência moral individual, direitos humanos e democracia – é uma herança direta da ética judaica da justiça e da ética cristã do amor. Esta herança foi continuamente reabsorvida, criticada e reinterpretada sem transformações substanciais. Até hoje não temos alternativas.” Da mesma forma – mas isso nos surpreende menos – Taylor, para quem a cultura contemporânea, apesar do processo de secularização, ou talvez, em parte, graças a ele, herda diversos elementos da tradição judaico-cristã, no âmbito ético e político, a igualdade jurídica deriva, então, de levar em conta as desigualdades iniciais e adaptar a lei a elas, de modo que o resultado seja a igualdade de tratamento jurídico. Na Bíblia e no direito canônico, portanto, parte-se do reconhecimento das desigualdades contingentes para chegar à igualdade jurídica. No direito moderno, pelo contrário, este objetivo tornou-se o novo ponto de partida, uma vez que se transformou em um princípio abstrato que não leva em conta as diferenças contingentes e, portanto, constitui uma coerção da realidade.

A igualdade bíblica, posteriormente retomada pelo direito canônico, não é a mesma que a igualdade moderna, por pelo menos dois aspectos: por um lado, pelos objetivos que se propõem; por outro lado, pelo papel que a desigualdade desempenha na afirmação da igualdade. A igualdade bíblica afirma a relação do homem com Deus, enquanto a igualdade canônica tem uma intenção pastoral: para ambas, a ideia fundamental é a convicção de que o homem deve ser guiado pelo “caminho certo”. Entre o final da Idade Média e o início da era moderna, as fortes mudanças sociais, políticas, econômicas e culturais levaram ao surgimento da moderna ciência jurídica, que quase que completamente inverteu os pressupostos do direito, tornando-o uma construção formal e colocando-o na dimensão da abstração. Experiência e teoria não estavam mais em continuidade, pelo contrário, a segunda começou a orientar a primeira, circunscrevendo os limites da legitimidade da ação. O segundo aspecto que distingue de forma fundamental a igualdade de matriz bíblica da moderna é o papel que a desigualdade desempenha nelas. No primeiro caso, ela desempenha um papel importante, pois o reconhecimento dela deriva os elementos que permitem a implementação da igualdade jurídica. A característica do direito não é a sua universalidade, mas sim a capacidade de se adaptar ao particular. No caso do direito moderno, a afirmação da igualdade ocorre com base na negação das desigualdades reais. A característica principal do direito moderno é, portanto, a sua universalidade em relação ao indivíduo: a lei é igual para todos, sem possibilidade de se adaptar a cada um. A experiência da pólis se apresenta como uma terceira alternativa entre as duas já consideradas, entre o primado do indivíduo e a defesa a priori do direito, mas em que medida isso ocorre, devemos agora verificar (2014, p. 17-34).


Jayme Vita Roso

Graduado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, é especialista em leis antitruste e consultor jurídico de fama internacional, ecologista reconhecido e premiado, “Professor Honorário” da Universidade Inca Garcilaso de La Vega de Lima, Peru e autor de vários livros jurídicos. Saiba mais.

20
20