SERIAM OS 10 MANDAMENTOS DE MOISÉS A ORIGEM DA DEMOCRACIA? – Por  Jayme Vita Roso

Parte 2

Dando continuidade ao texto da autora:

Contrariamente a Habermas e Taylor, Dahl identifica a origem da democracia apenas na pólis grega, embora não deixe de reconhecer algumas ambiguidades: a primeira consiste na falta de uma definição precisa de “povo”, de modo que não se pode compreender o que os atenienses querem dizer com esse termo quando se referem a outros grupos humanos. A segunda, sobre a qual nos deteremos em breve, consiste em reconhecer que apenas poucos membros da cidade-estado eram considerados cidadãos, enquanto a maioria dos habitantes era mantida à margem da vida política. A experiência grega foi interrompida pela chegada do império macedônio e depois substituída pela experiência romana. Algumas evidências reaparecem ao longo dos séculos seguintes e ainda hoje constituem um elemento importante de reflexão para aqueles que se debruçam sobre o tema da democracia. Para um observador atento, não pode escapar que, ao falar do conceito de igualdade, Dahl se depara com os limites da experiência e reflexão grega: para igualdade política, o cientista político americano entende, de fato, a ideia de que “todos os cidadãos são capacitados a expressar opiniões políticas e governar”. Essa concepção está em contradição tanto com a experiência dos atenienses quanto com a ideia platônica dos guardiões, que, em virtude de um conhecimento superior, seriam melhores capazes de defender e promover o bem de todos, e também com a concepção aristotélica do homem. Podemos então afirmar que, na antiga Grécia, o termo “todos” refere-se a todos aqueles que tinham as características para participar da vida política.

Na realidade dos fatos, a democracia ateniense foi muito diferente das imitações posteriores e do que entendemos hoje por esse termo: a organização socioeconômica da pólis, de fato, baseava-se em uma rígida divisão em classes e a participação na vida política era limitada àqueles que eram cidadãos em sentido pleno, ou seja, aos chefes de família que não precisavam trabalhar para viver, enquanto todos os outros eram excluídos. No livro I, de fato, Aristóteles havia definido o escravo como um “instrumento animado” e logo depois discutiu quem pode exercer o comando na família (oikos) e no Estado (polis). O oikos é governado pelo chefe de família: o homem exerce sua autoridade sobre a esposa e os filhos porque “o macho é mais adequado ao comando do que a fêmea”. Às diferenças de status, soma-se a diferença de gênero, como se, juntamente com os escravos, as mulheres não fossem consideradas plenamente humanas e de qualquer forma carecessem da mesma dignidade do homem. Certamente, em comparação com os reinos despóticos e as monarquias da época, a democracia ateniense devia ser algo incrivelmente novo e aberto, e de fato era, pois as leis podiam ser discutidas, mas isso era possível apenas se ela – como a antiga Israel – mantivesse suas dimensões reduzidas.

No Êxodo 20,2-17, testemunhamos um forte envolvimento de toda a totalidade do povo: desde a autoapresentação de YHWH como “aquele que fez sair Israel (todo Israel) do Egito”, até o “tu” com o qual Deus se dirige ao povo, até as palavras do sábado e a honra devida aos pais, cada elemento sugere que Deus se dirige ao povo como um todo. O sábado, ao reconhecer as diferenças de classe, as supera através do reconhecimento da igualdade na participação do descanso, o tempo sagrado. No verso 12, temos outro exemplo desse compromisso: no apelo para honrar os pais, alguns estudiosos encontram uma fórmula para garantir, por parte dos filhos, o respeito e o sustento da viúva, que então assumiria conjuntamente a função de pai e mãe. Outros, por outro lado, acreditam que se refira a ambos os pais vivos. Seja qual for a interpretação mais próxima da realidade, este versículo exorta a reconhecer a dignidade da mulher: ela merece honra, cuidado e respeito, mas, acima de tudo, merece-os em pé de igualdade com o homem, o que não era de modo algum óbvio para a época.

As considerações acima, até agora, colocam em questão a possibilidade de identificar a religião judaico-cristã com formas de absolutismo político. YHWH detém uma soberania absoluta, mas, ao contrário dos soberanos da época, ele mantém uma relação direta com seu povo. O próprio Moisés, que lidera Israel, desempenha o papel de mediador, mas não pode se substituir a Deus. No momento mais importante, o nascimento de Israel como nação política, sancionado pela proclamação dos Dez Mandamentos, Deus se dirige não apenas a Moisés, mas a todo Israel: diante de Deus, não há distinções entre os membros do povo. O que é determinante para a vida de Israel é decidido por cada um de seus membros. Na Atenas democrática, por outro lado, encontramos a tendência oposta: à abertura determinada pela possibilidade de discutir as leis, corresponde a restrição do círculo dos interlocutores: apenas alguns têm o direito de discutir as leis. No Êxodo 20,2-17, pode-se falar de isonomia porque todos os membros do povo estão no mesmo plano diante de Deus: as diferenciações sociais deixam de ser determinantes no momento religioso e político do nascimento de Israel. Em Atenas, por outro lado, a democracia tem seu pivô na possibilidade, para alguns, de discutir as leis. No primeiro caso, é destacado o papel que cada membro do povo tem diante da memória histórica evocada por YHWH: dela são derivados os critérios para a futura convivência civil. No segundo, porém, as diferenças sociais são determinantes e o papel que alguns homens têm na futura organização política da cidade se torna central: eles têm o poder de questionar as leis e modificá-las.

O Decálogo oferece um modelo de isonomia diferente daquele mais conhecido da pólis ateniense, mas não incompatível com ele. Ambos têm suas raízes em uma pequena comunidade e exigem a participação ativa do povo, apenas que o texto bíblico supera as diferenciações humanas de classe, gênero e até mesmo de pertencimento racial, enquanto a isonomia ateniense – e posteriormente a democracia – se realiza a partir delas. É possível dizer que enquanto a pólis ateniense tende a restringir o círculo de seus interlocutores, o Decálogo faz de tudo para ampliá-lo. Outra diferença importante consiste na identidade dos interlocutores: em Atenas, discute-se entre homens, em Israel, os homens confrontam-se com Deus. No primeiro caso, as leis humanas são discutidas, no segundo, são aprovados princípios gerais dados por Deus após a experiência de libertação de seu povo, que servirão como base para as leis humanas. Estas últimas são passíveis de discussão e mudança, os princípios sobre os quais elas se baseiam, não. Como já destacamos, eles não são acolhidos pelo povo porque são emanados por Deus, mas porque foram reconhecidos como “verdadeiros” em relação à história de libertação que os precede. Na pólis, o cidadão vivencia sua democracia, enquanto aos pés do Sinai, a isonomia é a realização de uma experiência política, a luta pela independência (2014, p. 17-34).

Valho-me da conclusão, que explicita boa síntese de seu intento de pesquisadora:

A democracia moderna é o resultado da experiência política de Atenas e da experiência moral de Israel. O texto bíblico, através do direito canônico, constituiu uma das principais fontes da cultura jurídica ocidental, e a tradição judaico-cristã ofereceu à reflexão ética e política elementos para aprofundar os conceitos de igualdade, dignidade humana e justiça. É, em particular, nos Dez Mandamentos – frequentemente reduzidos a um modelo de formalismo e absolutismo – que se manifesta a superação das diferenças de classe, gênero e pertencimento étnico. Aos pés do Sinai, onde se desenrola o processo de libertação narrado no livro do Êxodo, estabelece-se um pacto entre Deus e toda a totalidade do povo, institui-se o descanso no sábado também para o estrangeiro e o escravo, expressa-se uma forte instância ética que se traduz na proteção da vida e em um modelo de democracia sem paralelo no antigo Oriente Próximo. O relacionamento com a tradição antiga, frequentemente identificada apenas com a filosofia grega e a experiência da polis, enriquece-se assim com o conteúdo aos quais a reflexão política pode recorrer para aprofundar a compreensão da democracia moderna (2014, contracapa).

5. Portanto, o que sucede na Faixa de Gaza, atualmente, com reflexo em todo o território de Israel, é o que alertou Jean Sévillia (Le terrorisme intellectuel: de 1945 à nos jours. Librairie Académique Perrin, 2000, p. 262), com a França, que não é mais a mesma, assim como não o Ocidente um Oriente.


JAYME VITA ROSO

Graduado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, é especialista em leis antitruste e consultor jurídico de fama internacional, ecologista reconhecido e premiado, “Professor Honorário” da Universidade Inca Garcilaso de La Vega de Lima, Peru e autor de vários livros jurídicos. Saiba mais.